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15.2.15

Intervenção oral na sessão do cinema S.Jorge em 13 de fevereiro de 2015 (50 anos do assassinato de Humberto Delgado)


- No dia 10 de Maio de 1958, o general Humberto Delgado proferiu, numa conferência de imprensa, no Café Chave de Ouro, no centro de Lisboa, a célebre frase segundo a qual demitiria «obviamente» Salazar, se ganhasse as eleições presidenciais.
- A frase incendiou o país com uma vaga de esperança que tocou muitos portugueses, que saíram à rua no apoio ao candidato da Oposição ao regime.
- O governo de Salazar viu-se ameaçado de cair, mas foi defendido pela PIDE e, em particular, pelo Exército, a mando do ministro da Defesa Nacional, Fernando Santos Costa.
- A par do PCP, mas enquanto individualidade, Humberto Delgado tornara-se o inimigo n.º 1 ide Salazar, o qual havia que “destruir”.
- Humberto Delgado acabou por pedir asilo político na embaixada do Brasil e, em 20 de Abril de 1959, partiu para o exílio, onde permaneceu sempre activo na luta contra o regime salazarista. No final de 1961, entrou mesmo clandestinamente em Portugal, para chefiar uma tentativa de insurreição, iniciada com a ocupação do quartel de Beja.
- Como se sabe, Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos foram assassinados em Los Almerines, em 13 de Fevereiro de 1965, e o julgamento do crime só viria a ser possível, em Portugal, após 25 de Abril de 1974, ocorrendo entre 1978 e 1981.
- Segundo o libelo acusatório do Promotor de Justiça, Fernando da Silva Pais, Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, director, subdirector e chefe dos serviços de Informação da PIDE, teriam definido, no ano de 1962, o objectivo central de reduzir Humberto Delgado «à não actuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto».
- O Promotor de Justiça admitia que a missão da brigada da PIDE fosse a aniquilação física de Delgado, superiormente sancionada, mas depois houve um choque entre duas perspectivas, a do Promotor de Justiça e a dos juízes do 2.º Tribunal Militar Territorial. Ou seja, a do assassinato e a do rapto.
- O desfecho foi o acórdão de Julho de 1981, segundo o qual a polícia política apenas teria decidido o rapto e prisão do general
- Segundo os juízes militares, «o que aconteceu em Los Almerines teria sido fruto da impulsividade e precipitação de Casimiro Monteiro, em flagrante desobediência aos objectivos da missão» cit..
- Com a atribuição de todas as culpas apenas a Casimiro Monteiro, condenado à revelia a dezanove anos e oito meses de prisão, os juízes ilibaram do crime todos os outros membros da brigada.
- Álvaro Pereira de Carvalho – director dos serviços de Informação da PIDE – julgado em presença, viria a ser absolvido dos crimes relacionados com o «caso Delgado». Outro dos membros da brigada, julgado presencialmente, Agostinho Tienza foi sentenciado a 14 meses de cadeia, por crime de identidade falsa.
- Pelo mesmo motivo, Ernesto Lopes Ramos, que atraíra o general à armadilha espanhola, foi sentenciado, à revelia, a 22 meses de prisão.
- Por seu lado Rosa Casaco, o chefe da brigada, foi condenado também à revelia por seis crimes de falsificação e dois crimes de furto de documentos, a oito anos de prisão.
- Quanto a Agostinho Barbieri Cardoso e Fernando da Silva Pais, envolvidos, segundo os juízes, numa tentativa de raptar e prender Delgado, ficaram isentos da autoria moral do assassinato. Silva Pais tinha entretanto morrido e Barbieri Cardoso foi condenado à revelia, por quatro crimes de falsificação, a quatro anos de prisão.
- O tribunal afirmaria ainda que não se tinha tratado de um crime político, pois os réus tinham actuado no cumprimento das suas funções policiais, e considerou amnistiados ou prescritos vários crimes.
- O ministro do Interior, Alfredo Santos Júnior, e Salazar também ficaram isentos de qualquer autoria do crime.

