Mostrar mensagens com a etiqueta estado novo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta estado novo. Mostrar todas as mensagens

4.2.11

Há 50 anos, o desvio do "Paquete Santa Maria"

Há 50 anos o regime de Oliveira Salazar viveu um annus horribilis. Efectivamente, o Estado Novo viu-se confrontado, em 1961, com inúmeros dissabores que lhe dificultaram a vida, a pontos de parecer que não conseguiria sobreviver. Em21 de Janeiro, iniciou-se em La Guaira, Curaçao, no mar das Caraíbas, a «operação Dulcineia», ou seja, o assalto ao paquete «Santa Maria», com 350 tripulantes e mais de mil passageiros. A operação foi levada a cabo, no dia 22, por um comando de doze portugueses e onze espanhóis do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL). Esta organização luso-espanhola de oposição aos regimes de Salazar e Franco, com sede em Caracas, havia sido criada, em Tunis, um ano antes, apenas existindo em 1961, com apoio cubano, bem como de forma não oficial, do México, Venezuela e da Jugoslávia. O DRIL reunia oposicionistas portugueses em torno de Henrique Galvão e Humberto Delgado, que se tinham exilado na América Latina em 1959, bem como elementos da organização União dos Combatentes Espanhóis, de Jorge Soutomaior e Velo Mosquera, refugiados na Venezuela. Liderados pelo capitão Henrique Galvão e pelo comandante da marinha espanhola, Soutomaior, o comando que assaltou o paquete incluía, entre os portugueses, Camilo Mortágua e Filipe Viegas Aleixo, ambos exilados na Venezuela.

Há muitas versões da parte dos protagonistas nos acontecimentos, das quais se dá aqui apenas algumas. Por seu lado, no seu livro Santa Maria: My Crusade for Portugal, Henrique Galvão afirmou que tinha sido seu objectivo atravessar o Atlântico para chegar à ilha espanhola de Fernando Pó, e ali apoderar-se de um navio de guerra e armamento, seguindo depois para Angola, para se ligar a um movimento insurreccional e proclamar um governo revolucionário de Portugal. O projecto de Galvão não passava pelo apoio à luta pela independência pelos africanos, mas por uma revolta anti-salazarista de brancos de Angola, havendo indícios de que uma conspiração desse tipo tivesse sido programada, mas fosse depois abortada. O capitão disse que o projecto se teria gorado devido à resistência de alguns tripulantes do «Santa Maria», um dos quais teria sido ferido, obrigando o comando da operação a desembarcá-lo por razões humanitárias, na ilha de Santa Luzia, nas Antilhas.

Segundo o elemento do comando operacional, Camilo Mortágua, teria havido discordâncias entre Galvão e o comandante espanhol Soutomaior, que se prendiam com o facto de o capitão português não ter querido ir para África. Pretendia sim dirigir-se com o navio para o Brasil, onde tinha assegurado a sua entrada, num encontro em Caracas, com Jânio Quadros, caso este fosse eleito presidente do Brasil. O certo é que, após serem perseguidos pela Marinha dos EUA, o comando operacional comandado por Galvão esperou dois dias ao largo do Recife, até que Jânio Quadros tomasse posse, pois sabiam que o anterior presidente, Juscelino Kubitschek, não lhes dava quaisquer garantias de permitir a entrada do navio em águas territoriais brasileiras.

Quanto a Humberto Delgado, deixou escrito que, em 18 de Janeiro de 1961, Galvão lhe teria comunicado que, caso o generalíssimo Francisco Franco enviasse um navio de guerra para Fernando Pó, a operação da invasão de Angola ficaria impossibilitada, pelo que o melhor seria fazer apenas algumas incursões nessa colónia africana bem como em S. Tomé e depois pedir asilo ao Brasil. Delgado disse não ter concordado com essa opção, que achou nebulosa. Jorge Soutomaior, comandante militar da operação, confirmou a versão de Galvão, segundo o qual o plano era atravessar o Atlântico até Fernando Pó e depois cair de surpresa sobre Luanda. No entanto, acrescentou que o plano inicial era apoderar-se de uma embarcação espanhola, mas que, por cobardia – dado que havia pena de morte em Espanha –, o capitão português teria então decidido pelo assalto ao «Santa Maria».

