1.5.10

Apresentação do livro Angelina Vidal, de Mário de Campos Vidal, Editora Tribuna da História, 2010

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ANGELINA VIDAL, uma socialista e republicana com um pensamento original

Olympe de Gouges e Angelina Vidal eram as duas intelectuais e escritoras, activistas políticas que lutaram pelos direitos das mulheres e dos trabalhadores e ambas defenderam a República e os valores da revolução francesa.
É certo que uma era portuguesa e a outra francesa, que viveram em finais de séculos diferentes e que, se uma interveio nos salões e em centros republicanos, além de pertencer aos Girondinos, a outra proferiu conferências nas associações operárias e aderiu ao socialismo.
Uma morreu na guilhotina e a outra na miséria, mas em comum tiveram o facto de ser ambas caluniadas pelos republicanos que as acusaram de serem monárquica a francesa e «talassa» - que é o mesmo - a portuguesa.
Em França, Angelina Vidal justificou a condenação à morte de Luís XVI, mas rejeitou o banho de sangue que se lhe seguiu e, em Portugal, embora fosse adepta da revolução republicana, criticou veementemente o regicídio
É que ela considerava que a República nada tinha a ganhar, ao erguer-se sobre um assassinato político.
Sobre a revolução francesa, Angelina Vidal escreveu e discursou frequentes vezes nos centros republicanos. No entanto, sempre preferiu Danton e Condorcet, a Marat ou a Robespierre.
Francófila, os seus «maîtres à penser» eram os enciclopedistas e iluministas franceses, em particular Voltaire, Rousseau e Diderot. No entanto, preferia claramente o último, aos dois primeiros
Em 1880, Angelina Vidal escreveu que Voltaire «não ousou arrastar a queda dos deuses velhos e as carcomidas monarquias» e Rousseau tinha uma «metafísica toda teológica». Já sobre a filosofia de Diderot, admirou-a por ser «despida de toda a metafísica» e apoiar-se «inteiramente nos princípios do positivismo».
Positivismo de Augusto Comte que ela sempre defendeu nas suas conferências sobre filosofia e ciências, desde que publicou «A morte de Satã», onde elogiava o progresso imparável da ciência moderna baseada na razão, na «constatação dos fenómenos e na experimentação.
Dado que os republicanos jacobinos, de certa forma hegemónicos no pensamento português da primeira metade do século XX, criticaram Angelina Vidal, não só em vida, como depois, a sua obra pouco tem sido abordada e a mais das vezes tem-no sido com algum preconceito.
É efectivamente recorrente o facto de se considerar que Angelina teria atraiçoado a revolução, o republicanismo e o anti-clericalismo iniciais, substituídos no fim da sua vida por uma pretensa postura conservadora e mesmo religiosa.Trata-se porém de uma análise simplista que atraiçoa a verdade.
Alguns houve que fizeram justiça a Angelina Vidal, nomeadamente a actriz Mercedes Blasco, no seu livro Vagabunda (1920), ou Raúl Esteves dos Santos, em Génio e Desventura de Angelina Vidal (1954) -, caiu depois sobre Angelina Vidal um manto de silêncio, aliás habitual em Portugal relativamente a quem não for considerado, no seu tempo, «politicamente correcto» relativamente ao pensamento ideológico e político hegemónico.
Recentemente, duas obras, que abordam a vida e obra de mulheres portuguesas na História de Portugal, inseriram textos que também fizeram justiça a Angelina Vidal.
Tratou-se dos livros de Alice Samara e Anabela Natário, respectivamente, Operárias e burguesas: as mulheres no tempo da República (A Esfera dos Livros, 2007) e o quinto volume da obra em seis volumes, Portuguesas com História (Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2009).
É no entanto com este estudo de Mário Campos Vidal que se tem finalmente acesso em profundidade ao pensamento e à obra da republicana socialista, feminista, autodidacta, poeta, escritora, jornalista, conferencista e activista política que tão importante foi no final do século XIX e no início do século XX.
O livro fornece um retrato multifacetado de uma mãe, que viveu sozinha, ganhou a vida através do trabalho intelectual e lutou politicamente, sempre com uma voz original, livre e independente.
Nesta biografia, onde a obra de Angelina Vidal é escalpelizada e interpretada com grande sagacidade e sensibilidade teórica, o autor revela um admirável equilíbrio entre a empatia necessária com a personagem biografada e a objectividade de análise.
Acima de tudo, dá com mestria um retrato do pensamento político dos meios intelectuais da época em geral, e dos republicanos e socialistas em particular. Dá também centralidade aos principais motivos de polémica que existiram no final do século XIX e no início do século XX.
Por exemplo, ao debate recorrente na época acerca dos meios para mudar o regime: entre evolução e revolução, entre a via violenta ou a via pacífica, entre a reforma do regime monárquico ou o seu derrube para implantar a República.
Da infância de Angelina Casimira do Carmo pouco se sabe, a não ser que nasceu numa família da média burguesia, em 1847. Seu pai, Joaquim Casimiro Júnior, era músico e compositor, miguelista, por opção política, a ponto de dar à irmã de Angelina, o nome de Carlota Joaquina, em honra à rainha absolutista.
Órfã de pai na tenra idade, bem como de mãe, da qual nada se sabe, Angelina terá estudado provavelmente num liceu e/ou no Conservatório, francês, piano e música.
Mais tarde, ela ensinaria estas disciplinas, quer na Sociedade «Voz do Operário, quer em casa. «Sou professora de cursos secundários e de piano e música» - disse a dado momento, acrescentando nunca ter tido «um aluno ou aluna de família republicana que pagasse lições».
Além disso, trabalhou como jornalista, tradutora e revisora em diversos jornais e, durante «perto de seis anos, redigindo a ‘Voz do Operário’, escrevendo artigos editoriais, versos, romances»
Em 1872, casou-se com Luís Augusto de Campos Vidal, filho de um liberal maçon, nascido em Coimbra, onde aquele cursara Medicina.
Inicialmente colocado como médico no Cadaval, onde nasceu a primeira filha de ambos, Maria Julieta (1873-1944), Luís Augusto Vidal deslocara-se depois com a família para Aviz, onde o casal teve a segunda filha, Violeta (1874-1916), e mais tarde para Lisboa, onde nasceria Antonino (1876-1912).
Depois, o marido de Angelina ingressou como médico da Armada Portuguesa, estando quase sempre ausente no estrangeiro.
Em 1879, nasceu a quarta filha, Ema, precocemente falecida de pneumonia, em 1 de Fevereiro de 1885.
Esse ano de 1885 foi aliás particularmente trágico na vida de Angelina Vidal, não só devido à morte de Ema, como devido à separação do marido (falecido em 1894), que lhe retirou a tutela dos três primeiros filhos.
Nunca se resignando a essa perda, Angelina viveria os anos seguintes com dois filhos a cargo, Hugo, nascido em 1886, e Beatriz, uma menina abandonada que adoptou.
Angelina Vidal foi conferencista e jornalista, em particular na imprensa operária, muitas vezes a título gratuito.
No início dos anos 80 do século XIX, Angelina iniciou a sua longa colaboração com a Voz do Operário, de cujo jornal veio a ser editora, entre 1897 e 1901
Além de jornalista, trabalhou como tradutora, professora e olissipógrafa, além de escrever teatro, prosa e poesia. Ganhou dois prémios internacionais, o primeiro em 1885, com o poema Noite do Espírito e o segundo, em 1902, com Ícaro.