- Ainda hoje o que se passou realmente em Los Almerines é motivo de debate, mas certo é que foram ali assassinados Humberto Delgado e Arajaryr Campos, por uma brigada da PIDE.
- Colocam-se algumas perguntas:
- Que papel tiveram os vários elementos da PIDE, Silva Pais, Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho, e os elementos da brigada assassina, na decisão sobre o tipo de opção tomada e foi esta de que haveria rapto ou assassinato? E, muito importante, que papel teve Salazar?
- Na versão já apresentada em tribunal pela acusação privada, o próprio facto de Casimiro Monteiro, um “homem de mão” assassino, ter sido incorporado na brigada dirigida por António Rosa Casaco, demonstraria que o objectivo era o assassinato.
- E Salazar conhecia o seu passado criminoso
- E já nem falo do cal transportados numa das viaturas da brigada.
- Por outro lado, Ernesto Lopes Ramos, um dos elementos da brigada, revelou que Humberto Delgado ia armado e procurou defender-se, ao ser fisicamente manietado por Casimiro Monteiro.
- Numa entrevista, dada no Brasil, onde se exilou, em 1998, reafirmou que o general estava sempre armado, assim acontecendo em Los Almerines.
- Ora, seria por isso expectável para a PIDE, que, ao saber ter caído numa armadilha, o general reagiria possivelmente a tiro.

- Quanto ao papel de Salazar no assassinato de Humberto Delgado, há interpretações diferentes, na ausência de documentação que o poderia esclarecer
- Em tribunal e fora dele, os elementos da PIDE e os seus defensores, bem como do ditador aventaram a hipótese de que Salazar não teria interesse na morte de Delgado, o qual já não constituiria para ele uma ameaça política, pois estaria isolado no seio da oposição ao regime salazarista.
- Pergunto: e o rapto com detenção do general e seu posterior julgamento em Portugal não representaria um perigo ainda maior, pelo seu impacto nacional e internacional?
- Parece aliás que essa escolha foi feita pela própria PIDE.
 - Após o 25 de Abril, foram descobertos por elementos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, Alfredo Caldeira e Fernando Oneto, relatórios dessa polícia política, acerca da Operação Outono, onde se dava conta do perigo real da organização revolucionária, chefiada por Delgado, que juntava portugueses e espanhóis. Num deles, datado de 1962, podia-se ler:
«Só uma saída se vê para que ele (o movimento revolucionário) não nos traga dissabores – ou a eliminação científica dos responsáveis, como processo de intimidação, ou então a repressão que nunca é uma maneira eficaz de evitar que no futuro eles voltem à acção». Assassinato, e não rapto com prisão.
- Pode-se também alegar que, pelo menos, a PIDE continuava a encarar o general como um adversário perigoso, que devia ser “neutralizado”.
- Mas, quanto a mim, também era esse o caso do ditador, que nunca esqueceu as eleições de 1958 e sabia, pela tentativa de Beja, que Humberto Delgado não deixaria de actuar, pelas armas, contra o regime.
- A “neutralização” do general – signifique isso o que significava – era portanto um objectivo também expectável da parte de Salazar.
- É provável que não tivesse sido este a lançar a «operação Outono», e que terá sabido da mesma quase na véspera do crime.
- O próprio Silva Pais diria que, inteirado por este da ida de uma brigada a Espanha, teria então aprovado tacitamente essa actuação, limitando-se a dizer: «Tenham muito cuidado.»
xxxxx
- Na caracterização histórica de um regime, quando faltam documentos e se tem de preencher as lacunas, deve-se analisar o que este fazia habitualmente, sem descartar porém a possibilidade de ter havido acções excepcionais.
- E, exceptuando nos teatros de guerra colonial, a partir de 1961, que são verdadeiramente outros casos e outra história, é um facto que, a partir de 1945, houve uma diminuição das mortes às mãos da polícia política.
- Mesmo assim, a PIDE foi responsável pelas mortes, nos anos 50, de pelo menos 9 presos políticos comunistas e, já na fase “marcelista”, pelas de um elemento da LUAR e outro do MRPP.
- Também não pretendo aqui desenvolver a eventual ligação internacional do «caso Delgado», mas deve-se lembrar que se vivia então em plena guerra fria e que governos e serviços secretos ocidentais também poderiam ter interesse na “neutralização” do general, como aconteceu com outros adversários políticos de regimes ditatoriais ou até democráticos.
- Recorde-se, por exemplo, o “desaparecimento” em Paris, em 29 de Outubro do mesmo ano de 1965, de Mehdi Ben Barka, opositor marroquino a Hassan II.
- Esta pista internacional está por explocar, como aliás diz num dossier hoje mesmo publicado da Visão História, o juiz conselheiro António Santos Carvalho, que investigou o caso Delgado.
- No entanto, é verdade que, em Portugal, a regra não era matar adversários políticos, para não provocar ondas no mundo ocidental, onde o País estava perfeitamente inserido internacionalmente, no âmbito da NATO e até da ONU.
- Além disso, tinha outras formas de neutralizar opositores, como, por exemplo, através das medidas de segurança.
- Ou seja, o assassinato de Humberto Delgado parecia não ter precedentes.
- Mas já a deslocação a Espanha, para raptar (ou matar) adversários políticos foi ensaiada pela PIDE, e sempre com a presença de Rosa Casaco.
- Germano Pedro, um dos participantes do “golpe de Beja”, que conseguiu fugir para Marrocos, foi atraído Algeciras, onde foi preso pela Seguridad espanhola, que o entregou a António Rosa Casaco.
- De novo, em Abril de 1964, este último, acompanhado por José Gonçalves, tentou raptar (ou matar), em Espanha, Manuel Tito de Morais, exilado na Argélia, que um informador (Ferreira da Silva) tentou atrair para Sevilha.
- O rapto acabou por falhar, porque Tito de Morais não apareceu e os raptores tiveram um acidente de automóvel à saída de Zafra, ficando José Gonçalves e Rosa Casaco gravemente feridos. Este contaria ter sido Barbieri Cardoso a ordenar essa operação.
- Não sei o que pensaram Salazar e a PIDE, nem se a «operação Outono» foi pensada como um rapto ou como um assassinato – o que objectivamente foi.
- Agora, o que me parece muito pouco provável, devido à caracterização que faço do regime salazarista e o que se conhece do relacionamento entre o ditador e a PIDE, é, que esta polícia não tivesse submetido o seu plano, a Salazar e que este nada tivesse ordenado.
- É que, contrariamente ao que se possa pensar, a PIDE não actuava de forma autónoma, nem era «um Estado dentro do Estado».
- Era, sim, um dos principais instrumentos do próprio ditador, que aliás  ia a “despacho” individualmente com os directores da PIDE.