Seja como for, a «operação Dulcineia» traumatizou profundamente o regime português e revelou falta de vigilância da PIDE, apesar de esta saber com antecedência que algo se iria passar, provavelmente através da embaixada portuguesa de Caracas. Efectivamente, antes da operação, essa polícia deu conta a Salazar que «certos elementos da oposição residentes» na capital venezuelana se estavam a preparar, sob a chefia de Galvão, para seguirem para Angola, com o objectivo de ali fomentar um movimento separatista.

Acreditando inicialmente na versão portuguesa, segundo a qual se tratava de um acto de «pirataria», o governo de Londres e a administração Kennedy acabaram por mudar de atitude e consideraram o assalto ao navio como um acto político. O gabinete inglês de MacMillan, pressionado pela oposição trabalhista inglesa, suspendeu as buscas, enquanto os governos da França e da Holanda, solicitados a intervir, preferiram abster-se. Quanto a Washington, decidiu tratar Galvão como um opositor político do regime. O governo português apercebeu-se que o almirante americano Denninson conferenciara a bordo do «Santa Maria» com Galvão e que este tentara e conseguira ganhar tempo, até à tomada de posse, a 1 de Fevereiro, do novo presidente eleito do Brasil, Jânio Quadros, um opositor a Salazar.

Depois de empossado, Jânio propôs a Salazar que o navio fosse entregue ao Brasil, que o remeteria a Portugal e daria asilo político aos captores. Depois da rendição do navio no Recife, em 2 de Fevereiro, o «Santa Maria» foi entregue pelas autoridades brasileiras ao adido naval português, sendo ocupado por Jorge Jardim e elementos da brigada naval da Legião Portuguesa. Enquanto isso, os membros do comando dirigido por Galvão seguiram para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde viriam posteriormente à luz todas as divergências entre aquele capitão e os espanhóis, bem como entre os «operacionais» e Delgado. Em 10 de Fevereiro de 1961, Delgado anunciou, numa conferência de imprensa em São Paulo, a assinatura de uma Acordo Luso-Espanhol da Oposição, assinado por ele e por Emilio Herrera, ex-presidente do Conselho de Ministros da República Espanhola e, em Março, os 24 homens do comando da operação «Santa Maria», incluindo Henrique Galvão, instalaram-se numa quinta em Campinas.

Em Portugal, continuava o annus horribilis para Salazar. Cerca de 60 oposicionistas subscreveram, em 31 de Janeiro de 1961, o Programa para a Democratização da República, elaborado sob inspiração de Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes, e com redacção de Mário Soares, Francisco Ramos da Costa, Fernando Piteira Santos e José Ribeiro dos Santos. Os 62 signatários foram depois detidos, um a um, pela PIDE.

Entretanto, em Angola, no baixo Cassange, prosseguia a revolta dos trabalhadores africanos algodoeiros, que recusavam recolher o algodão da empresa Cononang. A sua luta contra os baixos salários e o cultivo compulsivo dos produtos impostos pela administração colonial foi violentamente reprimida, em Janeiro de 1961, pela tropa portuguesa que provocou centenas de mortos e a fuga de milhares de africanos para o Congo. No dia 4 de Fevereiro, nacionalistas angolanos tentaram assaltar a Casa de Reclusão Militar, a cadeia de S. Paulo, uma patrulha policial, o quartel da companhia móvel da PSP e a emissora oficial, em Luanda, seguindo-se uma violenta repressão e acções vingativas da população branca dessa cidade sobre as populações africanas.

No Brasil, Humberto Delgado apoiava a convocação do Conselho de Segurança da ONU sobre a questão de Angola, defendendo a autodeterminação para os territórios africanos e a integração de Goa na União Indiana. Por seu turno, no mesmo país, Henrique Galvão declarava que os incidentes em Luanda estavam ligados ao mesmo plano do DRIL, que incluíra o assalto ao «Santa Maria», paquete que chegou a Lisboa no dia 16 de Fevereiro. Em Portugal, o governo anunciava oficialmente que a região do baixo Cassange tinha sido pacificada, embora sem dizer que essa “paz” tinha ocorrido após a morte de muitas centenas de africanos, incluindo mulheres e crianças.

