24.1.12

No 70.º aniversário da Conferência de Wannsee e no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

Todos os anos assinala-se, no aniversário da libertação do campo de concentração e de extermínio de Auschwitz, em 27 de Janeiro – 67 anos, em 2012 -, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Lembre-se que, após ter chegado ao campo de concentração e de extermínio de Majdanek, na Polónia oriental, em final de 1944, o Exército Vermelho lançou, em 12 de Janeiro de 1945, uma ofensiva geral na Polónia. No sábado, dia 27 de Janeiro, elementos dos corpos n.º 28 e n.º 106 do Primeiro Exército soviético da Ucrânia chegaram ao complexo de campos de concentração, trabalho forçado e extermínio (Birkenau) de Auschwitz, onde encontraram cerca de 7.500 prisioneiros, incluindo 4.000 mulheres e cerca de 600 crianças, deixadas pelos nazis. Relativamente aos outros prisioneiros, tal como noutros campos, os nazis organizaram «marchas da morte» em direcção à Alemanha, para apagar, na debandada geral, os indícios físicos e materiais do enorme crime perpetrado sobre milhões de seres humanos. Entretanto, também se assinala este ano a data redonda do 70.º aniversário da realização conferência de Wannsee, localidade nos arredores de Berlim, onde as SS e altos dignatários nazis organizaram os aspectos “práticos” do processo que ficou conhecido por «Solução Final do Problema Judeu», ou o Holocausto ou Shoah.

A muito abundante historiografia sobre o Holocausto perpetrado pelo regime nacional-socialista alemão tende, na sua grande parte, por considerar que o mecanismo do extermínio dos judeus, procedeu por etapas, num processo em espiral de radicalização imparável. Ao colocar o anti-semitismo no centro da sua ideologia e prática, o regime hitleriano começou por definir a figura dos judeus e proceder ao boicote ao comércio judeu, em 1 de Abril de 1933. Prosseguiu com a legislação de exclusão dos judeus das profissões liberais e da função pública, atribuindo depois um estatuto diferente aos judeus, através das leis de Nuremberga, em 1935. Seguiu-se uma política de expropriação e de «arianização» do património dos judeus, levada a cabo paralelamente com a “emigração”/expulsão destes dos territórios alemães. De seguida, os judeus foram concentrados, enclausurados e isolados em guetos, antes de serem deportados para os campos de concentração e de extermínio, onde foram assassinados em massa.

É hoje também aceite em geral a ideia de que o Holocausto esteve relacionada com a operação Barbarossa, de guerra total na URSS, iniciada em Junho de 1941, em particular devido à ordem de execução dos comissários soviéticos (Komissarbefehl) e ao reforço dos Einsatzgruppen com elementos das SS. Estes eram esquadrões da morte que seguiam as tropas regulares da Wehrmacht nos territórios ocupados da Polónia e da URSS, com o objectivo de matar civis, que foram responsáveis por matar cerca de dois milhões de pessoas, antes das câmaras de gás de Auschwitz. Através da Komissarbefehl, foi ordenada a eliminação sistemática dos comissários políticos comunistas do Exército Vermelho, identificados estes também como judeus.

A génese do genocídio, que decorreu na sequência da invasão da URSS, tem sido historiograficamente procurada na prática quotidiana das instâncias regionais e locais de ocupação alemã. Haveria assim uma grande diversidade de situações, dependendo dos locais, da cronologia e das formas de execução. Mas, embora o genocídio não tenha começado por todo o lado no mesmo momento, os autores são unânimes na fixação em Junho de 1941 de toda uma série de iniciativas locais em matéria de genocídio, pois, no momento da invasão da URSS, os massacres estenderam-se a todas as zonas ocupadas da Europa oriental.

O historiador Christopher Browning mostrou que o processo através do qual, num período de 25 meses, entre Setembro de 1939 e Outubro de 1941, o regime nazi chegou ao extermínio de todos os judeus europeus sob domínio alemão, passou por duas políticas distintas: a «reinstalação» e a «guetização». A chamada «questão judaica» deveria ser solucionada, segundo os dirigentes nazis, e especialmente o chefe supremo das SS, Heinrich Himmler, reinstalando os judeus a leste, através de expulsões forçadas e, concomitantemente, da dizimação dessas populações. Primeiro, Himmler encarou a expulsão dessas populações judaicas para o distrito de Lublin, na Polónia, e depois para a ilha de Madagáscar. Ou seja, se, entre 1938 e 1941, a escolha da emigração forçada revelou, da parte dos nazis, a procura de uma solução territorial da questão judaica pela deportação massiva.

Após a «reinstalação» a leste, seguiu-se um segundo processo através do qual o regime nazi chegou ao Holocausto - a «guetização», ou a concentração e o isolamento dos judeus até que uma nova «reinstalação» tivesse lugar. Depois da «guetaziação», ocorreu, como se sabe, a deportação para os campos da morte e o assassínio em massa dos judeus. A política anti-semita teve, assim, um carácter cumulativo, por etapas, progredindo desde a discriminação profissional até ao extermínio dos judeus, decidida pelo menos a partir de Dezembro de 1941, embora até então também tivesse havido várias etapas. Em Outubro de 1941, depois de invasão da URSS, os Einzatzgruppen eliminaram comunidades inteiras e a RSHA – central de todas as polícias, incluindo a Gestapo-SD, dirigida pelo líder das SS, Heinrich Himmler - decidiu a deportação de judeus para territórios russos ocupados. No entanto, apesar da existência de massacres em massa de mulheres e de crianças russas, a deportação ainda continuava a ser considerada como o instrumento principal para resolver a «questão judaica». Em Dezembro de 1941, interveio a decisão de extermínio, anunciada por Hans Frank, e anotada, a 18, por Himmler na sua agenda.

A conferência de Wannsee
Em 20 de Janeiro de 1942, realizou-se convocada por Reinhardt Heydrich, chefe SS da Gestapo-SD, a conferência de Wannsee, perto de Berlim, na qual foi programada, por quinze dignitários nazis, a «solução final». Segundo concluiria o próprio Heydrich, essa reunião terminou com a definição das linhas básicas relacionadas com a «execução prática da solução final da questão judaica». Ficou então decidida a «evacuação dos judeus em direcção a leste, com a autorização do Führer», em substituição da «emigração», sendo afirmado que, embora provisória, aquela opção já constituía «uma experiência prática muito significativa para a próxima solução final da questão judaica» europeia. Esta abrangeria «mais ou menos 11 milhões de judeus de diversos países». Após lembrar que Hitler tinha recentemente aprovado a nova política de deportação, relativamente aos judeus, enfatizando que se tratava de uma medida temporária, Heydrich apresentou números relativos à população judaica de cada nação europeia, incluindo os países fora da ocupação e influência alemã, em particular de países neutros como a Irlanda, Suécia, Suíça e Portugal, onde haveria, segundo ele, respectivamente 4.000, 8.000, 18.000 e 3.000 judeus.