- Para tentar interpretar o papel de Salazar na «operação Outono», recorre-se aqui, com as devidas precauções, à interpretação de Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler, onde o historiador mostra que, no Estado nazi, com múltiplas instâncias de decisão, o Führer estava longe de controlar tudo o que acontecia, embora fosse ele que tomava as decisões-chave em momentos cruciais.
- Mas não necessitava de delinear, do princípio ao fim, todas as suas decisões políticas, já que, rivalizando até entre si, os seus apaniguados ansiavam por concretizar a sua vontade.
- Interpretando os desejos de Hitler, levavam-nos à prática, «trabalhando no sentido que o Führer desejava» (working towards the Führer).
- Com as devidas distâncias e diferenças entre os regimes, português e alemão, até porque o Estado Novo era mais centralizado nas mãos de Salazar, que o regime nacional-socialista, pode-se afirmar que, para “solucionar” o caso Delgado, a direcção da PIDE terá «trabalhado no sentido dos desejos de Salazar».
- Isto é, terá interpretado a vontade do ditador, ao querer «neutralizar» o seu adversário político, tomando uma decisão sobre o que fazer relativamente a Humberto Delgado, assassinando-o, bem como a Arajaryr Campos.

29.9.10

Salazar democrata cristão?

Rio Tejo visto de um pavilhão da "Exposição do Mundo Português"
© imagem A.J.S

A entrevista do historiador Filipe Ribeiro de Menezes, autor de uma biografia recentemente editada sobre António Oliveira Salazar, dada à jornalista Ana Sá Lopes, do jornal I, coloca questões muitos interessantes.

