10.10.11

«Sangue do meu Sangue», de João Canijo | Obra-prima, cinema, cinema, carapaus e gente. E actores.


Façam o favor de não perderem este filme
Maravilha. Maravilhada, foi como saí da sala de cinema, depois de ter assistido ao magnífico filme de João Canijo, «Sangue do meu sangue». Não, nunca é dita essa frase, e tem tudo a ver com isso. O amor, incondicional. Mas também tem a ver com, finalmente, vermos um almoço com salada de alface, tomate, e cebola e carapaus, porque as sardinhas… Almoço que corre mal, como muito corre mal, no seio de um quotidiano que nem sempre é mau. É quotidiano. Claro que ninguém comeu os carapaus, embrulhados em «glad-paper», de forma arrumada por Márcia. O filme está aliás recheado de arrumação, de vida na cozinha, sopas várias, de gente à volta da mesa, de mulheres a cortar cebola, sempre a trabalhar, a perguntar se havia chocos na praça.
Da sala de cinema cheia, os espectadores saíram calados, num silêncio admirativo, concordante, assertivo, maravilhado. Depois, deve acontecer-lhes como a mim me aconteceu. Não parei de falar do filme, das cenas, da linguagem do que cada um viu, intuiu ou ouviu. Nunca se sabe o que se deve seguir: a cena principal ou aquele que se ouve, vê de relance, se intui. Sim, porque há escolhas a fazer pelo espectador. Entre ouvir a televisão (que poucos vêem, curiosamente, a não ser o jovem João Carlos, porque a vida dos outros é absorvente), sempre aberta – a transmitir futebol ou telenovela ou pornografia, ou o noticiário, em casa do Senhor Dr. Mas o espectador também tem à escolha entre ver o que o filme mostra, em primeiro plano (?), ou nos vários planos laterais, superiores ou inferiores.
O filme mostra a pluralidade de Lisboa, duas das várias Lisboas, com uma incursão por um café, do centro. Uma Lisboa, onde, no café, e fora dele, há diversas cenas, todas lisboetas. Lisboa privilegiada, estragada, separada e cada vez mais pobre e selvática. Sim, porque o bairro Padre Cruz é tão melhor do que o outro bairro, africano, labiríntico de onde não se sai, mas também do hip hop e do gaffitti talentosos. Uma Lisboa, onde há alguma mobilidade social - o Senhor Dr. veio do Padre Cruz, mas já não fala como os outros, mas também Cláudia (na faculdade) e a Márcia não falam como o João Carlos e a Ivete. O que será a visualização deste filme no Bairro Padre Cruz, ou noutro bairro periférico?
Numa breve passagem pela «net», vi que o Expresso “contava” a história” desta forma: «Rita Blanco surge como a mãe de uma rapariga que se envolve com um homem casado de uma classe superior». Ok. Está bem. A história é telenevolesca, da vida trata, porque a telenovela vai buscar à vida. Porque a Fedra, a Oresteia, Édipo Rei tratam da vida. A história é uma tragédia grega, queirosiana, neo-realista
E os actores, que maravilhosos, todos sem excepção? E a direcção de actores (não por acaso, o argumento e os diálogos são assinados por actores no genérico final). O filme é um autêntico festival de cinema, com influências do «método», de John Cassavetes ou Mike Leigh (de que o realizador tanto gosta), mas também de outros. Eu lembrei-me de Ettore Scola. Por falta de espaço não refiro nenhuma personagem em particular, pois todos são maravilhosos, de uma densidade e de uma maturidade que eu achava que o cinema português não conseguia atingir. Enganei-me e que contente estou por me ter enganado.
A mãe Márcia (la mamma, a estrutura vertebral daquela gente toda, disposta a tudo fazer pela filha), a filha Cláudia (linda sardenta, apaixonada, desiludida, precoce e adulta à força), o filho João Carlos (com olheiras, que nada faz a não ser criticar o modo como os carapaus estão assados, vocacionado para ser um pequeno bandido com a prisão como futuro, mas justiceiro), a tia Ivete (que personagem, linda, preocupada com a beleza a definhar, ouvindo as vizinhas, dando e sacrificando-se,mas revoltando-se na cena mais terrível do filme, o cancro mama), o namorado da filha César (digno, segurança no supermercado, talentoso (?), o amante da filha, o Senhor Dr. (na realidade, Beto), o namorado da mãe Hélder (Nini, chega aqui!), e o traficante (o único totalmente sinistro), será que tinha nome? O Sr. Dr. também só tinha nome quando vivia no bairro Padre Cruz.
Pois tudo parte desse bairro e de um zoom da casa da família ou dos que lá entram porque são da “família” enquanto são da família. Fala-se, grita-se, pouco se chora, a não ser o espectador, naquela cena extraordinária da mãe com a filha. A mim aconteceu-me. Há muito não me tinha emocionado tanto. O filme mostra o amor incondicional (lembrei-me do controverso, mas também maravilhoso filme de Mike Leigh) da mãe pela filha, da tua pelo sobrinho, mas também do «Nini». Aquele que no fim só traz uma pequena embalagem de leite, porque a Márcia nada mais pediu.
Muito haveria a dizer, mas um filme é para ser visto e é de cada um, quando é um grande filme como este é. Cinema puro, de grande planos, que convoca permanentemente o nosso voyeurismo sobre a vida de gente que sofre, que está indefesa perante a adversidade, mas sistematicamente a e continua. E o filme convoca também a emoção, pura. Que saudades daquelas pessoas todas. Quero vê-las de novo. Quero ver o filme de novo. Trata-se de uma obra-prima. Não tenho dúvida que vai ficar na história do cinema, e não só do cinema português.
Ficha Técnica: Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo
Produtor: Pedro Borges
Ano: 2011
Género: Drama Duração: 140′
Elenco: Rita Blanco (Márcia Fialho)
Anabela Moreira (Ivete Fialho)
Cleia Almeida (Claúdia Filipa Fialho)
Rafael Morais (Joca Fialho)
Marcello Urgeghe (Alberto Vieira)
Nuno Lopes (Telmo Sobral)
Beatriz Batarda (Maria da Luz)
Fernando Luís (Hélder/Nini)
Teresa Madruga (Dona Judite)
Teresa Tavares (Sandra Vanessa)
Francisco Tavares (César Chaves)
Wilma de Brito (Érica)