Heydrich lançou depois as bases para a discussão, ao apresentar o que deveria ser feito de imediato nos territórios ocupados de Leste. Segundo ele, tratava-se de organizar os judeus em colunas de trabalho forçado, no seio das quais, «sem dúvida, a maioria seria eliminada por causas naturais». Estava subentendido que os mais fortes, do ponto de vista físico, eram poupados temporariamente e utilizados na realização de trabalhos duros, enquanto as crianças, os velhos e os mais fracos estariam à partida condenados à morte. A reunião discutiu ainda de que forma se deveria persuadir os territórios ocupados ou os países aliados da Alemanha para também eles lidarem com o «problema» judeu, enaltecendo aliás o que tinha sido já feito na Croácia e na Eslováquia. Lembre-se que o estado fantoche da Eslováquia cooperou em toda a linha com as deportações nazis, o que resultou no facto de os comboios de judeus eslovacos terem sido os primeiros a serem alvo de «selecção» em Auschwitz, logo em e Março de 1942. Por outro lado, erca de 90.000 judeus, primeiro, homens jovens programados par ao trabalho, e depois mulheres e crianças foram enviados, no final desse mês do Estado-fantoche da Croácia para guetos no distrito de Lublin e para os campos da morte a Leste.

Com o triunfo da posição das SS sobre as outras facções na conferência de Wannsee de Janeiro de 1942, foi posta em marcha a «solução final», na dependência das SS. Ao receber as actas da conferência de Wannsee, redigidas por Adolf Eichmann e enviadas a muitos altos dignatários nazis, Joseph Goebbels escreveu no seu diário que a partir de então a «questão judaica» tinha «de ser resolvida numa escala pan-europeia». m 14 de Fevereiro, Hitler disse a Goebbels estar determinado a «limpar» a Europa de judeus sem qualquer espécie de contemplações ou de emoções sentimentais e este último confiou ao seu diário, em 27 de Março, que os judeus estavam então a ser empurrados para fora do Governo-Geral, a partir de Lublin, mais para leste». Reconhecia o ministro de Propaganda nazi que um processo bastante bárbaro estava ali a ser aplicado, o qual não deveria ser descrito com mais detalhe, mas que sem dúvida muito pouco era «deixado dos próprios judeus». Especificando, escreveu que, em geral, «pode-se concluir que 60% deles devem ser liquidados, enquanto apenas 40% podem ser postos a trabalhar».

O certo é que, a 25 desse mês de Março de 1942, começaram, em toda a Europa ocupada pela Alemanha, as operações genocidas. Do Reich alemão e do Protectorado da Boémia-Morávia cerca de 60 comboios carregados, cada um, com cerca de mil deportados tomaram também o caminho dos guetos. Na Polónia, os guetos foram dissolvidos e os seus ocupantes começaram a ser deportados para os campos de extermínio, tal como aconteceu os judeus de França – a parte ocupada, bem como a parte «livre» de Vichy -, da Bélgica e da Holanda. Em Chelmno e Maidanek,campos da morte na Polónia, o gás dos motores diesel, utilizado até então, juntamente com os fuzilamentos em massa, para matar judeus, viria a ser substituídos pelo Zyklon B, que permitiria a “industrialização” da morte. Estes locais e os campos de Belzec, Sobibor, Treblinka e Auschwitz-Birkenau (construído a partir de Novembro de 1941) tornar-se-iam campos de extermínio. Com o início do funcionamento das câmaras de gás do campo de extermínio de Birkenau, em Junho de 1942, os nazis passaram à fase aberta do genocídio planificado e sistemático, cujo ponto culminante e derradeiro viria a ser o massacre de meio milhão de judeus húngaros, executados ao ritmo de 10.000 por dia, no Verão de 1944.

16.1.12

No 50.º aniversário da Revolta de Beja

No passado dia 14 de Janeiro de 2012, realizou-se, com grande afluência, mno Museu da República e Resistência em Lisboa, uma sessão sobre a revolta de Beja, com a tentativa falhada da tomada do Quartel do Regimento de Infantaria 3 de Beja, na noite de 31 de Dezembro de 1961 para 1 de Janeiro de 1962. Na sessão, organizada pelo movimento-associação Não Apaguem a Memória, estiveram presentes a maioria dos participantes sobreviventes dessa acção revolucionária contra a ditadura salazarista, bem como e m alguns casos seus filhos e netos. Como muitas pessoas que não puderam estar presentes, me perguntaram se haveria algum registo da sessão, publico aqui o conteúdo da minha intervenção, cuja coloquialidade mantive.