Em primeiro lugar, queria deixar claro que o domínio da História e o domínio da Política são diferentes, tal como o são, aliás, os domínios da História, da Política e da Justiça. Mas esses campos não deixam de se cruzar, tanto mais quanto é recente o período analisado/ interpretado pelo historiador, e lido pelo leitor. Sobre o regime salazarista, a objectividade para a qual o historiador deve tender – sabendo que ela é inatingível -, não é uma questão importante para o cidadão político – que também está no historiador, mas sobre isso não me debruço agora -, dado que este não pretende ser neutro, mas tomar “partido” e utilizar frequentemente o passado para intervir sobre o presente.

Esta não é tarefa do historiador, como o é Filipe Ribeiro de Menezes. Dito isto, ao dar-se uma entrevista - e esta é frequentemente mais da autoria do ou da jornalista que a faz do que do entrevistado - sobre temas «não neutros», o historiador deve ter o cuidado em medir as palavras, sobretudo quando o objectivo do jornal é procurar provocar, chamar a atenção com frases simples e simplistas, quando aborda um período que sabe ter ainda repercussões sobre a actualidade política. E, pode-se dizer que nessa perspectiva Ana Sá Lopes teve sucesso, pois conseguiu pelo menos com o título que escolheu «Ribeiro de Menezes. “Salazar era um democrata-cristão convicto”», que muitos lessem o seu artigo com curiosidade e a ele reagissem.

Pode-se até dizer que o artigo tem o mérito de espalhar pela opinião pública o que habitualmente está apenas na academia. O mérito deve-se aliás em primeiro lugar ao historiador, que ousou fazer uma biografia desenvolvida sobre Salazar. Mas tem também o defeito de reduzir, ao simplificar, o debate, transformando-o numa posição política, atirando-o para um campo diferente da historiografia. Só para dar outro exemplo de como a história, enquanto disciplina, que procura interpretar uma realidade do passado multifacetada, sem se preocupar com a influência que ela possa ter sobre o presente, difere do jornalismo, sobretudo aquele que por vezes é praticado em Portugal, que pretende por via indirecta actuar sobre a actualidade, veja-se como a jornalista Ana Sá Lopes pergunta a dado momento: «Porque é que na sua opinião não faz sentido falar de Salazar como "fascista"? Isto é uma heresia para a esquerda».

Esta pergunta é absurda para um historiador, e este não tem como responder, seja ele de esquerda, de direita, ou ao centro, porque felizmente já não se está em Portugal na fase em que dizer que Salazar era ou não fascista distingue quem o diz, enquanto anti-fascista e fascista. No início dos anos oitenta, escassos anos após 25/4/1974, isso acontecia nos debates, em que se misturava história com política. Hoje, há historiadores, enquanto cidadãos de direita política que consideram o regime salazarista como fascista e historiadores, enquanto cidadãos de esquerda, que o consideram autoritário. Ou seja, consoante os períodos, o Estado Novo foi considerado “fascista” ou “tendencialmente totalitário” por aqueles que realçaram as suas semelhanças com o fascismo italiano, ou foi caracterizado como uma ditadura “autoritária” na qual não se teria feito sentir a “tensão totalitária” pelos que, pelo contrário, valorizaram as diferenças entre os dois regimes.

Ninguém entre todos estes historiadores está a “branquear” ou “desculpabilizar” um regime que, sem qualquer dúvida, foi nefasto para os portugueses, está antes a caracterizá-lo. Certo e pacífico para todos é que o Estado salazarista pertenceu à corrente comum de ideologias antiliberais e de ditaduras nacionalistas autoritárias e fascistas que, em reacção contra-revolucionária à crise do liberalismo, assolaram a Europa no período entre-guerras. Por outro lado, quer se responsabilize Salazar por ter recusado voluntariamente, por razões ideológicas, o fascismo e o totalitarismo, quer se atribua a ausência destas características ao tipo de sociedade rural e à história específica de Portugal, também é um facto que o regime português se distinguiu, na sua essência, por exemplo, do nacional-socialismo alemão.