Em 15 de Março, a partir da fronteira e da região dos Dembos, membros das tribos Bacongo iniciaram uma insurreição que alastrou aos distritos de Luanda, Cuanza-norte, Malange, Uíge e Zaire, na qual foram chacinados cerca de 800 colonos brancos, bem como perto de 6.000 negros que para eles trabalhavam. O violento ataque da UPA teria sido planeado para coincidir com a discussão em Nova Iorque de uma moção na ONU, contra o colonialismo português, apresentada pela Libéria, apoiada pelos EUA, cuja administração Kennedy entrava assim em rota de colisão com o governo português. Os acontecimentos relatados pela imprensa nacional e internacional causaram profunda emoção na «opinião pública» portuguesa, sendo atribuída a responsabilidade dessas acções à UPA, de Holden Roberto.

Em Portugal, no dia 11 de Abril, o Presidente da República recebeu os ministros da Defesa Nacional e do Exército, que lhe sugeriram a demissão de Salazar, em nome do interesse nacional. No dia seguinte, porém, Américo Tomás informou o titular da Defesa, Júlio Botelho Moniz, por carta, que resolvera reiterar a sua confiança ao Presidente do Conselho e que recusava conceder a audiência urgente que aquele lhe havia pedido. Derrotada assim a chamada “Abrilada” - tentativa de “golpe palaciano” para remover Salazar por parte de Botelho Moniz e outros oficiais das Forças Armadas -, o governo foi remodelado, assumindo Salazar a pasta da Defesa Nacional. Proferiu então, na Assembleia Nacional, uma importante alocução em que justificou a tomada da pasta da Defesa Nacional, afirmando que «andar rapidamente e em força» para Angola, era o objectivo que iria pôr à prova a capacidade de decisão do governo português.

Ainda no mesmo ano de 1961 em que o assalto ao «Santa Maria» constituiu uma nova forma de propaganda política por parte da oposição ao regime salazarista, ocorreu, em 10 de Novembro, também comandado por Henrique Galvão e com outros exilados portugueses, o primeiro desvio de avião da História. O comando, composto por Palma Inácio, Camilo Mortágua, Amândio Silva, Manuel Domingos Pinto, Maria Helena Vidal, João Martins e Fernando Vasconcelos, realizou a «operação Vagô», que consistia na tomada em pleno voo do avião da TAP, «Mouzinho de Albuquerque», que fazia a linha Casablanca-Lisboa.

Após a tomada do avião, as seis pessoas do comando sobrevoaram a capital portuguesa, o Barreiro, Beja e Faro, lançando milhares de panfleto da Frente Antitotalitária dos Portugueses Livres no Estrangeiro, assinados por Henrique Galvão. O avião regressou a Marrocos, aterrando em Tânger, onde o esperava Henrique Galvão. Ainda o governo português não tinha respirado de alívio que, no dia 18 de Dezembro, a União Indiana ocupou Goa, Damão e Diu, quase sem resistência, embora Salazar tivesse dado ordens para que esta se fizesse até ao último homem.

Outra derrota do regime foi, em 4 de Dezembro de 1961, a evasão de um grupo de comunistas – Francisco Miguel, José Magro, Guilherme da Costa Carvalho, António Gervásio, Domingos Abrantes, Rolando Verdial e Ilídio Esteves – da cadeia de Caxias, utilizando o automóvel blindado de Salazar, que aí estava depositado. Finalment , na passagem do ano de 1961 para 1962, houve uma tentativa de ataque ao quartel de Beja, por civis e militares que assim tentavam de novo, voltando a falhar, derrubar o regime de Salazar. Mas este e outros episódios de 1961 serão relatados noutros posts.
(continua)
Para saber mais
Castro, Pedro Jorge, O Inimigo n.º 1 de Salazar, Lisboa, esfera dos Livros, 2011 *
Raby, Dawn Linda, «O DRIL (1959-61). Experiência unica na Oposição ao Estado Novo», Penélope, 16, 1995, pp. 63-86
Soutomaior, Jorge, Eu Roubei o Santa Maria. Relato de uma Aventura Real, Lisboa, Labirinto de Letras, 2010







29.9.10

Salazar democrata cristão?

Rio Tejo visto de um pavilhão da "Exposição do Mundo Português"
© imagem A.J.S

A entrevista do historiador Filipe Ribeiro de Menezes, autor de uma biografia recentemente editada sobre António Oliveira Salazar, dada à jornalista Ana Sá Lopes, do jornal I, coloca questões muitos interessantes.