«Em primeiro lugar, gostaria de manifestar o meu contentamento por poder estar aqui nesta sessão, onde, creio, é principal objectivo retirar do esquecimento um importante acontecimento na luta contra a ditadura. Deve-se dizer que a memória da revolta armada de Beja, na passagem do ano de 1961 para 1962, foi apagada evidentemente, por razões óbvias, pelo próprio regime salazarista, mas também o foi por uma parte da oposição ao regime, que nela não participou. E, no entanto, o punhado de homens e algumas mulheres que generosamente se envolveram no movimento de Beja fê-lo de forma algo nova e diferente do que até aí tinha acontecido, durante o regime ditatorial.
Ao abordar alguns dos episódios de que aconteceu em Beja, procurarei reflectir sobre essa revolta, embora sem deixar de alertar para o facto de que o que sabemos hoje – ou seja, conhecemos a continuação da história, onde ela desembocou -, não era conhecido então pelos protagonistas. Estavam então abertas várias possibilidades e os diversos factores em presença poder-se-iam ter conjugado com consequências diferentes. Antes de formular algumas conclusões, vou de qualquer forma tentar abordar várias questões sugeridas pelos acontecimentos de Beja, colocadas em forma de pergunta:
 - Que programa político seria levado a cabo após o controlo do quartel de Beja?
- Quem foram os participantes civis e militares da acção?
- Como decorreu a revolta propriamente dita?
- De que forma decorreu a presença de Humberto Delgado em Portugal
- Qual foi o papel da PIDE e das forças repressivas
- Como e quando soube o governo do que se passava em Beja
- Que papel teve o PCP?
A ausência de programa
Desde logo, ressalta dos vários relatos sobre a revolta de Beja, a ausência de um programa político para ser cumprido após o sucesso da operação do quartel, além do programa geral do derrube da ditadura. Noutras tentativas de sublevação ou golpe militar contra a Ditadura, com a participação de civis, sempre tinha sido previamente negociado um programa a ser levado a cabo logo que fosse assumido o controlo do alvo inicial, habitualmente um quartel. No caso da tomada do quartel de Beja, não houve a elaboração prévia de qualquer programa, provavelmente para não criar divisões, devido às várias sensibilidades políticas dos participantes.
Por outro lado, lembre-se que no contexto da época, já havia muitas críticas relativamente aos oposicionistas que perdiam tempo em discutir programas, para não passarem ao acto. Muitos dos que aderiram sabiam que por trás da acção revolucionária estava Humberto Delgado, cujo delegado – Manuel Serra - estava mandatado para chefiar uma revolta. Ainda relativamente ao programa político da revolta de Beja, alguns dos participantes terão achado suficiente o já existente Programa para a Democratização da República, apresentado em meados de 1961, que também serviu de base à participação de uma certa oposição.
De qualquer forma, todos os participantes estavam informados dos enormes riscos que corriam e muitos talvez estivessem mesmo convictos de que a operação falharia. Mesmo assim aceitaram participar, provavelmente com o único desejo de revelar que havia pessoas subjectiva e objectivamente preparadas para arriscarem a vida para derrubar o regime e deixarem de praticar uma «oposição sentada», como dizia criticamente Humberto Delgado.
Quanto ao plano das operações, que incluía apenas os primeiros passos da tomada do quartel do Regimento de Infantaria 13 de Beja, por um grupo de militares e depois por um grupo de civis, não era todo conhecido pelos principais dirigentes. A parte militar, como se verá, desconhecia o detalhe da parte civil, nomeadamente a prevista chegada de Humberto Delgado, tal como esta desconhecia a parte militar. As operações estavam de qualquer forma enquadradas no «projecto Íkaro», gizado por Humberto Delgado, no contexto do exílio brasileiro, da constituição do DRIL, do assalto ao navio Santa Maria e do desvio de um avião da TAP, comandados por Henrique Galvão. Após o regresso clandestino a Portugal e de proceder aos primeiros difíceis recrutamentos de civis, Manuel Serra pôs em prática, de forma modificada, o plano de Delgado. Houve, em 2 e 8 de Dezembro, duas primeiras idas a Beja, uma de reconhecimento e outra tentativa de tomada do quartel, que abortou por falta de operacionais, que então apenas eram civis
Os participantes
Manuel Serra teve grandes dificuldades em recrutar elementos para a revolta, embora dos que aceitaram participar poucos tivessem desistido à última da hora e não terá sido através deles que a PIDE terá sabido do que se iria passar. Havia falta de tudo: falta organização prévia, ligação a qualquer grupo ou movimento, aparelho logístico, armas e viaturas. Muitos dos que aderiram sabiam que por trás da acção revolucionária estava Humberto Delgado, cujo delegado – Manuel Serra - estava mandatado para chefiar uma revolta.
Para a preparação desta acção, Manuel Serra reuniu com regularidade com um grupo inicial de civis composto por ele, Edmundo Pedro, David Abreu, António Vilar e Artur Vaz, aos quais se juntariam António da Graça Miranda, Mariana Esteves, Gualter Basílio e Germano Pedro. Entre as adesões de civis que o grupo viria a receber, contaram-se as de elementos oposicionistas da Seara Nova e outros que reuniam à volta de Fernando Piteira Santos e de Lígia Monteiro, bem como diversos republicanos. Liberais, católicos progressistas, havendo até sacerdotes e alguns monárquicos.
Manuel Serra recrutou ainda familiares e jovens conterrâneos dos bairros da Liberdade, Campolide e Serafina, na capital, e houve ainda, embora à revelia do PCP, a adesão de alguns comunistas de Almada e do Barreiro. Segundo uma contabilização realizada por um dos participantes directos da revolta, Raul Zagalo, dos 65 julgados e condenados por participação directa na revolta, 42 eram operários, 13 eram comerciantes e pequenos empregados administrativos, 8 eram militares, dos quais 6 oficiais e 2 eram licenciados.
Relativamente à adesão posterior de alguns militares, o caso mais importantes foi o do capitão Varela Gomes, que não aderiu de imediato, mal impressionado com o amadorismo das duas primeiras idas a Beja. Ao saber, através de um encontro com o tenente de Administração Militar, Alexandre Hipólito dos Santos, em serviço no R.I. 3, de Beja, da existência nessa unidade de um núcleo de oficiais anti-fascistas, entre os quais se contavam ele próprio, o tenente Brissos de Carvalho e o comandante da companhia de ordem pública, Francisco Vasconcelos Pestana, ex-colega de curso na Academia Militar do Varela Gomes. Este decidiu então participar no movimento, acedendo a fazê-lo, numa reunião de 15 de Dezembro, e a obter a adesão de militares que secundariam os civis, caso estes avançassem.
As memórias dos militares directamente envolvidos aproximam-se, ao justificar hoje a sua adesão à revolta de 1961, revelam de maneira geral terem aceitado participar no movimento, por estarem convencidos que os civis, sozinhos, falhariam e não quererem ficar com o peso na consciência de um banho de sangue. Por outro lado, segundo o capitão João Varela Gomes, «o desastre militar em Goa, a 19 de Dezembro» acabaria por dar «o argumento que faltava para vencer as hesitações» de outros oficiais, entre os quais se contaram Robin de Andrade, Marcelino Marques e Ribeiro Simões.
Nas suas memórias, Eugénio de Oliveira contaria que, na segunda linha da preparação do golpe, estavam ainda os capitães Chaves Guimarães, Billstein de Menezes, Xavier de Brito e Cruz Quintino, e que haveria «um terceiro círculo de militares que esperavam o ruído do “motor de arranque” para arrastarem ou neutralizarem as unidades onde estavam colocados». De forma directa, participaram no ataque ao quartel de Beja, sob o comando do capitão Varela Gomes, o tenente Jaime Carvalho da Silva e os capitães Pedroso Marques e Eugénio de Oliveira, bem como o capitão Francisco Pestana e tenente Alexandre Hipólito dos Santos, colocados em Beja. Os outros avançariam, após o assalto a este quartel ter sucesso.
Observe-se que, até então, todas as tentativas de revolta militar contra o governo fracassadas haviam caído nesse círculo vicioso que consistia em lançar uma operação isolada, esperando que mais unidades militares se revoltassem e a essa aderissem, com a participação directa ou indirecta de civis. Antes de 1961/62, a última a eclodir e a falhar tinha sido a revolta da Mealhada/Abrilada, em dois momentos em 1946 e 1947, e depois, houve ainda, sem chegar a sair, já com a participação e civis, a revolta da Sé, em 1959.