24.9.11

Espiões na Costa do Sol portuguesa durante a II Guerra Mundial


Hotel Palácio, Estoril (Portugal)Sala de refeições. Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais: 1933-1983. [CFT003 005168.ic]
Durante a II Guerra Mundial, a Costa do Sol, e em particular o Estoril, viveu, curiosa e contraditoriamente, um momento de pujança. Aliás, num momento em que a Europa estava a ferro e fogo, com populações pela estrada a fugir das bombas e do black out que escurecia as cidades, Portugal tinha inaugurado, isolada e orgulhosamente a Exposição do Mundo Português, em Belém, então arredores de Lisboa, e a caminho da Costa do Sol.
Turistas, à época uma pequeníssima elite, só haveria alguns espanhóis e convidados pelo governo português. No entanto, os anos da II Guerra Mundial, entre 1939 – e já antes, desde 1933 – e 1945 foram em Portugal de turismo forçado para muitos dos perseguidos e fugidos à guerra e ao nacional-socialismo. Na Costa do Sol, além dos refugiados ricos, diplomatas e estrangeiros de passagem, também permaneceram, no período da II Guerra Mundial, muitos agentes secretos dos dois campos beligerantes, que se escondiam sob a capa de adidos diplomáticos. Foi isso que relatou o diplomata e escritor jugoslavo Miloch Tsrhanski, fugido de Roma, onde tinha sido adido de imprensa da Legação do seu país, antes de este ser invadido pelas forças do Eixo, em 1941, que esteve alojado no Hotel da Inglaterra, no Estoril.
Os agentes secretos da Alemanha terão escolhido o Hotel Atlântico, o Grande Hotel do Monte Estoril e o Hotel do Parque, enquanto o Grande Hotel da Itália, no Monte Estoril, e o Hotel Palácio eram os preferidos dos agentes secretos dos aliados, conforme afirmou Howard Whitman. Em Outubro de 1940, alojou-se no mesmo hotel o iraniano Nubar Gulbenkian, que colaborou com o MI 6 e, entre 19 e 24 desse mês, aí se instalou de passagem, Isaiah Berlin, então a trabalhar no British Information Service de Nova Iorque. Curiosamente, a sua amiga Virginia Wolf caracterizou este último como um «swarthy portuguese jew». «Kim» Philby e o futuro escritor Graham Greene, autor de inúmeros livros de espionagem, passaram pelos hotéis do Estoril, enquanto agentes secretos britânicos. Outro escritor e agente secreto que se alojou no Estoril, em Maio de 1941, quando trabalhava para o Naval Intelligence Department britânico foi Ian Lancaster Fleming, o criador da figura de James Bond. Thomas Malcolm Muggeridge, outro elemento do Intelligence Service inglês, alojou-se na Pensão Royal do Estoril, em Maio de 1942, enquanto o espião jugoslavo Bocko Christitch se hospedou no Grande Hotel do Monte Estoril, em Agosto de 1941.
Em Cascais, viveu o conde Iwan Schouwaloff, um russo branco naturalizado holandês, próximo do capitão Agostinho Lourenço, chefe da PVDE, bem como dos serviços da Legião Portuguesa, que acabou por ser denunciado como espião nazi pelo jugoslavo Dusan (Dusko) Popov («Triciclo»). E espião duplo que estava na realidade ao serviço dos britânicos, através do «double cross system» (XX Commitee, organismo do MI5 – serviço secreto inglês, especializado em agentes duplos), Popov terá nomeadamente transmitido, aos britânicos, além do paradeiro do espião nazi Iwan Schouwaloff, informações sobre o projectado rapto do duque de Windsor, pela Gestapo, e sobre o ataque japonês a Pearl Harbour.
Outro dos espiões duplos, que esteve na realidade ao serviço dos ingleses, foi o célebre «Garbo» - pseudónimo utilizado para os britânicos -, cuja identidade permaneceu secreta até 1984, quando o autor Nigel West o identificou como Juan Pujol, natural de Barcelona. «Garbo» contactara os serviços secretos alemães em Madrid, através de «Frederico» (Gustav Knittel), convencendo-os de que, com o pseudónimo de «Arabel», espiaria por conta dos nazis, em Lisboa. Ao mesmo tempo, ofereceu-se para trabalhar com os britânicos, embora os seus préstimos tivessem sido recusados por duas vezes, por Samuel Hoare e Ronald Campbell, embaixadores britânicos, respectivamente em Madrid e Lisboa. «Garbo» acabou por ser aceite pela Intelligence Service britânica e escolhido para transmitir informações fictícias à Abwehr. «Garbo» ou «Arabel» começou a transmitir aos alemães notícias falsas sobre os recrutamentos que estaria a fazer, para a rede que dizia estar montar, para, na altura certa, em 1944, transmitir informações erradas sobre a localização do desembarque aliado, no continente europeu.
Esse plano de cobertura da invasão da Europa ocupada que consistia em enganar os alemães, sobre os ataques aliados, chamava-se operação «Fortaleza». Esta estava dividido em duas sub-operações, «Fortaleza norte», que dizia respeito a uma concentração fictícia, na Escócia, de tropas destinadas a atacar a Noruega, e «Fortaleza sul», que procurava enganar a Abwehr sobre a exacta localização do «Dia D», ou o «dia mais longo», dando a entender que o desembarque ocorreria na zona do Pas-de-Calais e não, como aconteceu, nas praias da Normandia.
Entretanto um amigo de Dusko Popov, desde os tempos de juventude, o oficial alemão Johann (Johnny) Jebsen, que trabalhava em Lisboa para os serviços secretos do Alto Comando Alemão – Abwehr –, oferecera-se, desde o verão de 1943, para colaborar com a rede britânica do duplo espião jugoslavo. No final de Janeiro de 1944, Dusko Popov transmitiu a Londres, um extenso relatório de Jebsen, a revelar nomes de membros da Abwehr, entre os quais estava o de «Garbo». Preocupados com o facto de Jebsen ficar a saber que «Garbo» era controlado pelo MI5 e, assim, apurar que a operação «Fortaleza» era uma fraude, os ingleses pensaram em tentar, junto das autoridades portuguesas, obter a sua expulsão de Portugal, para assim o isolar da Abwehr. Em 28 de Março de 1944, Jebsen informou os serviços secretos ingleses de que a Abwehr tinha começado a suspeitar de «Triciclo», mas afirmou que ele próprio tinha conseguido desviar as atenções dos alemães, acrescentando que até ia ser condecorado pelos alemães. No dia seguinte, ao deslocar-se à Legação alemã em Lisboa, para receber uma condecoração, foi espancado, violentamente interrogado e, em 1 de Abril, atirado e manietado para um automóvel de matrícula diplomática alemã, que atravessou a fronteira portuguesa. Entregue à Gestapo, foi executado no campo de concentração de Orianenburg, em Abril de 1945.
No Hotel Palácio do Estoril, também estiveram hospedados os actores Zsa Zsa Gabor, fugida da Hungria, em 1944, e Leslie Howard, que colaborou no esforço de guerra dos aliados. Este último partiu de Portugal, onde tinha vindo asssistir à exibição do seu penúltimo filme, «Spitfire, the first of the few», em Junho de 1943, para a sua derradeira viagem num avião da BOAC, abatido por caças alemães, no golfo da Biscaia. Leslie Howard também trabalhou para os serviços secretos britânicos pelo que poderá ter sido ele o alvo dos alemães, embora outro dos passageiros desse avião era Tyrell Shervington, director da empresa Shell em Lisboa desde 1922 e igualmente colaborador do serviço secreto britânico Secret Intelligence Service (SIS), em Lisboa.
O Estoril e a Costa do Sol portuguesa não foi só local de alojamento de espiões britânicos do SIS-MI6, do MI5, do MI9 ou do Special Operation Executive (SOE). Efectivamente, a embaixada inglesa enviou, em Março de 1943, a Salazar uma informação sobre três redes de espionagem alemã, constituída uma delas por Hans Friderick Grimm e Hans Scholz, que faziam parte de uma denominada «organização de Bremen», com agentes em Lisboa, na Madeira, na Horta (Açores), em Luanda e no Lobito (Angola), alguns dos quais foram presos e outros expulsos do país. Duas outras redes dedicavam-se, respectivamente, à transmissão de informações para a Alemanha e à espionagem naval: a rede «Kuno/Weltzien», ligada à firma Uwa e Weltzien, representantes em Portugal da Krupp, e a rede “Bendixen”, na qual se incluíam Ernst Schmidt, bem como alguns jornalistas e empregados portugueses da Radio Marconi. Em 8 de Outubro de 1943, por denúncia dos ingleses, foram ainda feitas rusgas pela PVDE portuguesa, no Estoril, às moradias Gira-Sol e Bem-me-Quer, propriedades, respectivamente de Wilhelm Lorenz e de Ralf Bendixen, onde foram encontrados transmissores-receptores de TSF. Além de Bendixen, muitos outros agentes alemães viviam no Estoril: por exemplo, Rolf Friederici adjunto do adido comercial, que substituiu, na Legação alemã em Lisboa, o elemento da Abwehr, Ludovico Von Karshoff, bem como Johan Georg von Wussow e Fritz Kramer, responsável por essa rede de espionagem alemã na Península Ibérica, residente na «Casa Atlanta», do Estoril

6.8.11

Da Assistência Social à Emergência Social (À atenção do Senhor Ministro da Segurança Social)



Eduardo Batarda, S/Título, 1971
 Talvez seja interessante, nos tempos actuais, saber alguns dados sobre a história recente portuguesa, no que se relaciona com a assistência e a previdência social nos diversos regimes, até se chegar ao ministério da Segurança Social. Por razões de espaço, fico-me pelos anos 40 do século XX.

-Entre 1916 e 1925, existiu o Ministério do Trabalho e Previdência Social

- Com o Estado Novo corporativo, passou a haver um Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social (1933-1950), depois, Ministério das Corporações e Previdência Social (1950-1973) e, posteriormente, Ministério das Corporações e Segurança Social (1973-1974)

- A Assistência Social era tutelada pelo Ministério do Interior, através do Subsecretariado de estado da Assistência Social (1940-1958) até ser criado o Ministério da Saúde e Assistência (1958-1973), depois transformado em Ministério da Saúde (1973-1974).