Religião

 Anti-clerical e anti-jesuítica, Angelina Vidal ergueu-se contra o facto de o catolicismo ser a religião oficial do Estado e lutou a favor da separação entre este e a Igreja.
Recusava uma religião fundada no «filicídio» e num Deus «monstruoso», que consentia no «vício da miséria» e considerava responsável por espalhar o obscurantismo, bem como recusar as grandes descobertas científicas.
Angelina Vidal lutou contra o ensino religioso e a apropriação da educação pela Igreja, embora viesse a criticar, após a implantação da República, o anticlericalismo estatal.
Apesar de continuar então a defender que a escola oficial não devia ser religiosa, nada tinha contra o facto de o ensino particular o ser, achando que devia haver liberdade de associação e exposição dos membros do cristianismo.
Angelina Vidal sempre admirou aliás Jesus, o revolucionário e lutador pela igualdade e liberdade, evoluindo mais tarde para um deísmo cristão.

Republicana e federalista

Republicana, socialista e militante nas hostes «avançadas», participou nas grandes homenagens republicanas a Camões e, embora com menor entusiasmo, ao marquês de Pombal, insurgiu-se contra o Ultimatum inglês de 1890 e apoiou a revolução no Porto de 1 de Janeiro de 1891.
Criticou as reformas monárquicas por tudo deixarem na mesma e, considerando a Carta constitucional desajustada ao país, defendeu que a solução não passava pela reforma desta, nem pela da monarquia, mas pela implantação da República.
Militante do Partido Republicano Federalista, fundado em 1878, Angelina Vidal começou por defender o federalismo, tal como era aplicado na Suíça, e por isso foi particularmente activa nas eleições municipais, embora nunca fosse iberista.
Apesar de se relacionar com republicanos e socialistas, não deixou de criticar o Partido Republicano, erguendo-se contra os «diletantes descomprometidos» republicanos e contra a desunião, bem como a falta de solidariedade entre estes e os socialistas.
Para ela, a República era um passo na estrada do progresso, mas não o único passo