O ataque ao quartel de Beja
Quanto à revolta de Beja propriamente dita, veja-se o que na realidade aconteceu, sem falar nos atrasos, nos desencontros entre militares e civis e no desencontro de Humberto Delgado, presente em Beja, na própria noite de 31 de Dezembro. Apenas quando já passava da 1 hora da madrugada de dia 1, e se preparava para fazer abortar a operação, Varela Gomes avistaria finalmente os diversos carros dos participantes civis, tomando, segundo o próprio capitão, «a decisão – histórica», de «tornar irreversível a Revolta de Beja». O certo é que, às duas horas do primeiro dia de 1962, chegaram à porta de armas do quartel duas viaturas, com os seis oficiais envolvidos na revolta. O oficial de dia do quartel, alferes Arantes de Oliveira, franqueou-lhes a porta, apurando os militares envolvidos que se encontrava no quartel o segundo comandante, Major Calapez, membro da LP e adepto do regime.
Até então tudo tinha corrido bem para os sublevados, que se prepararam para ocupar a central telefónica e de rádio, tomar a casa da guarda, desarmar as sentinelas e prender o major Calapez. Foi então que tudo começou a correr mal. Com a missão de prender o major Calapez, Varela Gomes, com os tenentes Jaime Carvalho da Silva e Alexandre Hipólito dos Santos dirigiram-se, cerca das 2 h e 20 m, aos aposentos daquele. Este entreabriu a porta e disparou à queima-roupa, atingindo com dois tiros Varela Gomes. Carvalho da Silva foi socorrer Varela Gomes e entregou-o aos cuidados de Alexandre Hipólito dos Santos e Pedroso Marques, que levaram o capitão ao hospital de Beja.
Foi então que se desmoronou todo o plano militar, que, além do mais, era ignorado pela componente civil, nomeadamente pelo seu dirigente, Manuel Serra. Segundo escreveu José Hipólito dos Santos, que vai editar em breve um livro sobre o tema, por «ironia do destino (e fruto dos sucessivos desencontros), no momento em que os revolucionários “perderam” o seu dirigente militar, o capitão Varela Gomes», o próprio general Humberto Delgado estava em Beja. E «nova ironia do destino: o General procurava sinais de revolta, no momento em que Manuel Serra entrava no quartel e tudo se tornava ainda possível». Ou seja, a situação poderia ainda ter então sofrido alterações.
Dado que a porta de armas não tinha sido franqueada aos civis, Manuel Serra ordenou, pelas 2 horas e 40 m, a uma quinzena de sublevados que saltassem o muro.
- Estes conseguiram ocupar a casa da guarda, desarmando os soldados e distribuindo armas pelos assaltantes e foram depois à procura de Calapez, sem, porém, nunca o conseguirem neutralizar, pelo que este continuou a provocar vítimas, matando David Abreu e ferindo Raul Zagalo Gomes Coelho, bem como António Vilar, que acabaria por falecer no hospital.
A morte de Jaime Filipe da Fonseca e a presença de Delgado em Portugal
Do lado do governo, morreu ainda no ataque o tenente-coronel Jaime Filipe da Fonseca, subsecretário de Estado do Exército, que tinha recentemente substituído nesse cargo Francisco da Costa Gomes, na sequência da «Abrilada». Relativamente à morte do seu sucessor, Costa Gomes diria que se teria devido a um erro do próprio que, ao «deslocar-se a Beja para comandar a defesa do quartel, foi à paisana», e acabou por ser «baleado, com toda a probabilidade, por um agente» da GNR, que não o reconheceu».
Na procura de razões para o fracasso do movimento de Beja, muitos dos participantes consideram que um dos factores consistiu na ignorância relativamente à presença em Portugal de Humberto Delgado. A entrada do general só deveria ter lugar quando o sucesso da fase inicial estivesse assegurado, ficando nesse momento Germano Pedro de o informar. Por volta do Natal, este telefonou ao general, que, em Marrocos, tinha jurado estar em Portugal até ao fim do ano, a avisá-lo de que o movimento estava prestes a eclodir, mas que deveria receber um segundo aviso para entrar no País. Delgado decidiu, no entanto, avançar de imediato, acabando por ir para Espanha e tomar uma «camioneta de carreira» entre Sevilha e Lisboa, passando a fronteira com o seu passaporte falso, no posto da PIDE de Vila Verde de Ficalho.
Arajaryr Campos, secretária e companheira de Delgado, viria mais tarde a fazer um relato escrito dessa «Viagem Secreta a Portugal», dando conta que, ao chegarem a Beja, já noite alta, rondaram durante uns 40 minutos, mas, para sua admiração, viram que estava tudo na mais perfeita calma, quando, repentinamente a polícia os mandou parar. O motorista que os levava num Jaguar acelerou a fundo e conseguiram fugir. Escondidos, chegariam ao Porto, no dia 3 de Janeiro, antes de Arajaryr se separar de Delgado, que, no dia 10, o saiu por Barca d’Alva, sendo assim a PIDE duas «vezes ludibriada!!!!».
O papel das forças repressivas e da PIDE
Ao relatar também a chegada a Beja, Delgado disse ter então ficado com a impressão nítida «que a revolta pelo menos já era do conhecimento de forças que não haviam sido neutralizadas». No entanto, não deixou de concluir o seu relato, com um balanço optimista da sua viagem a Portugal, nomeadamente por ter demonstrado que a PIDE era um “tigre de papel”, que poderia ser vencido. José Hipólito dos Santos afirma não ter encontrado indicações de que a polícia política estivesse à espera dos acontecimentos e se encontrasse na noite desse fim de ano em estado de alerta. Da minha investigação, a não ser que se venha a encontrar nova documentação, também não recolho indicações neste sentido
No entanto, a PIDE, as outras polícias e a instituição militar estavam à espera de algo, nesse ano movimento de 1961, até porque tinha indicações de que o DRIL se reparava para operar em Portugal e em Espanha. As próprias autoridades espanholas avisaram da movimentação de oposicionistas exilados. Lembre-se também que, na noite de 31 de Dezembro, os quartéis estavam de prevenção, embora pouco rigorosa como comprova o facto de, no quartel de Beja, apenas estar o segundo comandante – o primeiro comandante estava em Lisboa. Este facto inica também que, se esperava algo, o governo não sabia onde iria eclodir. Recorde-.se ainda que o chefe de brigada da PIDE, José Gonçalves, seguiu o carro em de Manuel Serra se dirigia a Beja, mas a viatura da polícia teve um furo, que o fez perder o rasto de Serra.
É um facto que, virada para a repressão ao PCP, a PIDE não estava habituada a lidar com um movimento revolucionário armado, que juntava civis e militares, de várias opções político e ideológicas. Também a noção da omnipotência, omnisciência e eficácia da PIDE me parece ser um facto mais ligado à propaganda que a própria polícia apregoava – embora também fosse apregoada por uma parte da oposição – para instilar o medo e a passividade, do que que uma realidade. É verdade que a PIDE estrava particularmente atenta nesse ano de 1961, mas que, entre informação e conhecimento, há uma distância, e que a polícia podia ter algumas informações, mas não tinha o conhecimento que lhe permitisse desencadear uma acção específica. E esse desconhecimento advinha de os participantes na operação de Beja não serem os suspeitos do costume, nem a acção ser do teor a que ela estava habituada.
De qualquer forma, tenho algumas dúvidas se a operação do Quartel de Beja constituiu inteira surpresa para as autoridades. As duas primeiras idas a Beja, em início de Dezembro, dificilmente terão passado despercebidas, muitos dos participantes, incluindo Serra estavam sob vigilância. Por outro lado, é preciso esquecer que um dos modos de actuação da PIDE era não prender de imediato, para poder vigiar os “suspeitos”, que os levariam a outros.
Como e quanto soube o governo do que se passava em Beja?
Após alvejar Varela Gomes, o segundo comandante do RI3, major Calapez, teve a liberdade de movimento e antes de escapar aos tiros dos civis revolucionários, entretanto entrados no quartel, e de alvejar três deles, Calapez teve ainda tempo para conseguir que o telefonista conseguisse voltar a controlar a central telefónica, abandonada pelos dois oficiais sublevados, após Varela Gomes ser alvejado. Alguns oficiais do quartel que estavam na messe foram assim alertados e, pelas 3 horas da madrugada, informaram a PSP do que se passava no quartel, dando esta polícia, que não interveio directamente entrando no quartel, conta do sucedido ao ministério.