O «direito à assistência pública» foi consagrado, em Portugal, na Constituição republicana de 1911, ano em que também foi criado, em 25 de Maio, o Fundo Nacional de Assistência e a Direcção-Geral de Saúde. Dois anos depois, foi promulgada uma lei sobre a responsabilidade patronal pelos acidentes de trabalho e, em 16 de Março de 1916, foi criado o Ministério do Trabalho e Previdência Social. Em 25 de Novembro de 1925, o Ministério do Trabalho foi extinto passando a Direcção-Geral de Assistência, da sua tutela, para a do Ministério do Interior. Por seu lado, os Serviços de Saúde Pública, geridos pela Direcção Geral de Saúde, foram reorganizados ainda nesse ano de 1926, acontecendo o mesmo no ano seguinte a todos os serviços de assistência. A fiscalização de todos os estabelecimentos privados e a intervenção em tudo o que dizia respeito à assistência pública foram atribuídas à Direcção-Geral de Assistência, em 1931, no mesmo ano em que foi regulada a repressão à mendicidade no espaço público, também da competência do ministério do Interior, que tutelava ainda as polícias.

Em Julho de 1932, Duarte Pacheco, que acabara de ser nomeado para a pasta das Obras Públicas e Comunicações (MOPC) no primeiro governo presidido por Salazar, propôs que as verbas do Fundo de Desemprego passassem a ser aplicadas nos programas de obras públicas. Duarte Pacheco criou depois o Comissariado do Desemprego, organismo autónomo no seio do Ministério das Obras Públicas e Comunicações (MOPC), que ficaria assim responsável, até aos anos sessenta, pelo auxílio aos desempregados. O desemprego ficou, assim, até então fora do grupo de riscos que deveriam ser atenuados pela previdência social, e isso contrariamente ao texto do Estatuto de Trabalho Nacional, de 1933). A nova Constituição portuguesa de 1933, que já não incluiu o «direito» à assistência pública, afirmou, porém, que cabia ao Estado «coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais», no sentido de «defender a saúde pública», assegurar a «defesa da família», «proteger a maternidade» e «zelar pela melhoria das condições das classes coais mais desfavorecidas, procurando assegurar-lhes um nível compatível com a dignidade humana».

A discussão aprofundada sobre a assistência pública no Estado Novo iniciou-se, em 1934, no I Congresso da União Nacional, onde ficou claramente definido o papel «supletivo» do Estado relativamente às iniciativas particulares, nomeadamente da Igreja católica. Os dirigentes do Estado Novo e o próprio Salazar atribuíam a miséria em Portugal a dois defeitos principais: à preguiça e à imprevidência. A caridade, a cargo da Igreja e da iniciativa particular poderia atenuar a pobreza, mas não bastava para a eliminar, e quanto à assistência social, se fosse excessiva, acabava por humilhar as pessoas assistidas e por estimular o «parasitismo». Por isso, enquanto não se conseguisse modificar a «mentalidade» portuguesa, o Estado Novo propunha-se reduzir ao mínimo «as necessidades de assistência porque o mais importante era fazer a profilaxia da miséria e da simples necessidade pela previdência e ordenação de trabalhos públicos».

A Previdência Social, cuja lei de 1935 – não deve ser confundida com a lei da Assistência Social – não abrangia o meio rural e incluía apenas, entre os riscos que prevenia, a velhice, a doença, a invalidez, a morte e os encargos familiares nos sectores da indústria, comércio e serviços. Deixava assim a descoberto o desemprego – a cargo do Fundo do Desemprego do MOPC –, os acidentes de trabalho, as doenças profissionais, a tuberculose e a maternidade. A mendicidade continuou a ser um crime gerido por isso pelo ministério do Interior, que tanto tutelava as polícias como a assistência social. Em 1935, ano da criação da Lei da Previdência Social corporativa e do Instituto de Serviço Social em Lisboa, a Mitra foi colocada sob a dependência da PSP.

Para responder a reclamações da “opinião pública”, foi constituído, em 1937, no âmbito da Direcção Geral de Assistência, uma comissão de estudo para a reforma dos serviços de assistência segundo os novos conceitos introduzidos pela organização económica e social do Estado Novo corporativo, o qual deveria ter um papel orientador e coordenador relativamente a uma assistência que se desejava maioritariamente privada. Foi preciso esperar, no entanto, mais três anos para que fosse criado, em 1940, o Subsecretariado de Estado da Assistência Social, tutelado pelo ministério do Interior tinha, cujas atribuições relacionadas com a «gestão» da pobreza incluíam, desde a assistência aos que esmolavam «por virtude do reconhecido estado de necessidade», à repressão dos pedintes «por vício», que eram encerrados nos albergues de mendicidade, na dependência da Polícia de Segurança Pública.

Em 1944, numa conjuntura de crise, miséria e de desemprego da II Guerra Mundial, foi promulgado o Estatuto da Assistência Social, segundo o qual a assistência deveria ser prestada em coordenação com a previdência e com os organismos corporativos, não favorecer a «preguiça» ou a «pedinchice» e ter em vista «o aperfeiçoamento da pessoa e da família». Num folheto de propaganda sobre a assistência social em Portugal, editado pelo Secretariado de Propaganda Nacional após o final da II Guerra Mundial, considerava-se que os portugueses tinham uma «tendência natural à piedade, religiosidade e espírito de sacrifício» e que, por isso, lhes repugnava a «monstruosa teoria de Nietzsche de horror à piedade, de desprezo pelos fracos», baseada na ideia da «selecção natural». A assistência caberia, assim, em primeiro lugar, ao espírito caridoso dos portugueses e à iniciativa particular, e só depois ao Estado. Reconhecia-se o pioneirismo de Beveridge ao proclamar, na Grã-Bretanha, em 1942, «o escândalo da miséria» e ao rever as políticas utopistas da filantropia do século XIX, mas lembrava-se que a indispensável assistência pública não podia «suprir a assistência particular» nem impossibilitar a beneficência individual.

O mais sensato, num país onde, segundo o folheto, a miséria não tinha atingido «o grau verificado em outros países» e onde o povo se contentava com pouco, apesar do baixo nível de vida, seria «procurar modificar a mentalidade tradicional» e tornar a assistência «mais assente no dever de todos» do que «no direito dos pobres». As principais causas de miséria eram atribuídas, ainda nessa brochura, a «taras psíquicas», provocadas pela «degenerescência hereditária», pela sífilis e pelo alcoolismo, a situações sociais, entre as quais pontificava a falta de amparo às famílias numerosas, e, finalmente, a defeitos individuais, provenientes da industrialização e causadoras de relações degradadas entre patrões e assalariados. Ao definir os que deveriam beneficiar da assistência pública, o Estado Novo estabeleceu uma autêntica tabela classificativa de «maus» – ou «parasitas sociais» – e de «bons» pobres, a única categoria passível de ser apoiada.

Pós 25 de Abril de 1974
Ministério dos Assuntos Sociais e Ministério do Trabalho (1974- 1983)
Ministério do Trabalho e da Segurança Social (1983- 1987)
Ministério do Emprego e da Segurança Social (1987- 1995)
Ministério para a Qualificação e Emprego e Ministério da Solidariedade e da Segurança Social (1995- 1999)
Ministério do Trabalho e da Solidariedade (1999- 2002)
Ministério da Segurança Social e do Trabalho (2002- 2004)
Ministério da Segurança Social, da Família e da Criança e Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho (2004 - 2005)
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (2005-2011???

Quem tem unhas toca viola?



A obra de Musil, «O Homem sem Qualidades», que li há muito, começa, se a memória não me trai, com uma imagem de zoom cinematográfico que parte dos céus para afunilar o espectro de visualização sucessivamente, até chegar à rua, à casa e à personagem. No meu processo de zoom, parto da crise global que se vive actualmente num mundo à beira do abismo, para chegar à actual destruição da Europa - confesso que a U.E. é a minha utopia pessoal -, por várias razões, uma das quais se prende por estar a ser minada pela Direita neo-liberal, cuja política de austeridade não tem saída, na minha opinião. No entanto, e chegando à minha “rua”, nessa Europa neo-liberal de Direita, sem se afastar dela, Portugal está a viver um “fenómeno” específico, que advém da nossa história recente.