Quanto à questão levantada na entrevista: era Salazar ou não um «democrata-cristão convicto»?

Em primeiro lugar há que dizer que esta ideia não é nova na historiografia portuguesa relativa ao salazarismo, tendo já sido transmitida por Manuel Braga da Cruz, que, no seu livro, editado em 1980, não por acaso intitulado As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo (editora Presença), analisou as origens do pensamento de Salazar, dando importância à democracia cristã presente na sua militância católica de juventude.

Em História, é fundamental apresentar o contexto, a cronológico e qualificar os termos. Ora o termo democracia-cristã teve diferentes conotações, conforme as épocas e as formas como era utilizado? Sem querer aprofundar muito, pode-se considerar certamente que a maioria das pessoas identifica essa ideologia de cristãos (católicos) como algo que teria surgido em Itália, no pós-guerra, onde existiu um partido democrata-cristão, com essa qualificação. No Portugal dos anos sessenta, concretamente em 1965, António Alçada Baptista e alguns católicos chamados progressistas – enquanto outro se radicalizavam -, também tentaram criar um partido com essa denominação, tendo aliás nisso recebido o apoio de outros oposicionistas, entre os quais se contou Mário Soares. A tentativa falhou não só porque Salazar, que não permitia qualquer partido, além da «apartidária» (segundo ele) União Nacional, no seu regime anti-democrático, e a sua polícia política, PIDE, prontamente a travaram, como mobilizaram a hierarquia da Igreja católica, em particular o Cardeal Cerejeira, para disso demoverem essas ovelhas tresmalhadas do catolicismo.

Mas então porque se diz que Salazar - e já agora acrescento Cerejeira -, eram democratas-cristãos? Basicamente, porque os dois, nos anos dez do século XX, foram militantes católicos, tendo feito parte tanto do Centro Académico da Democracia Cristã (CADC veja-se o nome) como do Centro Católico Português, criados na sequência da directiva do papa Leão XIII, que introduziu o catolicismo social e a política chamada de ralliement, no final do século XIX. Através desta, a Igreja Católica reconheceu a legitimidade do Estado liberal, recusando o caminho da revolta e da sedição contra ele e defendeu a união entre os católicos, até então ligados, na sua maioria, aos monárquicos e desunidos entre si, capacitando-os para a actividade política enquanto cidadãos, a fim de adequar as leis à defesa da religião e da Igreja.

Em 1892, Leão XIII enviou aos bispos franceses uma carta, onde eram definidas as relações entre os católicos e o Estado liberal. Em nome da obediência à autoridade, considerada como emanando de Deus, e da prossecução do «bem comum», o Papa incitava os católicos a inserirem-se no jogo político, actuando de forma supra-partidária para defenderem os interesses da Igreja. Três anos depois, os principais dirigentes católicos e os bispos portugueses acataram essa política de Ralliement de Leão XIII, retomada em 1914 por Bento XV, que dava flexibilidade ao Episcopado e aos militantes católicos para se adaptarem ao poder e com ele negociarem.

Indiferente e independentemente do regime vigente, fosse ele monárquico-liberal ou republicano, os católicos passaram assim, segundo a directiva papal, a ser mobilizados para a criação de partidos confessionais e associações sociais, para actuarem social e politicamente nos seus países. Entre estes partidos e estas associações, contaram-se os Círculos Católicos de Operários e os Centros Académicos, criados em 1898, com o objectivo de influenciar o poder político e recristianizar a sociedade. Em Portugal, o primeiro centro académico católico a ser criado foi, em 1901, o Círculo de Estudos (CE) de Coimbra, também conhecido pelo nome de «A Católica», que viria a denominar-se, dois anos depois, Centro Académica da Democracia Cristã (CADC), que pugnou pela actuação social e o pluralismo político dos católicos, segundo a chamada linha da democracia cristã.

Diga-se que, apesar do nome, esta era anti-democrata e antiliberal, bem como anti-individualista, defendendo a chamada “democracia” orgânica e corporativa, tal como o foi o Estado Novo salazarista. Erguia-se contra as tentações modernistas baseadas no legado iluminista e o republicanismo, mas também recusava que os católicos ficassem reféns ou fossem instrumentalizados pelo conservadorismo monárquico e integralista, com aspirações restauracionistas.