Ao relatar a sequência dos acontecimentos, Maria Eugénia Varela Gomes confirma que o governo havia sido avisado imediatamente do que se estava a passar no quartel de Beja, através de um telefonema de quatro oficiais da unidade de Beja. Contou ainda que confirmaria depois essa versão, ao saber que o telefonema, recebido por Irene Aleixo em sua casa, na noite de 31 de Dezembro, tivera como interlocutor o ministro da Saúde, Martins de Carvalho. Este teria dito à dona da casa, onde Eugénia Varela Gomes e outros envolvidos na revolta de Beja aguardavam o desenrolar dos acontecimentos no quartel, que iria indagar o que se passava.
Voltando depois a ligar, este transmitiria a Irene Aleixo que estava «tudo resolvido», dizendo-lhe para avisar Maria Eugénia que o seu marido estava gravemente ferido e internado no hospital. José Hipólito dos Santos diz que estes telefonemas teriam sido escutado pela PIDE, mas que o «burocrata de serviço» que ouviu o telefonema só fez feito o relatório por escrito dias depois, o que não significa que a direcção dessa polícia não tivesse sido avisada oralmente. Registe-se ainda o facto de ter sido o ministro da Saúde, sabendo de que haveria feridos graves, a ordenar o envio de uma equipa médica para Beja e seria esta a operar de urgência o capitão Varela Gomes.
O papel do PCP
A acção revolucionária de Beja teve alguma semelhança com o chamado «golpe da Sé», de 1959, desde logo, devido à participação destacada nas duas operações de Manuel Serra e de alguns dos seus amigos, de alguns católicos, e até sacerdotes, bem como alguns militares. Também não houve, em 1959, a participação do PCP, tal como esta não existiu em Beja, por razões explicáveis, pois não era um tipo de acção que se enquadrasse na estratégia de levantamento nacional. No entanto, em 1961, alguns elementos comunistas tiveram em Beja um papel inicial, mas a nível individual.
Segundo o relatório do processo-crime da PIDE, pertenciam ao PCP o empregado fabril Francisco Lobo e o ferroviário Germano Madeira, que se haviam prontificado a colaborar no golpe, embora provavelmente à revelia do seu partido. Segundo o testemunho de alguém próximo do PCP, Manuel Serra teria conseguido a adesão afectiva de comunistas da margem do Sul do Tejo, para o seu «plano de sublevação militar». O respectivo controleiro do PCP ficara de saber a opinião sobre essa participação da parte do CC, cuja resposta taxativa foi a de que este partido não participava «em aventuras, mas a título individual cada qual decide». Depois, ao ser finalmente decidida a data para a eclosão do movimento, «muitos aderentes da primeira tentativa já não alinharam», o que não impediria a repressão da PIDE de se abater sobre cerca de vinte pessoas na Baixa da Banheira, no Barreiro e Alhos Vedros.
A repressão
Ao todo foram detidas centenas de pessoas, tivessem ou não participado directa ou indirectamente na revolta de Beja e, no final de Junho de 1962, estavam presas perto de uma centena de pessoas, havendo outras que se refugiaram em embaixadas latino-americanas Várias pessoas colaboraram na fuga de outros elementos da «intentona de Beja». Ao contrário do que se passou com outras tentativas de golpe integradas por militares, a PIDE conseguiu que os sublevados de Beja lhes fossem entregues. Para isso, foram expulsos do Exército, por simples decisão administrativa, e como já não eram militares, ficaram “legalmente” debaixo da alçada da PIDE.
No julgamento no Tribunal Plenário, que decorreu entre 28 de Janeiro e 29 de Julho de 1964, onde, pela primeira vez foram julgados tanto os civis como os militares, num total de 82 arguidos, 49 foram condenados a pena maior, 16 a prisão correccional e 17 foram absolvidos.Entre as penas mais altas, contaram-se as atribuídas a Manuel Serra, João Varela Gomes, Edmundo Pedro e Eugénio de Oliveira, respectivamente condenado a dez, seis, três anos e oito meses (acrescido de um ano mais) e três anos (aumentados para quatro e meio).
O regime português ter-se-á assustado muito com o «golpe de Beja», mas o susto também se espalhou ao governo espanhol, que, seis horas após a operação, ordenou o avanço de tanques espanhóis de Mérida para Badajoz. Por seu lado, a CIA «confirmou que o generalíssimo Francisco Franco planeava invadir Lisboa, Porto e Coimbra, usando a 11ª Divisão do Exército, caso Salazar fosse derrubado pela esquerda».
Observações finais
 Para já tem de se falar do acaso e dos múltiplos factores imponderáveis, que surgem sempre e que podiam ter ocorrido de outra forma: se não tivesse havido desencontros iniciais, se não tivesse havido o desencontro com Humberto Delgado, se o segundo comandante não tivesse estado no quartel, se ele não tivesse disparado e ferido gravemente o capitão Varela Gomes… cá estão muitos «se», que se juntam a muitos outros.
De novo, quero lembrar que a posteriori, com todo o conhecimento de todo os dados e sabendo para onde caiu a situação, é fácil enumerar os vários factores que contribuíram para o fracasso da revolta de Beja, desde o facto de a operação ter contado com um diminuto número dos participantes, escassamente preparados e armados, movidos apenas por uma generosidade voluntariosa e desejosa de contribuir para o derrube do regime, Negativa, parece ter sido também a falta de sincronia e de entre civis e militares.
Há, no entanto, um factor que hoje me parece relevante: o de que, além das condições objectivas, as chamadas condições subjectivas de uma insurreição popular, em que se verificariam a adesão de outras unidades militares e sobretudo das populações – o que acontece na realidade, em 25 de Abril de 1974, depois de uma vastíssima operação apenas militar – não existiam. O ano de 1961 era de contexto bastante desfavorável para uma revolta de militares, talvez a mais desfavorável desde que Salazar tinha “saneado” e domesticado a instituição militar, em 1937. Lembre-se, por outro lado, que no ano de 1958, das eleições de Delgado, Salazar tinha contado com os tanques militares que saíram à rua para preservar o regime. Mas 1961 – annus horribilis par ao regime – foi de qualquer forma um ano dramático para a oposição ao regime. Lembre-se que, nesse ano de início da guerra em Angola e da perda do Estado da Índia, mesmo os militares descontentes no seio do regime foram derrotados na sequência do golpe palaciano do ministro da Defesa, Júlio Botelho Moniz, em Abril de 1961 e que, devido a essa situação, e à decisão tomada da «ida em força para Angola», Salazar assumiu então essa pasta crucial.
Por outro lado, o começo da guerra colonial deu a oportunidade a Salazar de colocar os militares perante a falta de alternativas -servir ou trair a Pátria -, tornando difícil o sucesso de qualquer tentativa revolucionária militar e obrigando a que se esperasse mais 12 anos pela libertação. Além disso, a propaganda do regime – expressa nas manifestações contra o que se tinha passado em Março em Angola, à chegada do navio Santa Maria a Lisboa e a perda do chamado Estado da Índia – estava ao rubro e não deixava de ter alguma eficácia no seio de uma população passiva e amedrontada.
Mas, já que falamos em factores subjectivos, quero destacar dois muito importantes, para cujo reforço a revolta de Beja contribuiu a curto, médio e longo prazo.
1) - Por um lado, dado que, a par da passividade instilada, o medo espalhado pelo aparelho repressivo salazarista foi muito importante para sua manutenção, um grupo de revolucionários que tudo arriscava para tentar derrubar esse regime, tornava-se uma lição viva de resistência e uma poderosa pedra na engrenagem da Ditadura.
2 - Ainda entre os factores subjectivos, deve-se lembrar a importância da revolta de Beja no seio da oposição ao regime ditatorial, mesmo se ela foi à época criticada por grande parte dos outros oposicionistas: contribuiu seguramente para revelar que a PIDE não sabia nem dominava tudo e, mais importante, demonstrou que haveria outras formas e estratégias de actuação para derrubar o regime, que poderiam aliás competir positivamente com as formas tradicionais. Deu assim expressão à vontade que muitos – especialmente mais jovens – tinham de actuar de forma mais radical contra um regime que, como se viu, não terminaria pacificamente.