Eu penso que estamos a ser governados por jovens de Direita, cuja mobilidade ascensional social, como a da generalidade dos portugueses, foi possibilitada (e bem) pela democratização social, política e económica proporcionada pelo Estado social dos últimos 36 anos. Esta mobilidade ascensional social pode ser encarada como um bem que deve ser retribuído por aqueles que dele já beneficiaram, ao ser mantido, aprofundado, alargado a mais pessoas e deixado em herança aos que vêm depois de nós. Esta atitude implica a manutenção do Estado social, com o alargamento e aperfeiçoamento da Escola pública e a viabilização do Serviço Nacional de Saúde, para só falar nestes dois factores. Mas esta mobilidade ascensional pode ser encarada de outra forma: ou seja, como algo que já tendo chegado a alguns, fique por esses mesmos, pois consideram que «quem tem unhas toca viola» e que eles próprios se incluem nesse grupo. Com desprezo, acham que outros não tocam viola por não terem unhas, por culpa própria, mas como são muito «decentes» não os querem ver na rua, pelo que lhes reservam a assistência social caritativa, à qual são o nome de «emergência social».

O que se está a passar em Portugal há um mês, e rapidamente – não compartilho a ideia que nada está a ser feito, antes pelo contrário –, é, para mim, de bradar aos céus. Para só falar de duas “reformas” já concretizadas ou iniciadas, lembro-me das nomeações na caixa Geral de Depósitos – a preparar aliás o caminho para a transformação da mesma - e a compra do BPN pelo BIC. A propósito deste assunto, quem anda a explicar, na imprensa e TV, que a «verdade é que, com este acordo de compra do BPN, se encerra o mau negócio do passado» é… o Eng.º Mira Amaral, precisamente o advogado em causa própria, dirigente do BIC, que comprou o BPN. Até agora, também houve um aumento exponencial do preço dos transportes e um imposto de Dezembro – escondido e negado na campanha eleitoral -, reveladores de uma falta de sensibilidade social.

Mas o governo prometeu que vinha aí um vasto programa de assistência, perdão, «emergência social», cuja primeira medida acaba de ser apresentada. Decalcada num programa recentemente ensaiado em 42 (42!) apartamentos, em Vila Nova de Gaia, e trazido ao governo por um senhor com um nome da antiga Roma imperial (não, não é Júlio César), este programa consiste em o Estado distribuir casas, que uns compraram a crédito, sem agora as poder pagar e por isso entregues à Banca, por outros, a preços de saldo. Ou seja, os neo-liberais portugueses que tanto clamam contra o Estado põe este mesmo Estado a resolver questões de mercado e tira aos novos pobre, ou quase pobres que não tiveram «unhas para tocar viola», para entregar a outros pobres, «em emergência social», com certeza para ver se estes sabem ou não «tocar violas». Só tenho duas perguntas a fazer: esta medida não fere o princípio de igualdade constitucional? Quem, no Estado, vai escolher quem merece a casa que o outro deixou de merecer?

15.5.11

Às 17.30 h, hoje, 15 de Maio na Feira do Livro


(imagem retirada da net)
 Pavilhão da APEL recebe o último debate em torno das escolhas dos melhores livros de 2010. O tema de hoje é a não-ficção e os convidados são Miguel Real, Nuno Crato, Manuel Gusmão e Irene Flunsel Pimentel, moderados por Luís Ricardo Duarte. O encontro é as 17h00 (e o pavilhão tem ar condicionado).

Irene Pimentel - Entrevista de Anabela Mota Ribeira - PÚBLICA



(ler mais)
 

10.5.11

A CADA UM O SEU LUGAR - Lançamento livro dia 12 de Maio

O Círculo de Leitores
e a Temas e Debates
têm o prazer de convidar
para o lançamento de
A cada um o seu lugar - A política feminina do Estado Novo
de
Irene Flunser Pimentel
a realizar-se na livraria
Bertrand Picoas Plaza
(R. Tomás Ribeiro/R. Viriato, loja C0.9),
em Lisboa, no dia 12 de Maio,
pelas 18h30.
Teresa Beleza
apresenta a obra

28.4.11

Ao Professor, Intelectual, Historiador e Cidadão Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)


Há menos de uma semana, o historiador Diogo Ramada Curto publicou um excelente texto que já foi editado em post aqui no Jugular, pela Shyznogud. Tratou-se, sem que o autor o soubesse, de uma homenagem muito importante, segundo penso, ao intelectual, historiador, professor e cidadão Vitorino Magalhães Godinho, que acaba infelizmente de falecer. Diogo Ramada Curto evoca no seu texto o combate do historiador francês Marc Bloch e os «nomes dos intelectuais e historiadores portugueses que também lutaram pela liberdade – e por manter o estudo do passado fora das manipulações políticas -», citando em particular Jaime Cortesão, António Sérgio, Alfredo Margarido e precisamente Vitorino Magalhães Godinho. Ramada Curto considerou no seu texto que essa evocação «não é apenas um ato de justiça da nossa memória coletiva, europeia e portuguesa», mas pretende «ser, também, uma forma elevada de introdução a um debate que assume, hoje, particular intensidade: para que servem as humanidades, as ciências sociais e as universidades ou centros onde se ensinam e são objeto de pesquisa?»

Vou aproveitar a “boleia” de Diogo Ramada Curto para também prestar homenagem ao Professor Vitorino Magalhães Godinho, ao participar no debate, com a publicação de partes de um texto que redigi por ocasião do Dia da Universidade Nova, em 2008

«Neste início do século XXI, para que serve a universidade? Para que servem as ciências sociais e humanas? Para que serve a história?

Quanto à função da Universidade

A universidade não tem só um papel educativo, no sentido de se interessar apenas pelo que lá se apreende, mas deve interessar-se também pela forma como se aprende. Ela alimenta e forma a capacidade instintiva de compreender, de aprender a procurar. Ensina os estudantes a reflectir, a procurar um sentido, a identificar os problemas por eles próprios e a resolvê-los através de argumentos analíticos, apoiado em provas. Ensina a pôr em causa as interpretações que lhes são apresentadas, a pôr uma ordem no caos das informações, a verificar o que é estável no conjunto instável de informações que se fazem passar por conhecimento. Entre parênteses, na era da Internet, a universidade deve ensinar a utilizá-la, orientar para a pesquisa e, já agora, pelo caminho, dar um sentido à autoria, hoje perdido. A universidade também ensina muito do que a sociedade procura: o espírito de empreendimento, a capacidade de gestão, o trabalho de equipa, a adaptabilidade a várias situações e a utilização eficaz de competências específicas.

E as ciências sociais e humanas?

Isto tudo vale para as ciências sociais e humanas, cuja importância para a sociedade é infelizmente subestimada pela visão progressivamente instrumental da universidade, demasiado concentrada – embora bem – em outras ciências. Por um lado, há quem considere que as ciências sociais e humanas são inúteis e que seria melhor que fossem substituídas, pelo menos no liceu, pela gestão e pela informática. Por outro lado, já vai longe o tempo em que as saídas profissionais dos diplomados universitários pareciam estar garantidas e em que o investigador recém-doutorado em ciências sociais e humanas se definia por um método e pelo seu mérito, atravé do qual tinha acesso a um posto na universidade ou num centro de investigação.

É certo que essa situação, em Portugal, bem como noutros países europeus, também se aplica às outras ciências, mas tem talvez mais acuidade no campo das ciências sociais e humanas, onde – lembre-se – existe uma quase absoluta ausência de centros de investigação. (…) Pelo contrário, na Grã-Bretanha, há uma menor importância acordada à especialização e um doutor em filosofia ou história pode facilmente trabalhar num banco ou numa empresa.

Paralelamente, verifica-se também hoje de certa forma, em Portugal, uma acrescida procura social de produção dos cientistas sociais. Os especialistas de ciências humanas são cada vez mais solicitados a deixar o laboratório, a cátedra e a biblioteca, sendo convidados a intervir na sociedade, que por seu turno faz apelo às suas competências.