Nos anos dez do século XX, numa época em que estava na moda «o Politique d´abord», da Action Française de Charles Maurras, os chamados democratas-cristãos portugueses que formaram o CADC e se integraram no partido do Centro Católico Português, dos quais Salazar e Cerejeira foram destacados militantes e dirigentes, tentaram retirar a bandeira do nacionalismo aos republicanos e enquadrar e formar uma elite católica, com o objectivo de defender uma terceira via, alternativa ao Estado monárquico e ao regime republicano.

Depois, entre 1910 e 1913, viveu-se, como se sabe, em Portugal, um período em que o catolicismo constituiu o centro da «questão religiosa», assistindo-se a um processo de desconfessionalização do Estado português, à ruptura diplomática com a Santa Sé, ao encerramento das comunidades congregacionais, à expulsão e exílio de religiosos, bem como na promulgação de medidas laicizadoras. Entre 1913 e 1919, assistiu-se ao surgimento da resistência e reorganização católicas e de novos protagonismos, acompanhado por um lento processo de apaziguamento, marcado pela convocação à união e à intervenção pública dos católicos por parte do episcopado, que acatara a linha “democrata-cristã”. Entre 1919 e 1926, houve uma progressiva pacificação caracterizada pelo restabelecimento da autoridade eclesiástica diocesana, pelo esforço da intervenção unitária dos católicos, em que a questão de regime – republicano ou monárquico – foi secundarizada, pelo reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé, e pela reorganização da presença de congregações. Esta última fase culminara com o Concílio Plenário em 1926, no mesmo ano em que o golpe de Estado militar de 28 de Maio derrubou o regime republicano e, posteriormente, com a criação da Acção Católica em 1933.
A meio desse caminho, Salazar chegou ao ministério das Finanças, em 1926, por um curto período, e dois anos depois, para ficar nessa pasta através da qual passaria anos depois a controlar o aparelho do Estado. A ida de Salazar, dirigente do Centro Católico Português (CCP) para a pasta das Finanças, terá contado com o apoio decisivo da Igreja católica. A partir de 1928, foi, por exemplo, apoiado pelo diário do episcopado, Novidades, que se revelou um claro defensor da sua política financeira junto dos militares conservadores, mas republicanos, que tinham tomado o poder em 1926 e o hegemonizaram até 1930.

No entanto, as alterações benéficas para a Igreja verificadas ocorreram num quadro jurídico de separação, que se manteria posteriormente no salazarismo, ao mesmo tempo que a intervenção católica se ia assumindo como que acantonada à área religiosa e social. Ou seja, apesar do envolvimento político-militar de católicos contra a República, prevalecia, no plano institucional, a tendência de ralliement, que remetia a actuação pública dos católicos à pugna eleitoral e à reforma do regime, sem sedição.

O ano de 1930 foi o da hegemonização do governo militar por Salazar, que proferiu então, o discurso «Princípios fundamentais da revolução política», onde explicava por que tinha criado a União Nacional (UN) e se demarcava tanto da democracia liberal, como do totalitarismo, contrapondo, a «um e outro extremo», um «Estado forte, mas limitado pela moral, pelos princípios dos direitos das gentes, pelas garantias e liberdades individuais». Este Estado, que devia ser tão forte que não precisava de ser violento, segundo as palavras de Salazar, responderia à «ânsia de autoridade e disciplina» que, segundo o então ministro das Finanças, agitava as novas gerações.