15.1.12

Comemoração do 50.º aniversário da revolta de Beja

O coronel Carlos Matos Gomes, o historiador António Louçã, o Presidente da Associação, Raimundo Narciso, a historiadora Irene Pimentel e a vice-presidente da Associação Lúcia Ezaguy Simões 
Plateia durante a sessão
 + info aqui
(fotos retiradas do artigo)

2.1.12

2012

Ao Ministro da Educação, Professor Doutor Nuno Crato: o que tem o senhor contra as Novas Oportunidades?

Eu sei que, tal como eu e uma minoria de privilegiados, o senhor teve todas as oportunidades, incluindo durante as ditadura de Salazar e Caetano, para vir a fazer parte da elite do regime. Felizmente, tal como eu, teve oportunidade de assistir ao fim do regime ditatorial e fazer parte da elite do regime democrático. Agora o senhor é ministro de um governo liderado por jovens da Direita política, cuja mobilidade ascensional social, como a da generalidade dos portugueses, mas ao contrário da sua, foi possibilitada (e bem) pela democratização social, política e económica proporcionada pelo Estado social dos últimos 36 anos.
Esperar-se-ia que essa possibilidade de mobilidade social ascensional da qual os jovens governantes e elementos da actual elite beneficiaram fosse agora retribuída, aprofundada, alargada progressivamente a mais pessoas e deixada em herança aos que vêm depois de nós. O que se verifica, porém, é algo de muito diverso. Através de uma política de empobrecimento geral dos portugueses – descontando como sempre uma minoria – e do desmantelamento do Estado social, da Escola Pública e do Serviço Nacional de Saúde que estão a ter lugar em Portugal (mesmo para além da Troika), vê-se que quem hoje governa em Portugal e já beneficiou da democratização social, económica e política considera que esse bem seja um privilégio apenas detido por aqueles que já o têm.
Como alguém disse, eu já vivi nesse país pobre em que cada um nascia para uma determinada função, da qual não podia escapar. Eu já vivi nesse país, cuja norma elitista era «a cada um o seu lugar» e não gostei nada. Penso que o senhor ministro da Educação também não terá gostado. Vem isto tudo a propósito do programa «Novos Oportunidades», tão combatido e ridicularizado pela Direita política e acenado como arma de arremesso e de exploração das invejas nacionais. Suponho que o senhor Ministro não alinha com as críticas, pois, caso contrário, acabaria com o programa na sua totalidade.
Como não extinguiu o programa, suponho que concorda com a ideia de que as Novas Oportunidades não só constituem um instrumento de reforço de qualificação e profissionalização, com evidentes resultados para o progresso e crescimento económico português, como representam uma possibilidade de mobilidade social ascendente e um regresso aos estudos de todos aqueles que, devido às vicissitudes da vida não puderam prolongar o seu processo de aprendizagem.
Em Novembro, eu pude tomar conhecimento do excelente e muito dinâmico trabalho levado a cabo pelo Centro de Novas Oportunidades do Seixal. Suponho que, mais do que eu, o senhor ministro saberá do que falo e tem a noção de que se trata de um programa com enormes potencialidades e aspectos positivos.
Mas então – pergunto -, em vez de alargar, aperfeiçoar e aprofundar o programa, por que optou por eliminar vinte centros, retirando a muitos portugueses a possibilidade de aceder a novas oportunidades e colocando no desemprego todos os seus funcionários. No mínimo, o senhor ministro dever-nos-ia dar uma explicação pormenorizada, baseada em números e estatísticas que possibilitem encontrar resposta para as seguintes perguntas:
- Porque vai fechar essas escolas?
- Que maus resultados apresenta o programa Novas Oportunidades que justifiquem uma tal destruição?