Não é porém unicamente com recurso ao argumento da «cultura geral» que se consegue explicitar o valor social, político e até económico e cívico do saber produzido pelas ciências humanas. Esta explicitação passa sobretudo por referir as competências que estas possibilitam adquirir no quadro académico. Passa também por mobilizar essas competências noutros contextos, que não sejam apenas os dos livros onde os conhecimentos são unicamente dirigidos aos colegas, pares, estudantes, aprendizes, eruditos ou mesmo autodidactas.

Entre as ciências sociais e humanas, conta-se a História

Em 2000, o professor José Mattoso, da FCSH da Universidade Nova de Lisboa dirigiu-se aos estudantes de História, para afirmar precisamente a utilidade e a necessidade dessa disciplina no mundo actual e em Portugal. Hoje, oito anos depois, as suas observações mantêm-se perfeitamente actuais, por isso vou aqui referir algumas, de forma telegráfica. Em primeiro lugar, continua a verificar-se hoje um alargamento da projecção cultural da História, revelador de que a licenciatura em nesta disciplina não serve só para dar aulas, mas também para responder a um enorme interesse e curiosidade por parte de sectores amplos da população. Interesse que também se exerce sobre outros profissionais, jornalistas, sociólogos, economistas, etnólogos, especialista em literatura, ou no campo das artes. Ao mesmo tempo, os historiadores exercem hoje uma variada gama de profissões e estão, geograficamente, por toda a parte, ocupando-se a investigar o passado de todos os lugares e de todas as regiões. O Professor José Mattoso explicitou as competências fornecidas pelos cursos de História, salientando a necessidade de se esbater a oposição estabelecida entre a investigação e a aplicação dos conhecimentos às tarefas da vida corrente.

A formação em História contribui para se adquirir a noção da infinita complexidade das formas de sociabilidade. Habitua a olhar para todos os acontecimentos como resultantes de causas e de condições muito variadas, conjugadas de forma aleatória. Habitua a descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças e das doutrinas. Habitua a detectar por que razão, sob aparências diferentes, se voltam a repetir situações análogas, se reproduz a busca de soluções parecidas ou se verificam evoluções paralelas. Habitua a aferir as informações recebidas segundo os seus diversos graus de credibilidade, a compará-las entre si para tentar descobrir os factos objectivos que lhes deram origem. Habitua a saber onde ir buscar os testemunhos necessários para obter e documentar as informações desejadas.

Hoje estamos a viver um período em que parece haver, na sociedade, um eterno presente, sem ligação, quer com o passado, quer com o futuro. Nem sempre foi assim, pois a relação com o tempo e a historicidade foi mudando ao longo dos séculos.

Antes do período contemporâneo, inaugurado pela revolução francesa reinava um regime de historicidade no qual a luz vinha do passado e não do futuro. O interesse pelo passado prendia-se com o objectivo de fazer do presente um melhor presente. Era esse o movimento do humanismo renascentista, ao procurar na antiguidade clássica as raízes para a construção de um presente ainda mais glorioso que o de antanho.

A partir do século XVIII, surgiu, na Alemanha, outro regime de historicidade, que recebeu a sua tradução politica, sob forma violenta, com a Revolução francesa. A história instalou-se na relação entre passado e o futuro, como tentativa de articulação desses dois elementos, para estabelecer um continuum entre passado, presente e futuro.

Depois, ao longo do século XIX, no campo académico, os professores de história e os historiadores tinham uma missão: fabricar a nação. As histórias nacionais eram teleológicas, escritas em função do futuro, um futuro de progresso e de Luzes. Hoje, após 1989, a ideia do progresso entrou em crise. Perdeu-se a abertura para o futuro e passou-se a viver uma historicidade «presentista», segundo a expressão de François Hartog.

Actualmente, vive-se um presente que é órfão do passado e do futuro, que fabrica cada dia o passado e o futuro de que necessita. Ora, é no investimento do futuro que o passado se tornava inteligível. Mas quando o futuro já não é o motor da sociedade e já não é objecto da esperança, apontando para a catástrofe, a história com grande «H» já não tem sentido, parecendo estar a transformar-se numa multidão de histórias particulares com pequenos «h». O que nada tem a ver – diga-se – com o fim da história. Por outro lado, com o fascínio pelo presente que conduz ao desinteresse de tudo o que se passou antes, o passado já não é convocado.

Há a ideia de que se pode viver ignorando o passado. No entanto, sem ter o passado em conta não se consegue compreender o que se passa. Um povo ignorante da sua história está desarmado, pois, não podendo comparar o que é ao que foi, fica perante o facto consumado que ele tende a aceitar sem protestar. A história é de certa forma a mais política das ciências humanas. Espera-se do historiador que, além de político, ele seja juiz, especialista em direitos do homem e monitor da consciência universal. É por
isso fundamental caracterizar o lugar na História.

E a História não é uma religião, não aceita dogmas, não respeita interditos, não conhece tabus. A História também não é a moral, nem um objecto jurídico. Não cabe ao historiador ou ao professor de História exaltar ou condenar, dado que ele não é um auxiliar da justiça, nem uma testemunha da moralidade.

O historiador é um paciente investigador, que das descobertas no indicativo não pretende tirar conclusões no imperativo, como diz Jacques Julliard. E, no entanto, num mundo reduzido ao presente, condenado ao zapping e dominado pelos media, o historiador é mais necessário que sempre. O profissional de História é aquele que tem o encargo social de cultivar a memória, cujo exercício é indispensável à vida em sociedade.

Os seus objectivos são, no fundo, a preservação da vida dos membros da sociedade e a criação de condições favoráveis ao seu desenvolvimento. Escrever a História é também um modo de nos livrarmos do passado, por vezes infeliz, como disse Goethe. Ou seja, na medida em que, ao fazer o luto do passado, o trabalho da História ao mesmo tempo preserva a memória e contribui para pacificá-la. Ao transformá-la numa justa memória, a História possibilita uma relação actuante entre o passado, o presente e o futuro, bem como de solidariedade entre as gerações

16.4.11

Abrir os cofres na Cinemateca


CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA
ABRIR OS COFRES
19 de Abril de 2011
MANIFESTAÇÃO DAS MULHERES PORTUGUESAS A SALAZAR / 1959

Realização e fotografia : António Veríssimo / Som: Henrique Domingues, Luís Barão, Fernando California / Locução: Armando Correia / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 16mm, pb – versão original portuguesa / Duração: 9 minutos.

AS MULHERES E O TRABALHO / 1962
Realização: Fernando Garcia / Fotografia: Salvador Fernandes / Som: Henrique Domingues / Texto: Maria Manuela Silva / Montagem e assistência: Manuel Moutinho / Produção: Junta da Acção Social / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 16mm, pb – versão original portuguesa / Duração: 15 minutos.

ASPECTOS DA ACTIVIDADE DA OBRA DAS MÃES PELA EDUCAÇÃO NACIONAL/ 1965(?)

Realização: Alfredo Tropa / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 16mm, pb – versão original portuguesa / Duração: 12 minutos.
RAPARIGAS DE HOJE, MULHERES DE AMANHÃ / 1970

Produção: Instituto de Meios Audio-Visuais de Educação / Texto: Maria Leonor Carvalhão Buescu / Colaboração: Álvaro de Almeida, Ruy Baptista, Lopes da Costa, Victor Leitão, Noémia Malveira, Ruy de Almeida e Mello, Luís de Pina, Ruy Prazeres, Ofélia Presença, João Laurentino da Silva, Manuel Costa e Silva / Estúdio de som: Valentim de Carvalho / Laboratórios: Ulyssea Filme / Cópia: da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 16mm, cor – versão original portuguesa / Duração: 36 minutos.

Duração total da sessão: 72 minutos.

Sessão apresentada pela historiadora Irene Flunser Pimentel.