Abrindo o caminho ao Estado Novo, regime ditatorial civil, Salazar propunha assim uma «nova ordem de coisas», que, segundo ele, melhor se ajustasse ao temperamento e às necessidades dos portugueses. Depois, Salazar explanava por que a recém-criada UN era diferente dos partidos, cabendo nessa União todos os defensores de um Estado forte, autoritário, anti-partidário e anti-democrático, fossem eles republicanos ou monárquicos do Integralismo Lusitano ou da Causa Monárquica. Quanto aos católicos, foram confrontados com a escolha entre aderirem à UN ou manterem-se no Centro Católico Português (CCP). Embora tivesse sido um dos fundadores e definidores da linha do Centro Católico, nos anos vinte, Salazar manifestou então a opinião de que este se deveria transformar em associação social, prescindindo da acção política, doravante deixada à UN. Quanto aos pouco católicos “democratas-cristãos”, foram remetidos para a oposição, que eles engrossariam a partir de 1958, já com o nome de católicos progressistas.

Salazar democrata - cristão?

19.4.10

A fuga que derrotou Salazar e a Pide, há 50 anos

Juan Muñoz
Towards the Shadow, 1998
Private collection © The estate of Juan Muñoz
Photo: Tate


Evasões de presos políticos durante o regime salazarista, houve-os desde a criação, em 1933 da polícia política – PVDE -, e até 1961, quando, na sequência das ousadas fugas colectivas de Peniche e de Caxias, a PIDE e os Serviços Prisionais colocaram “trancas à porta”. Antes de 1945, fugiram do forte de Peniche, situado junto ao mar, Francisco Horta Catarino e José dos Santos Rocha, em 2 de Maio de 1936, bem como Álvaro Marques Saraiva e António Branco, em 19 de Julho de 1938. Após a criação da PIDE, as fugas de Peniche tornaram-se mais difíceis. Mesmo assim, conseguira escapar desse forte Joaquim Pinto Portela, em 1946, e, na noite de 2 para 3 de Novembro de 1950, dois funcionários do PCP, Jaime Serra e Francisco Miguel Duarte, embora o segundo tivesse sido recapturado. Três anos depois, foi a vez de se evadir, na madrugada de 19 de Dezembro de 1954, o dirigente comunista António Dias Lourenço. Tratou-se de uma fuga muito arrojada, pois envolveu serrar uma abertura na almofada inferior da porta da cela de «segredo» onde ele estava encarcerado, de castigado, descer os vinte metros até ao mar, através de uma corda a partir de três mantas e nadar até terra.

Foi porém a fuga colectiva de Peniche, que ocorreu há 50 anos, em 3 de Janeiro de 1960, que foi a mais importante, audaciosa e bem sucedida evasão. Com a fuga colectiva de Caxias, ocorrida no ano seguinte, com outros 8 elementos do PCP, a de Peniche ficou na memória e na história do PCP, mas também da oposição ao regime, como uma estrondosa vitória desse partido contra o governo ditatorial e a PIDE, em particular. Conseguiram então escapar da fortaleza os dirigente do PCP Jaime Serra, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Álvaro Cunhal, Guilherme da Costa Carvalho, José Carlos, Carlos Costa, Rogério de Carvalho Joaquim Gomes dos Santos, Francisco Martins Rodrigues, bem como José Augusto Jorge Alves, um soldado da GNR de serviço em Peniche, que facilitou a fuga..


Jaime Serra relatou como decorreu a evasão. Contou que as condições de segurança do forte de Peniche tinham sido então reforçadas e que os «presos considerados “mais perigosos” haviam sido concentrados no terceiro piso, a sua maioria em celas individuais de alta segurança». Era ali que se encontrava Álvaro Cunhal e os três novos “hóspedes” acabados de chegar em Janeiro de 1959, Joaquim Gomes, Pedro Soares e o próprio Jaime Serra. Passado o chamado “período de observação”, começaram a ter recreio em comum e formaram, com outros, «um organismo restrito com a incumbência exclusiva de estudar sistematicamente todas as hipóteses de fuga». Numa «dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa através das grades da janela da sua cela, com o GNR que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves», concluindo que este era «uma pessoa revoltada».

Por outro lado - acrescentou Serra -, em «virtude de um comportamento calculado, na relação com os carcereiros», os presos haviam «conquistado nesse período uma série de “regalias”», que aumentaram as possibilidades de contacto entre os presos. Dessa forma, nos «últimos meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então pelos camaradas Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço». Leia-se a descrição de Serra da fase seguinte da fuga:

«A segunda fase da operação desenrolou-se no exterior do bloco prisional, sob a responsabilidade do guarda Jorge Alves.