Face às dúvidas e perplexidades, o elogio da política

De forma excepcional - tenho de o confessar -, assisti hoje a alguns programas televisivos de «feitura da opinião» na televisão portuguesa. Na Sic Notícias, ouvi a deputada do PP, Teresa Caeiro, louvar a política do ministro da Emergência – sorry - da Segurança Social, seu companheiro de partido, pela poupança que, segundo ela, iria haver, ao retirar-se dinheiro injustamente atribuído a beneficiários do rendimento de inserção social, que iria reverter para um aumento (3%) nas pensões de reformados pobres. O esplendor da demagogia no seu melhor.
Depois, ouvi a prestação, na TVI24, de uma jornalista do Público, creio que da secção de Economia, de nome Isabel Ferreira. A jornalista, com aquele ar de objectividade total (como se não estivesse a emitir uma opinião, uma opinião política), disse várias vezes que assim como não era «tempo, no período de José Sócrates, de o Estado investir dinheiro na economia», também não era «tempo de ensaiar medidas neo-liberais», sem ter a noção dos «efeitos colaterais». Isto tudo a propósito do negócio da China relativo à EDP.
Dias não são dias, e tão depressa não vou assistir, por falta de tempo e interesse, a mais comentários pretensamente apolíticos e pretensamente objectivos. É que isto é tudo uma questão de opção política. E eu não concordo com a opção política de um governo de um partido que ganhou as eleições mentindo relativamente ao que iria fazer. Pode-se argumentar que a mentira para ganhar as eleições não é de agora. É verdade. Mas o que está a acontecer é que está a ocorrer em Portugal uma mudança radical de opção política e de paradigma político. E tudo em nome da falta de alternativas.
Até agora, a opção política – com imensas imperfeições – era, para apenas falar dessa questão, a manutenção do Estado social em Portugal. Ora, o que está a acontecer, não é um «efeito colateral» não desejado da política do governo, mas sim do cerne da opção política do governo. O que se trata aqui é de diminuir de tal forma o Estado Social até ao ponto em que já não se está face a uma mudança de quantidade de prestaçõos sociais, mas sim perante uma tal modificação de qualidade das mesmas que, na realidade, o Estado Social está a deixar de existir. O que dizer do aumento para o dobro ou mais das taxas moderadoras? Posso estar enganada, mas parece-me que esta opção política se assemelha na realidade à destruição do Estado social em Portugal.
Parece-me também – posso estar muito enganada – que este governo descobriu a solução (política) para a crise do Estado social. Dado que nascem poucos portuguese e que muitas escolas vão fechar e que não haverá necessidade de professores, há uma solução – emigrar. O problema é que parece que pelo menos o Brasil e Angola não estão propriamente à espera da nossa emigração docente. Mas adiante. Por outro lado, os idosos vivem demasiado tempo, graças à Medicina (e ao Estado social?), há uma solução - aumentar exponencialmente as taxas moderadoras. Dessa forma se fará “naturalmente” a triagem entre quem pode pagá-las e quem nem tem necessidade de recorrer à saúde pública.
Embora não acreditando que um governo português democraticamente eleito tenha como objectivos das suas opções políticas a emigração dos seus jovens e a diminuição dos seus idosos, proponho-me futiramente fazer um post sobre o debate eugénico que teve lugar na primeira metade do século passado, que me parece estranhamente parecido com aspectos da actualidade.
Há, no entanto, duas questões coisa relativamente às quais não tenho dúvidas:
1) tudo tem a ver com diferentes opções políticas e não há uma única alternativa política;
2) pessoalmente, não estou disposta a deixar passar, sem reagir, uma mudança de paradigma político em Portugal.

"Punir a polícia política na transição portuguesa para a democracia"

No passado dia 25 de Novembro, participei, juntamente com António Costa Pinto, Filipa Raimundo e Maria Inácia Rezola, numa conferência, intitulada «Dealing with the Legacy of Authoritarism in Contemporary Democracies: Portugal & Southern Europe in Comparison», realizada no Kings´s College, de Londres, organizada por António Costa Pinto e Luísa Pinto Teixeira. Na ocasião afirmei ser um mito a ideia de que em Portugal os elementos da PIDE/DGS não teriam sido punidos no período pós-25 de Abril. Essa afirmação, bem como a de terem sido alvo de processo judicial em tribunal militar 2755 elementos da PIDE/DGS foram reproduzidas – de forma correcta – por um jornalista presente da Agência Lusa. Para contextualizar essas afirmações, publico aqui a versão portuguesa da minha intervenção, intitulada «Punir a polícia política na transição portuguesa para a democracia».