Adeus José da Conceição (31/1/1937-16/4/2011)


Morreu hoje José da Conceição, uma das figuras mais importantes do associativismo cultural português, conhecido por várias gerações de pessoas ligadas ao teatro amador e ao chamado «trabalho legal» nas colectividades e sociedades de cultura e recreio durante a ditadura de Salazar e Caetano. Além de ter sido militante e dirigente político da chamada esquerda radical, nomeadamente da Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP-O Grito do Povo), antes e pouco depois de 25 de Abril de 1974, José da Conceição foi sobretudo um organizador e dinamizador de grupos de teatro – além de ter encenado inúmeras peças e participado nelas como actor - em colectividades, em particular na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG), de Grândola, e no Clube Fluvial Vianense, de Viana do Castelo.
Tive a grande sorte de conhecer, em 1971, José da Conceição, pelo qual tive uma profunda e terna amizade, bem como uma estreita camaradagem política. Além disso, pude participar com ele em actividades políticas e culturais em associações na margem sul do Tejo. Em conjunto, sob sua direcção, organizámos, em Alhos Vedros e Grândola, sessões culturais, de teatro, cinema e canto, com diversos intelectuais, escritores, encenadores e cantores, entre os quais se contaram José Saramago, Joaquim Benite, Armando Caldas, Adriano Correia de Oliveira, Fausto e José Afonso, entre outros.
Para José Afonso, aliás, o ano de 1964 foi crucial, pois foi então que escreveu o poema «Grândola, Vila Morena». Mais tarde, José Afonso contou ter ficado «brutalmente satisfeito com o convite» da «Música Velha» - Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG), onde conheceu Carlos Paredes. José (Zeca) Afonso descreveu a «Fraternidade Grandolense» como um «local obscuro, quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca de evidentes objectivos revolucionários, uma disciplina generalizada e aceite entre todos os membros, o que revelava já uma grande consciência e maturidade políticas» (José A. Salvador, Livra-te do medo, 1984, p. 127-128).
Quatro dias, José Afonso enviou a um dos organizadores da sessão de Grândola, precisamente José da Conceição, uma missiva, com um poema dedicado à SMFOG, lido publicamente na sala desta colectividade, em 31 de Maio, por ocasião da estreia do Grupo de Teatro da «Música Velha»: tratava-se de «Grândola, Vila Morena». Em Agosto de 1968, foi a vez de Manuel Freire, cantor da «Pedro Filosofal», conhecer José Afonso, em Viana do Castelo, pois ambos foram convidados para actuar no Clube Fluvial Vianense (José A. Salvador, José Afonso: O que Faz Falta, Uma memória plural, pp. 59-62) cuja secção cultural era então dirigida pelo mesmo José da Conceição havia organizado o espectáculo de Grândola, em 1964.
Em 13 de Agosto de 1968, o comando-geral da PSP enviou ao director da PIDE o relato feito por um agente desse espectáculo em Viana do Castelo, segundo o qual a ele tinham assistido cerca de 200 indivíduos «desafectos» ao regime. Quanto às «letras dos fados e canções (…) encerravam um fundo picante para o lado subversivo», embora, segundo dizia o relator da sessão, os cantores haviam moderado a sua tendência subversiva, «certamente por se terem apercebido da presença dos nossos agentes». O autor do referido ofício, que visivelmente desconhecia completamente o conteúdo das canções dos dois cantores, deu conta de algumas das estrofes das canções de José Afonso, trocando as respectivas palavras. Por exemplo, «Cantar alentejano» e «Ó cavador do Alentejo» continham, segundo o elemento da PSP, respectivamente, as seguintes estrofes: «Catarina do Alentejo que não te viu nascer mas há-de vir o dia que hás-de viver» e «Oh cavador do Alentejo que há muito tempo não te vi cantar» (Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, proc. 931 CI (1), fl. 394).
José Afonso voltaria a Grândola, em final de 1970, quando renasceu a actividade cultural da SMFOG, pela mão de José da Conceição e de uma nova geração de jovens, e novamente em Junho de 1972, por ocasião da primeira feira do livro, realizada no jardim da vila, pela «Música Velha», e por José da Conceição. Tive então a sorte de participar nesse evento, escolhendo livros que eram vendidos no jardim central de Grândola em lindas barracas de praia às riscas – uma ideia de José da Conceição. Alguns dos livros «do dia» foram obras de autores marxistas, cujos nomes José da Conceição e eu nomeámos numa entrevista dada a João Paulo Guerra, na Rádio Renascença. Lembre-se que estávamos no período “marcelista” e o certo é que os censores e a polícia política já tinham então muito que fazer, pois aparentemente a iniciativa “esquerdista” passou despercebida.
Foi também uma ideia de José da Conceição realizar, ainda na SMFOG de Grândola, um ciclo de cinema com filmes de teor político - daqueles que a censura deixava passar -, por escolhidos a dedo. Lembro-me que um deles era o western, «Soldado Azul» (Soldier Blue, 1970), com Candice Bergen e Peter Strauss, onde era pela primeira vez dada uma imagem diferente da habitualmente retratada nos filmes de cowboys acerca do verdadeiro massacre de índios perpetrado na América do norte
Gerações de jovens activistas e militantes, entre os quais me incluo, foram levados para a actividade cultural nas colectividades por José da Conceição, um homem com uma inteligência acutilante e um sentido de humor do tamanho da sua generosidade, com o qual aprendi muito, tanto na actividade cultural como na política. Que saudades vou ter de ti, Zé, das nossas conversas, dos nossos almoços onde nos divertíamos e ríamos a bom rir do passado e do presente!

21.3.11

"A cada um o seu Lugar" - (lançamento em breve)



Novo trabalho de Irene Flunser Pimentel " A cada um o seu lugar - A política feminina do Estado Novo" Temas e Debates Circulo Leitores
2011





"Josephine Baker em Portugal (1939-1960)", de João Moreira dos Santos, apresentação de Irene Pimentel


Lançamento do livro "Josephine Baker em Portugal (1939-1960)", de João Moreira dos Santos, editado pela Casa Sassetti.Intervenção da Prof. Irene Pimentel Teatro da Trindade, 11 de Março 2011



9.3.11

O Ano de 1931, de todas as rebeliões (II)

No meio académico de Lisboa e Porto, teve lugar, em 1931, um movimento grevista, iniciado na capital com a prisão do estudante da Faculdade de Ciências, Francisco Joaquim Mendes, presidente da Federação Académica. Após a declaração de greve às aulas em diversas faculdades, entre as quais na de Medicina e Letras, para 25 de Abril, realizou-se no mesmo dia uma manifestação de protesto contra essa detenção que terminou com um assalto ao ministério da Instrução Pública. Os estudantes conseguiram a libertação do seu dirigente associativo e este, acompanhado dos colegas, entre os quais se contavam Teófilo Carvalho dos Santos, Artur Santos Silva e José Magalhães Godinho dirigiram-se ao ministro. Após a declaração de greve às aulas em diversas faculdades, entre as quais na de Medicina e Letras de Lisboa, para 25 de Abril, realizou-se no mesmo dia uma manifestação de protesto contra essa detenção que terminou com um assalto ao ministério da Instrução Pública.

Após saberem da agitação estudantil em Lisboa, sucederam-se, no Porto, manifestações no Instituto Industrial e no Instituto Superior de Comércio, e, em 28 de Abril, realizou-se, na Faculdade de Medicina dessa cidade, uma assembleia-geral de alunos presidida Tal como em Lisboa, a PSP invadiu essa faculdade, prendendo Luís Camossa, Gomes de Almeida e António Barros Machado, posteriormente enviados em regime de residência fixa para Famalicão e Paredes de Coura. Foi a prisão deste último, estudante de Ciências e vogal da associação académica presidida por Emídio Guerreiro, que, ao ser enviado para o Aljube, radicalizou o movimento estudantil, no Porto, onde a sua libertação acabou por ser conseguida, devido às ameaças de greve geral feitas junto do reitor da Universidade, Alexandre de Sousa Pinto.

A carga policial da PSP na Faculdade de Medicina provocou, no entanto, também três feridos graves, um dos quais acabaria por falecer. Tratou-se de João Martins Branco, estudante do Instituto Industrial, cujo funeral, realizado em 30 de Abril, no Porto, se transformou numa grande manifestação contra a ditadura, da qual viria a resultar o ferimento a tiro de de 17 pessoas, pela polícia. Nesse mesmo dia, em Coimbra, os estudantes Mário Cal Brandão e Fernando Correia Simões, elementos de ligação com o coronel reviralhista Hélder Ribeiro, que estava clandestino naquela cidade, e Camilo Cortesão, no Porto, foram informados por este último de que iria eclodir um movimento revolucionário, no dia 2 de Maio. Este acabaria por não sair, devido à forte prevenção das unidades militares instaurada pelo governo e à detenção, em Coimbra, de diversos estudantes de Coimbra, enviados depois em regime de residência fixa para fora dessas cidades.