Em primeiro lugar, queria deixar claro que o domínio da História e o domínio da Política são diferentes, tal como o são, aliás, os domínios da História, da Política e da Justiça. Mas esses campos não deixam de se cruzar, tanto mais quanto é recente o período analisado/ interpretado pelo historiador, e lido pelo leitor. Sobre o regime salazarista, a objectividade para a qual o historiador deve tender – sabendo que ela é inatingível -, não é uma questão importante para o cidadão político – que também está no historiador, mas sobre isso não me debruço agora -, dado que este não pretende ser neutro, mas tomar “partido” e utilizar frequentemente o passado para intervir sobre o presente.

Esta não é tarefa do historiador, como o é Filipe Ribeiro de Menezes. Dito isto, ao dar-se uma entrevista - e esta é frequentemente mais da autoria do ou da jornalista que a faz do que do entrevistado - sobre temas «não neutros», o historiador deve ter o cuidado em medir as palavras, sobretudo quando o objectivo do jornal é procurar provocar, chamar a atenção com frases simples e simplistas, quando aborda um período que sabe ter ainda repercussões sobre a actualidade política. E, pode-se dizer que nessa perspectiva Ana Sá Lopes teve sucesso, pois conseguiu pelo menos com o título que escolheu «Ribeiro de Menezes. “Salazar era um democrata-cristão convicto”», que muitos lessem o seu artigo com curiosidade e a ele reagissem.

Pode-se até dizer que o artigo tem o mérito de espalhar pela opinião pública o que habitualmente está apenas na academia. O mérito deve-se aliás em primeiro lugar ao historiador, que ousou fazer uma biografia desenvolvida sobre Salazar. Mas tem também o defeito de reduzir, ao simplificar, o debate, transformando-o numa posição política, atirando-o para um campo diferente da historiografia. Só para dar outro exemplo de como a história, enquanto disciplina, que procura interpretar uma realidade do passado multifacetada, sem se preocupar com a influência que ela possa ter sobre o presente, difere do jornalismo, sobretudo aquele que por vezes é praticado em Portugal, que pretende por via indirecta actuar sobre a actualidade, veja-se como a jornalista Ana Sá Lopes pergunta a dado momento: «Porque é que na sua opinião não faz sentido falar de Salazar como "fascista"? Isto é uma heresia para a esquerda».

Esta pergunta é absurda para um historiador, e este não tem como responder, seja ele de esquerda, de direita, ou ao centro, porque felizmente já não se está em Portugal na fase em que dizer que Salazar era ou não fascista distingue quem o diz, enquanto anti-fascista e fascista. No início dos anos oitenta, escassos anos após 25/4/1974, isso acontecia nos debates, em que se misturava história com política. Hoje, há historiadores, enquanto cidadãos de direita política que consideram o regime salazarista como fascista e historiadores, enquanto cidadãos de esquerda, que o consideram autoritário. Ou seja, consoante os períodos, o Estado Novo foi considerado “fascista” ou “tendencialmente totalitário” por aqueles que realçaram as suas semelhanças com o fascismo italiano, ou foi caracterizado como uma ditadura “autoritária” na qual não se teria feito sentir a “tensão totalitária” pelos que, pelo contrário, valorizaram as diferenças entre os dois regimes.

Ninguém entre todos estes historiadores está a “branquear” ou “desculpabilizar” um regime que, sem qualquer dúvida, foi nefasto para os portugueses, está antes a caracterizá-lo. Certo e pacífico para todos é que o Estado salazarista pertenceu à corrente comum de ideologias antiliberais e de ditaduras nacionalistas autoritárias e fascistas que, em reacção contra-revolucionária à crise do liberalismo, assolaram a Europa no período entre-guerras. Por outro lado, quer se responsabilize Salazar por ter recusado voluntariamente, por razões ideológicas, o fascismo e o totalitarismo, quer se atribua a ausência destas características ao tipo de sociedade rural e à história específica de Portugal, também é um facto que o regime português se distinguiu, na sua essência, por exemplo, do nacional-socialismo alemão.

Quanto à questão levantada na entrevista: era Salazar ou não um «democrata-cristão convicto»?