O golpe militar do MFA de 25 de Abril de 1974 inaugurou uma nova vaga dos processos de democratização da Europa do Sul, dando lugar a uma crise revolucionária de Estado, em que ocorreram, em simultâneo, a democratização e a descolonização. Foi uma transição para a democracia por ruptura, que provocou uma forte mobilização anti-ditatorial, determinante para a imediata dissolução das instituições conotadas com o regime deposto. Na primeira linha desse desmantelamento, esteve, por exigência dos elementos que se tinham oposto à ditadura, o aparelho repressivo - a Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS).
Um diploma do próprio dia 25 de Abril de 1974 determinou a extinção da DGS, embora se dissesse, no seu art.º 2.º, que, «no Ultramar, depois de saneada», seria reorganizada «em Polícia de Informação Militar, nas províncias em que as operações militares o exigirem» (Decreto-lei n.º 171/74). Logo após o golpe militar, em Junho de 1974, já tinham sido detidos em Portugal cerca de mil membros da polícia política, incluindo indivíduos considerados informadores. Em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, isso só viria a acontecer meses depois, em virtude da dinâmica do próprio movimento decorrente do 25 de Abril, que forçou à imediata descolonização. Neste período, assistiu-se também, com a ajuda de oficiais militares, à fuga de diversos inspectores da PIDE/DGS, alguns com responsabilidades em casos de assassinato.
Em final de Junho de 1974, foram criados a Comissão de Liquidação da PIDE/DGS, que deu por concluída a sua missão em Fevereiro de 1976, e o Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa (SCE da PIDE/DGS e LP), com, entre outras, a função de instruir os processos-crime de inculpação dos membros da polícia política. Foi à guarda do SCE da PIDE/DGS e LP, mais conhecido por Comissão de Extinção da PIDE/DGS, inicialmente sob tutela do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e depois da Junta de Salvação Nacional, que ficaram os arquivos da PIDE/DGS.
A primeira Comissão de Extinção da PIDE/DGS, começou por ser da responsabilidade imediata do comandante Conceição Silva, que, em Agosto de 1974, informou estarem detidos 927 elementos da DGS e 44 informadores. Ao fim de 4 meses de trabalho, a secção de investigação da Comissão de Extinção afirmou ter 116 processos judiciais já prontos, relativos a elementos presos, e que 58 membros da ex-polícia política estavam em liberdade condicional.
No período a seguir ao golpe militar de 1974, ocorreram movimentos sociais que se foram progressivamente radicalizando, no que se convencionou chamar pelo Processo Revolucionário em Curso (PREC), no contexto do qual a lei 8/75, de 25 de Julho de 1975, criminalizou os elementos e informadores da DGS, prevendo as penas a que eles estariam sujeitos em julgamento realizado em Tribunal Militar (Lei 13/75, de Novembro): consoante as responsabilidades provadas, seriam condenados a penas que variavam entre os dois a oito anos e os oito a doze anos de prisão. Eram recusadas, tanto a imprescritibilidade do procedimento criminal, como a suspensão das penas, bem como a sua substituição por multa.
O chamado PREC terminou em 25 de Novembro de 1975, com a vitória dos moderados do MFA, tendo dois diplomas - leis 16/75 e 18/75 - alterado algumas características da lei 8/75, abrindo possibilidade à libertação, enquanto aguardavam julgamento, de ex-elementos da polícia política. Em 5 de Dezembro de 1975, a Comissão de Extinção da PIDE/DGS passou a depender do Conselho da Revolução (CR), que nomeou o capitão Sousa e Castro para superintender aqueles serviços, que passaram presididos pelo general Manuel Ribeiro de Faria.
O CR, que tinha competência legislativa sobre a definição dos contornos das leis, até à aprovação da nova Constituição da República, mandou publicar, em 13 de Maio de 1976, o DL 349/76, que criou atenuantes nos crimes dos elementos da ex-PIDE/DGS. Por exemplo, se estes tivessem mais de 70 anos de idade à data do julgamento ou houvessem prestado serviço no Ultramar, colaborando com as Forças Armadas, ou tivessem estado às ordens destas, após 25 de Abril de 1974, designadamente na Polícia de Informação Militar, passariam a ser meramente condenados em suspensão de direitos políticos.
Ao tomar posse do seu cargo, o capitão Sousa e Castro daria conta que havia então 200 processos judiciais já organizados e 260 entregues ao tribunal. Por seu turno, acusado na imprensa de querer pôr uma esponja sobre o passado, ao libertar a maioria dos elementos da PIDE/DGS, o general Ribeiro de Faria informou que tinham sido postos em liberdade provisória, 1.222 elementos dessa polícia, entre os quais se contavam 204 informadores, 6 administrativos, 1 guarda prisional, 1.008 agentes, chefes, directores e 3 ex-ministros. Em liberdade definitiva, estavam 62 elementos (A Luta, 22/6/76)
Em Janeiro de 1977, a imprensa noticiou que, entre sete elementos da PIDE/DGS recém-julgados, nenhum iria ficar preso, pois que seis tinham sido condenados a penas de cadeia já expiadas com a prisão preventiva e um deles apenas havia sido sentenciado a suspensão de direitos políticos. No final desse ano, foi julgado um dos casos mais emblemáticos, relacionados com a polícia política: o caso do escultor comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE, em 1961. O ex-chefe de brigada da PIDE, considerado o autor material do crime, António Domingues, foi condenado a três anos e nove meses prisão, o que significava que, com a prisão preventiva já sofrida, apenas ficaria mais dez meses preso, o que causou forte indignação em parte da opinião pública. Em Maio de 1978, começou, por seu turno, o julgamento dos assassinos do general Humberto Delgado e da Sua secretária, Arajaryr Campos, mortos pela PIDE, em Fevereiro de 1965, que prosseguiria pelo ano de 1980.
Dois anos depois, após uma revisão constitucional, entrou em vigor a Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, que acabou com o CR e colocou transitoriamente o SCE da PIDE/DGS na dependência administrativa da Assembleia da Republica. Esta ficou de decidir do destino dos arquivos dessa polícia política, que viriam a ser transferidos para o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, em 1991, ano da extinção do SCE da PIDE/DGS, passando a ser consultáveis, com algumas restrições, em 1994.
Por seu turno, ao prestar contas, em Agosto de 1982, o SCE da PIDE/DGS declarou que mais de seis mil elementos dessa polícia já estavam com o processo judicial organizado, dos quais tinham sido levados a tribunal 1089, tendo sido mandado arquivar os processos relativos aos restantes 69%. Na maioria dos enviados para tribunal, a sentença não excedeu os seis meses já cumpridos em prisão preventiva e apenas 5,5% foram punidos a mais de dois anos de prisão. Num balanço realizado em Fevereiro de 1986, a Comissão de Extinção da PIDE/DGS e da LP, contabilizou o número total de sentenças atribuídas pelo Tribunal Militar a ex elementos e informadores da PIDE/DGS, até então (dados recolhidos nos arquivos do SCE da PIDE/DGS e da LP).

SentençaNúmero%
Soma2755100
Absolvidos1756
Suspensão de direitos políticos1074
Até 1 mês101437
De 1 a 6 meses84731
De 6 meses a 1 ano1726
De 1 a 2 anos39714
Desde 2 anos432
De notar que, com sentenças de um a dois anos de cadeia, foram condenados 8 elementos do pessoal dirigente, 30 inspectores, subinspectores e chefes de brigada, 315 agentes e motoristas e 44 informadores. Com sentenças de mais de dois anos, foram condenados 1 elemento dirigente, 15 membros do pessoal intermédio, 9 agentes e motoristas, bem como 18 informadores.