Entretanto o 1.º de Maio de 1931 foi celebrado, em Lisboa, com tiroteio e bombas, em Lisboa, em particular nas ruas da Baixa, no Bairro Alto e na Mouraria, onde houve confrontos violentos entre jovens nacionalistas e direitistas, por um lado, e estudantes comunistas, por outro lado, que se saldaram em quatro mortos e cerca de vinte feridos. «No Rossio, Largo de São Domingos, Ruas de Santa Justa e dos Fanqueiros, Praça da Figueira e noutros locais os manifestantes enfrentaram a polícia e a Guarda Republicana», conforme descreveu Pedro da Rocha que, nesse dia, aprendeu a atirar bombas, com o seu camarada da FJCP, Fernando Quirino. Houve ainda uma manifestação ruidosa frente ao edifício do Aljube e à Casa de Reclusão Militar, com o objectivo de obter a libertação dos presos políticos que ali se encontravam. Curiosamente a Censura deixou passar, potenciando os relatos catastróficos dessa jornada, em que morreram quatro manifestantes. Houve ainda manifestações em Braga, Viana do Castelo, no Cartaxo, em Óbidos, Almada, Tortosendo e Faro. O PCP e a FJCP, que entretanto criara brigadas de auto-defesa para lidar tanto com os nacionalistas como com a repressão policial, voltaram a convocar manifestações em Lisboa e no Porto, para o dia 8, que terminaram novamente em confrontos com a polícia e a GNR, bem como com apoiantes da UN e da Liga 28 de Maio

Após Salazar, ainda ministro das Finanças, mas já com uma postura de chefe do Ministério, emitir uma nota oficiosa a alertar contra os prejuízos para o erário público, provocados pela agitação e os actos revolucionários, avisando que o governo os tornaria «impotentes para a acção revolucionária». Para dia 17 de Maio, o chefe do governo Domingos de Oliveira e Salazar, com o apoio da recém-criada UN, promoveram uma manifestação de massas de auto-apoio, que terminaria com um comício no Coliseu dos Recreios, à Rua das Portas de Santo Antão, onde Oliveira Salaza foi o mais aplaudido. Após aplaudir o ministro das Finanças, a multidão dispersou. No entanto, era esperada nas ruas circunvizinhas por manifestantes «contrários», havendo correrias, distúrbios e explosões de alguns petardos, não só na Rua das Portas de Santo Antão, como no Rossio, na Av. da Liberdade e no Chiado, onde foi lançada outra bomba. O mesmo voltaria a acontecer no dia seguinte, 18 de Maio, ao explodirem petardos junto dos estudantes «nacionalistas» concentrados na estação de caminhos-de-ferro do Rossio, onde aguardavam transporte para regressarem às suas terras. Durante a noite, voltaram a ser lançadas bombas sobre o monumento aos Restauradores, enquanto a PI realizava rusgas e prisões nas hostes “esquerdistas”. Foram presos diversos jovens, acusados do lançamento dos petardos nos dias anteriores no centro de Lisboa, bem como do alto do elevador de Santa Justa, alguns dos quais foram depois deportados para Timor.

No seio do governo, havia entretanto chegado a hora de fazer o balanço da situação e de revelar unidade. Política e militarmente vitoriosa das revoltas das ilhas e de algumas colónias, a Ditadura Nacional voltou a endurecer os seus meios repressivos.Além de demitir a maioria dos 300 implicados presos, deportou-os à «ordem do Governo», sem qualquer julgamento, para novas colónias penais entretanto criadas, nomeadamente em Ataúro e Oecussi, em Timor, bem como na ilha de S. Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde. Aqui, foi aberto, no Verão de 1931, nas antigas instalações do seminário da vila da Ribeira Brava, um campo penal, para onde foram enviados cerca de 160 presos republicanos, instalados em deploráveis condições de deportação. Muitos ficariam na deportação por mais de dois anos e alguns nem sequer foram abrangidos pela amnistia de 1932, como aconteceu ao general Silva Dias, que viria a morrer em Cabo Verde em 27 de Abril de 1934.

De qualquer forma, devido às inúmeras críticas a Polícia de Informações (PI), devido aos seus violentos desmandos, esta acabaria por ser dissolvida, sendo as suas funções transitoriamente entregues à PSP. Em 28 de Julho, reapareceu, ,em larga medida devido à implantação da República em Espanha, que levou à necessidade de reforçar as fronteiras, a Polícia Internacional Portuguesa (PIP), que tinha sido criada em 1928, mas extinta em 1930. Ao voltar a ser estruturada, em Julho de 1931, enquanto polícia de estrangeiros, de combate à espionagem e de repressão do comunismo (entendido como uma quinta coluna estrangeira), a PIP passou a ser tutelada pelo ministério do Interior, que nomeou o capitão do Exército, Agostinho Lourenço, para a respectiva chefia. Este viria a ser o director da PVDE e da PIDE, até aos anos 50 do século XX..

Depois das grandes revoltas do primeiro semestre de 1931, foi também simplificado o processo de instrução do Tribunal Militar Especial e reforçada a censura prévia. Após as revoltas das Ilhas, uma circular de 7 de Junho, em nome do director-geral interino da Censura, major Salvação Barreto, lembrou aos oficiais censores das delegações que o seu papel na «preparação do Estado Novo» requeria «especial vigilância sobre aqueles jornais» que interpretassem «esta tendência como propósito de regresso aos antigos processos».

Depois de muitos encontros clandestinos em Portugal e no exílio francês e espanhol, acabaria por irromper nova tentativa civil e militar de derrube do regime ditatorial, de forma intempestiva e prematura, em 26 de Agosto de 1931, sem que estivessem estabelecidas todas as ligações no interior do País. Além disso, a eclosão da revolta interferiu com o envolvimento na campanha eleitoral autárquica, possibilitada em Junho desse ano de 1931, pelo governo, da recém-formada Aliança Republicana-Socialista (ARS). Esta era uma frente sob a liderança do general Norton de Matos, que integrou vários partidos republicanos e socialistas, bem como diversas personalidades adversárias da Ditadura Nacional, erguida em 1926.

Ao mesmo tempo que o movimento revolucionário que eclodiria em Agosto estava a ser preparado, os jovens comunistas da FJCP montavam «brigadas de autodefesa» para a realização de uma Jornada Internacional da Juventude, também programada para Agosto. No entanto, devido à eclosão precipitada da revolta republicana de dia 26 desse mês, os jovens comunistas viram-se obrigados a anular a jornada. Alguns deles envolveram-se nos preparativos da revolta reviralhista, embora se criticasse no interior do PCP essa intervenção. Em 24 de Agosto, realizou-se uma reunião do Secretariado do PCP, onde se manifestaram diversas posições sobre a estratégia a seguir relativamente à sublevação programada, onde «Raul Marques» (José de Sousa) manifestou a opinião de que os comunistas não deveriam participar nela.

Quanto ao movimento revolucionário propriamente dito, após uma última reunião do Comité Revolucionário, na madrugada de 26 de Agosto, realizada no 2.º andar do n.º 17 de um prédio na Rua D. Estefânia, o coronel António Augusto Dias Antunes, o tenente-coronel José Sarmento de Beires, o capitão Jaime Baptista e dois oficiais da Armada seguiram de automóvel para a Avenida João Crisóstomo. Era ali que residia o coronel de Infantaria Hélder dos Santos Ribeiro, coordenador do movimento. A jornada de 26 de Agosto foi um fracasso total dos sublevados civis e militares nela envolvidos. Com a excepção de Lisboa, o resto do país pareceu estar alheado dos acontecimentos da capital, apesar de tentativas para secundar o movimento, por exemplo no Porto, mas sem resultados práticos. Controlando totalmente a situação, o governo nem tinha recorrido aos 800 homens e carros blindados de Mafra, que aguardavam estacionados em Belas.