Em primeiro lugar há que dizer que esta ideia não é nova na historiografia portuguesa relativa ao salazarismo, tendo já sido transmitida por Manuel Braga da Cruz, que, no seu livro, editado em 1980, não por acaso intitulado As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo (editora Presença), analisou as origens do pensamento de Salazar, dando importância à democracia cristã presente na sua militância católica de juventude.

Em História, é fundamental apresentar o contexto, a cronológico e qualificar os termos. Ora o termo democracia-cristã teve diferentes conotações, conforme as épocas e as formas como era utilizado? Sem querer aprofundar muito, pode-se considerar certamente que a maioria das pessoas identifica essa ideologia de cristãos (católicos) como algo que teria surgido em Itália, no pós-guerra, onde existiu um partido democrata-cristão, com essa qualificação. No Portugal dos anos sessenta, concretamente em 1965, António Alçada Baptista e alguns católicos chamados progressistas – enquanto outro se radicalizavam -, também tentaram criar um partido com essa denominação, tendo aliás nisso recebido o apoio de outros oposicionistas, entre os quais se contou Mário Soares. A tentativa falhou não só porque Salazar, que não permitia qualquer partido, além da «apartidária» (segundo ele) União Nacional, no seu regime anti-democrático, e a sua polícia política, PIDE, prontamente a travaram, como mobilizaram a hierarquia da Igreja católica, em particular o Cardeal Cerejeira, para disso demoverem essas ovelhas tresmalhadas do catolicismo.

Mas então porque se diz que Salazar - e já agora acrescento Cerejeira -, eram democratas-cristãos? Basicamente, porque os dois, nos anos dez do século XX, foram militantes católicos, tendo feito parte tanto do Centro Académico da Democracia Cristã (CADC veja-se o nome) como do Centro Católico Português, criados na sequência da directiva do papa Leão XIII, que introduziu o catolicismo social e a política chamada de ralliement, no final do século XIX. Através desta, a Igreja Católica reconheceu a legitimidade do Estado liberal, recusando o caminho da revolta e da sedição contra ele e defendeu a união entre os católicos, até então ligados, na sua maioria, aos monárquicos e desunidos entre si, capacitando-os para a actividade política enquanto cidadãos, a fim de adequar as leis à defesa da religião e da Igreja.

Em 1892, Leão XIII enviou aos bispos franceses uma carta, onde eram definidas as relações entre os católicos e o Estado liberal. Em nome da obediência à autoridade, considerada como emanando de Deus, e da prossecução do «bem comum», o Papa incitava os católicos a inserirem-se no jogo político, actuando de forma supra-partidária para defenderem os interesses da Igreja. Três anos depois, os principais dirigentes católicos e os bispos portugueses acataram essa política de Ralliement de Leão XIII, retomada em 1914 por Bento XV, que dava flexibilidade ao Episcopado e aos militantes católicos para se adaptarem ao poder e com ele negociarem.

Indiferente e independentemente do regime vigente, fosse ele monárquico-liberal ou republicano, os católicos passaram assim, segundo a directiva papal, a ser mobilizados para a criação de partidos confessionais e associações sociais, para actuarem social e politicamente nos seus países. Entre estes partidos e estas associações, contaram-se os Círculos Católicos de Operários e os Centros Académicos, criados em 1898, com o objectivo de influenciar o poder político e recristianizar a sociedade. Em Portugal, o primeiro centro académico católico a ser criado foi, em 1901, o Círculo de Estudos (CE) de Coimbra, também conhecido pelo nome de «A Católica», que viria a denominar-se, dois anos depois, Centro Académica da Democracia Cristã (CADC), que pugnou pela actuação social e o pluralismo político dos católicos, segundo a chamada linha da democracia cristã.

Diga-se que, apesar do nome, esta era anti-democrata e antiliberal, bem como anti-individualista, defendendo a chamada “democracia” orgânica e corporativa, tal como o foi o Estado Novo salazarista. Erguia-se contra as tentações modernistas baseadas no legado iluminista e o republicanismo, mas também recusava que os católicos ficassem reféns ou fossem instrumentalizados pelo conservadorismo monárquico e integralista, com aspirações restauracionistas.