Como estava previsto, juntamente com o camarada Álvaro Cunhal, constituímos o primeiro grupo a percorrer, sob a capa do guarda Jorge Alves, a distância que nos separava de uma horta existente num terreno subjacente à muralha da Fortaleza por onde íamos descer.

Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da “corda” de tiras de lençol por onde descemos.A partir daí tudo foi fácil. Saltámos o último obstáculo, o muro exterior do fosso, e encontrámo-nos de imediato a atravessar o “largo do jogo da bola” misturados com muitos populares que vinham de assistir ao jogo de futebol, discutindo em voz alta o seu resultado. Chegámos assim ao local de encontro previamente marcado, onde nos esperava um camarada conhecido, ao volante do seu carro. Ali aguardámos a chegada dos outros camaradas fugitivos que, segundo o combinado, deveriam participar connosco na retirada, entre eles o Joaquim Gomes e o guarda Jorge Alves» (Jaime Serra, Eles Têm o Direito de Saber, Ed. Avante!, 1997).

A fuga do forte de Peniche foi profundamente analisada, nos escalões mais altos do PCP, num trabalho de crítica e procura das «razões do êxito» e das «deficiências verificadas». Da discussão resultou um documento da Comissão Política do CC desse partido, de Maio de 1960, onde eram consideradas seis «razões» para o «êxito»: a cuidadosa e demorada preparação e organização; a coordenação da actividade no interior e exterior; a concentração de preocupações, recursos e quadros; a preparação no interior, na base da centralização da responsabilidade num organismo restrito, harmonizada com a prática de trabalho colectivo e de discussão democrática; coragem, serenidade e disciplina e os sentimentos antifascistas do povo português. Quanto às deficiências, foram apontadas três, verificadas no interior da cadeia, e seis, que ocorreram no exterior. Entre estas, contaram-se a perda de documentação, antes da fuga, cuja apreensão pela PIDE poderia ter inutilizado todos os esforços; falta do aviso combinado fixando a data; marcação de um sítio em lugar diferente do combinado e execução de outro sítio também em lugar diferente do combinado e desconhecimento do trajecto e insuficiente estudo dos troços, que provocaram demoras na retirada (Arquivo do Tribunal da Boa Hora no ANTT, proc. 92/62, Octávio Paro e Albina Fernandes, caixa 703, 2.º juízo, volume 20, fl. 1071, «A fuga do forte Peniche»).

José Dias Coelho, funcionário do PCP que viria a ser assassinado pela PIDE, no ano seguinte, afirmou que, «depois da fuga, o capitão Neves Graça foi demitido do cargo de director da PIDE, e substituído pelo tenente-coronel Homero de Matos», dando a entender que a demissão foi consequência directa da evasão. É um facto que o período de 1959/1960, foi marcado por «dois factos sensacionais», que, segundo Mário Soares vieram «destruir o “mito” de infalibilidade da PIDE, demonstrando tratar-se de uma organização fundamentalmente “burocrática”, um colosso com pés de barro, que só descobre, afinal, aquilo que os presos lhe dizem, mediante “confissões», as mais das vezes arrancadas por violência. Os dois factos foram as fugas do capitão Henrique Galvão, do hospital de Santa Maria, e dos dez dirigentes do PCP, do Forte de Peniche, «dois golpes» com os quais «o prestígio da PIDE ficou singularmente abalado», tendo sido «indescritível a alegria que qualquer deles provocou no comum da população, mesmo entre a gente não politizada». Depois, «duas outras fugas haviam de comprovar este acerto»: a «proeza invulgar de um grupo de dirigentes do partido comunista, que conseguiu fugir do Forte de Caxias, prisão privativa da PIDE ultra-controlada, aproveitando um carro blindado de Salazar - facto que ocorreu em Dezembro de 1961; e, em 1969, a fuga da prisão da PIDE, do Porto, do dirigente revolucionário do LUAR, Hermínio da Palma Inácio (Mário Soares, Portugal Amordaçado, Arcádia 1974)
 
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