No dia 27 de Agosto de 1931, o ministro do Interior e da Guerra, Lopes Mateus, realizou, no Quartel do Carmo, uma conferência de imprensa a condenar o «criminoso» golpe perpetrado pelos «políticos», sublinhando que o Exército respondera com «a maior nobreza e decisão aos desordeiros». A revolta de Agosto de 1931 viria a trazer grandes consequências a nível do governo e da oposição à Ditadura. Ao mesmo tempo que a ditadura reforçava a sua força política, terminava definitivamente o diálogo no seio dela com os velhos partidos republicanos. Por seu turno, Salazar via a sua posição claramente reforçada, começando-se a falar abertamente da sua nomeação para a chefia do governo. Depois de, no último dia de Agosto, a Censura ter proibido qualquer referência na imprensa à ARS, esta foi extinta e o seu secretário, José António Simões Raposo Jr. (1875-1948), participante na revolta de 26 de Agosto, preso e deportado para Timor. Terminava dessa forma também a possibilidade de luta legal contra a Ditadura, que aproveitou para reforçar reactivar a PIP, em 21 de Julho, e voltar a expurgar os seus adversários políticos, afastando do serviço todos os funcionários públicos, civis e militares, suspeitos de atitude hostil à «Situação».

Se todas as revoltas do ano de 1931 resultaram em mais de 200 mortos e cerca de mil feridos, só o movimento revolucionário de 26 de Agosto saldou-se pela morte de 40 pessoas e pelo ferimento de 200 a 300 civis e militares. Os locais onde houve mais baixas foram aqueles em torno do Parque Eduardo VII, o Largo do Rato e arredores, bem como os bairros do Castelo e de Alfama, em Lisboa. Segundo a imprensa, ocorreu um «morticínio», nas ruas em redor do forte de Almada, onde foram feridos muitos civis e mortos 4 adultos e 4 crianças, através do bombardeamento, por engano, de um avião vindo de Alverca, pilotado pelo aviador civil sublevado, Manuel Vasques, e pelo sargento José Carvalho. Todas as revoltas e manifestações populares do ano de 1931 resultaram também em milhares de detenções e cerca de 1.500 deportações para as ilhas e as colónias.

Na sequência do 26 de Agosto, houve mais de sete centenas de presos, que foram encarcerados, entre outras, nos presídios de S. Julião da Barra, Peniche e Elvas, bem como na Penitenciária de Lisboa, que ficou repleta. Mais de três centenas e meia de civis, muitos deles comunistas, anarquistas e socialistas embarcariam, sem qualquer julgamento, para a deportação em Timor, Cabo Verde, Angola e São Tomé. Os que não foram detidos em 1931, foram afastados das Forças Armadas e da administração pública, ou colocados em residência fixa na metrópole, enquanto muitos outros “escolhiam” o caminho do exílio. O TME, recriado em 19 de Dezembro do ano anterior, mas extinto no início de 1931, voltou, após o mês de Agosto, a funcionar em Lisboa, acumulando funções de instrução e de julgamento. À medida que Salazar e os seus apoiantes tão bem usavam o aparelho de propaganda, a Censura era a outra arma que acompanhava aquele instrumento.

O poder político explorava o cansaço que se fazia sentir face à intranquilidade pública e culpaava os revoltosos de contribuírem para o aumento da crise económica e financeira, já de si grave. Por outro lado, controlava a “opinião pública”, ao dominar a imprensa adversa através da censura e ao utilizar os seus próprios jornais para potenciar os perigos da desordem económica, social e política urbana, usada esta como espantalho. Foi assim formando uma “opinião pública” que aspirava à «ordem», à «autoridade» e à «tranquilidade» e deixava de se interessar pelos que, de forma minoritária, resistiam a uma Ditadura que se eternizava. Tanto mais que essa “opinião pública” não tinha qualquer saudade do período que havia antecedido o golpe de 28 de Maio de 1926. Por isso, não só a ditadura militar estava em óptimas condições para defender a limitação e mesmo o fim das liberdades públicas, como sabia ter chegado o momento para reerguer ou reforçar instituições repressivas.

O que aconteceu entretanto pelas bandas dos anarquistas, dos libertários e comunistas? Cada vez mais virados para o trabalho sindical, os comunistas actuavam na CIS, enquanto os anarquistas e libertários, tinham a CGT, os socialistas agiam na Federação das Associações Operárias (FAO), havendo ainda os que se organizam n os Sindicatos Autónomos.

Comunistas e anarquistas continuaram a confrontar-se e a rivalizar, respectivamente através da CIS e da CGT, no terreno sindical, mas este já estava num movimento de refluxo e defensivo, apesar de algumas eclosões pontuais de agitação laboral. As duas centrais sindicais tinham uma estratégia e tácticas diferentes. Enquanto a CGT lutava pelo «Trabalho para Todos», pela diminuição da jornada de trabalho para seis horas e por um salário mínimo que acompanhasse o custo de vida, sem distinção de sexo ou profissão, a CIS tinha como lema «Pão e Trabalho», admitindo a jornada laboral de oito horas e lutando por um subsídio de desemprego.

As diversas tendências do movimento operário e sindical estavam todas de acordo na recusa da proposta governamental de um desconto de 2% sobre os salários dos trabalhadores, enquanto os patrões apenas pagariam 1%, para o financiamento da Caixa de Auxílio. Por isso, tanto a CIS como a CGT se uniram em manifestações e na convocação conjunta de greves, em Junho de 1931, para impedir a entrada vigor do decreto que previa esses descontos. Sentindo dificuldade em actuar na clandestinidade, devido à sua cultura libertária, a CGT viria a perder a sua hegemonia no movimento sindical, a favor de uma CIS mais pragmática, dirigida por um PCP em moldes leninistas. Embora ainda com um número reduzido de militantes, mas num período em que podia contar com o relacionamento com a URSS, a partir do final de 1931, o PCP começou nesse ano a publicar o Avante! e O Jovem, influenciando um número cada vez maior de jovens, organizados na FJCP.

Em 27 de Maio de 1932, foram publicados os estatutos da UN e, na sessão em que tomaram posse os seus respectivos corpos directivos, Salazar proferiu um discurso, intitulado «As Diferentes Forças Políticas em Face da Revolução Nacional».O ministro das Finanças não só apelou aos monárquicos para que não ficassem «presos a cadáveres», numa provável referência à recente morte de D. Manuel II, como se dirigiu também aos católicos, pedindo-lhes que apenas se empenhassem nas questões sociais e deixassem de actuar politicamente através do CCP, que deveria ser dissolvido. Quanto aos «antigos partidos», a bem da ordem e da legitimidade da Ditadura, deveriam ser «reduzidos pelo Exército à impotência». Depois de considerar que «o processo da democracia parlamentar» - regime de «facções» - estava ferido de morte, afirmou a urgência de erguer um Estado forte, defensor da «ordem». Finalmente, Salazar condenou os socialistas, anarquistas e comunistas, que defendiam uma sociedade «sem pátria, sem família, sem propriedade e sem moral», dizendo que nada havia «de mais oposto às tendências da Ditadura e aos princípios do Estado Novo».

No dia seguinte, em 28 de Maio de 1932, em que se comemoravam seis anos sobre o golpe militar, Carmona atribuiu, ao ministro das Finanças, na antiga Sala do Conselho do Ministério do Interior, a Grã-Cruz da Torre e Espada, até então apenas outorgada, no caso dos civis, a chefes do governo. O ministro das Finanças dirigir-se ao Exército, dizendo-lhe que este não tinha que «fazer política», mas deveria ser «até ao fim a garantia e o penhor da revolução nacional», sendo veementemente aplaudido pelos oficiais presentes. Entre os adeptos da situação e os militares, era geral o sentimento de que havia que substituir o gabinete de Domingos de Oliveira e este apresentou efectivamente, em 24 de Junho, a sua demissão ao presidente da República. Carmona convocou de imediato uma reunião do Conselho Politico, realizada no dia 28, à qual assistiu Salazar que, segundo Franco Nogueira, dela saiu, com uma «alegria íntima mal reprimida» no rosto. Cinco dias depois, surgiu na imprensa a notícia de que Presidente da República convidara Oliveira Salazar a constituir governo. Em 5 de Julho de 1932 começava uma nova era no regime político português, com a tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Presidente do Ministério.