Nos anos dez do século XX, numa época em que estava na moda «o Politique d´abord», da Action Française de Charles Maurras, os chamados democratas-cristãos portugueses que formaram o CADC e se integraram no partido do Centro Católico Português, dos quais Salazar e Cerejeira foram destacados militantes e dirigentes, tentaram retirar a bandeira do nacionalismo aos republicanos e enquadrar e formar uma elite católica, com o objectivo de defender uma terceira via, alternativa ao Estado monárquico e ao regime republicano.

Depois, entre 1910 e 1913, viveu-se, como se sabe, em Portugal, um período em que o catolicismo constituiu o centro da «questão religiosa», assistindo-se a um processo de desconfessionalização do Estado português, à ruptura diplomática com a Santa Sé, ao encerramento das comunidades congregacionais, à expulsão e exílio de religiosos, bem como na promulgação de medidas laicizadoras. Entre 1913 e 1919, assistiu-se ao surgimento da resistência e reorganização católicas e de novos protagonismos, acompanhado por um lento processo de apaziguamento, marcado pela convocação à união e à intervenção pública dos católicos por parte do episcopado, que acatara a linha “democrata-cristã”. Entre 1919 e 1926, houve uma progressiva pacificação caracterizada pelo restabelecimento da autoridade eclesiástica diocesana, pelo esforço da intervenção unitária dos católicos, em que a questão de regime – republicano ou monárquico – foi secundarizada, pelo reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé, e pela reorganização da presença de congregações. Esta última fase culminara com o Concílio Plenário em 1926, no mesmo ano em que o golpe de Estado militar de 28 de Maio derrubou o regime republicano e, posteriormente, com a criação da Acção Católica em 1933.
A meio desse caminho, Salazar chegou ao ministério das Finanças, em 1926, por um curto período, e dois anos depois, para ficar nessa pasta através da qual passaria anos depois a controlar o aparelho do Estado. A ida de Salazar, dirigente do Centro Católico Português (CCP) para a pasta das Finanças, terá contado com o apoio decisivo da Igreja católica. A partir de 1928, foi, por exemplo, apoiado pelo diário do episcopado, Novidades, que se revelou um claro defensor da sua política financeira junto dos militares conservadores, mas republicanos, que tinham tomado o poder em 1926 e o hegemonizaram até 1930.

No entanto, as alterações benéficas para a Igreja verificadas ocorreram num quadro jurídico de separação, que se manteria posteriormente no salazarismo, ao mesmo tempo que a intervenção católica se ia assumindo como que acantonada à área religiosa e social. Ou seja, apesar do envolvimento político-militar de católicos contra a República, prevalecia, no plano institucional, a tendência de ralliement, que remetia a actuação pública dos católicos à pugna eleitoral e à reforma do regime, sem sedição.

O ano de 1930 foi o da hegemonização do governo militar por Salazar, que proferiu então, o discurso «Princípios fundamentais da revolução política», onde explicava por que tinha criado a União Nacional (UN) e se demarcava tanto da democracia liberal, como do totalitarismo, contrapondo, a «um e outro extremo», um «Estado forte, mas limitado pela moral, pelos princípios dos direitos das gentes, pelas garantias e liberdades individuais». Este Estado, que devia ser tão forte que não precisava de ser violento, segundo as palavras de Salazar, responderia à «ânsia de autoridade e disciplina» que, segundo o então ministro das Finanças, agitava as novas gerações.

Abrindo o caminho ao Estado Novo, regime ditatorial civil, Salazar propunha assim uma «nova ordem de coisas», que, segundo ele, melhor se ajustasse ao temperamento e às necessidades dos portugueses. Depois, Salazar explanava por que a recém-criada UN era diferente dos partidos, cabendo nessa União todos os defensores de um Estado forte, autoritário, anti-partidário e anti-democrático, fossem eles republicanos ou monárquicos do Integralismo Lusitano ou da Causa Monárquica. Quanto aos católicos, foram confrontados com a escolha entre aderirem à UN ou manterem-se no Centro Católico Português (CCP). Embora tivesse sido um dos fundadores e definidores da linha do Centro Católico, nos anos vinte, Salazar manifestou então a opinião de que este se deveria transformar em associação social, prescindindo da acção política, doravante deixada à UN. Quanto aos pouco católicos “democratas-cristãos”, foram remetidos para a oposição, que eles engrossariam a partir de 1958, já com o nome de católicos progressistas.

Salazar democrata - cristão?