Socialista

Se Angelina Vidal foi uma voz crítica do clericalismo, da monarquia e do sistema económico e social vigente, foi sobretudo defensora do socialismo, o único regime que, segundo ela, resolveria a «questão social».
Afirmou que, sendo o capital «trabalho não pago» e tendo em conta a estrutura vigente, qualquer acção política «por mais liberal, mais democrática» que fosse, era «sempre conservadora e autoritária em face do problema operário».
Por isso, Angelina Vidal aproximou-se, em 1879, do socialismo. Defensora da existência da incompatibilidade absoluta de interesses entre os capitalistas e os operários, considerava porém que as «classes directivas» e o capital tinham uma parte importante no destino dos povos, desde que fossem base do progresso, e não déspotas dos trabalhadores.
Lutadora pelo associativismo operário e pela igualdade social, Angelina Vidal sempre disse que seriam os trabalhadores a conquistar, pela força do Direito e não pelo direito da força, a sua própria emancipação, munindo-se do arsenal da instrução social.
Embora nunca falasse de feminismo e chegasse até a criticar as republicanas da Liga das Mulheres Portuguesas que lutavam pelo sufrágio feminino, Angelina Vidal lutou incessantemente pela igualdade entre homens e mulheres, quer no trabalho quer nas leis civis.
Para fazer face à situação económica, social e política das mulheres, acreditava que a solução passava pela educação – gratuita -, bem como pelo reconhecimento da função materna e na família das mulheres.
Por exemplo, ao criticar o Conservatório nacional por fazer «milhares de pianistas sem dar só uma mãe de família», sugeriu que essa escola deveria ser substituído por um instituto de estudos de «economia social e doméstica».
Erguendo-se contra a indissolução do casamento, também lutou contra a separação, ela que sentiu na pele, primeiro, o que era ser mãe e chefe de uma família com marido ausente e, depois, mulher à qual os filhos foram retirados pelo marido.

Preocupação com as operárias

Mas Angelina Vidal preocupou-se sobretudo com a situação das operárias. Nesse aspecto, seguiu os teóricos socialistas e marxistas, para os quais a questão feminina não se justificava por si própria mas inseria-se na condição operária geral.
Ou seja, a emancipação das mulheres dar-se-ia a par com a emancipação dos trabalhadores, embora não devesse fazer esquecer, segundo Angelina Vidal, o papel daquelas na maternidade, tarefa primordial e central da sua existência.
Erguendo-se contra divisão entre operários e operárias, apelou à solidariedade e ao associativismo de todos.
Num texto intitulado «Às operárias portuguesas» (1886), que trabalhavam em média 15 horas, incentivou-as a seguir o exemplo da luta das operárias austríacas que haviam conquistado as 12 horas de trabalho.

Originalidade do pensamento de Angelina Vidal

Ao defender a renovação da sociedade e a mudança de regime, Angelina Vidal oscilou entre os meios para a atingir: por vezes, disse que a sociedade mudaria pela «evolução» através de reformas (republicanas, pois não acreditava nas reformas da monarquia), outras vezes, defendeu a «revolução».
Esta não deveria porém constituir uma «revolta insensata e indefinida», nem a almejada nova sociedade deveria ser conquistada pela violência, «mas pela serenidade».
A revolução «controlada» de Angelina Vidal era aquela que traria a ordem, a economia politica, o desenvolvimento industrial e agrícola, a descentralização, o federalismo, a separação entre a Igreja e o Estado, mas com respeito pela religião do foro íntimo.
Em suma, era uma revolução que favoreceria a instrução, solidariedade, a paz, o trabalho e liberdade universal
Devido a estas posições, ao afastamento do republicanismo e à aproximação ao socialismo, e sobretudo devido ao facto de se erguer contra o regicídio, Angelina Vidal chegou a ser acusada de monárquica, pelos seus antigos correlegionários.
Após a implantação da República, que Angelina tanto desejou, ergueu-se contra a monopolização do poder pelos «democráticos» de Afonso Costa.
Continuando a apoiar os sindicatos, mas não os sindicalistas – então quase todos anarquistas -, Angelina não cessou de defender reformas que pusessem fim à miséria das classes laboriosas e de denunciar a repressão dos operários pelo governo republicano.
Pugnando pela greve como meio de luta económica, embora opondo-se à greve política continuou a alertar para o facto de a emancipação das classes trabalhadoras ser obra dos próprios trabalhadores.
A bandeira destes deveria, no entanto, ser «vermelha de luz, mas não de sangue».
Física e economicamente debilitada, chegando a passar fome, Angelina desfaleceu na rua, em 11 de Fevereiro de 1894. Alguns dias depois, tentou suicidar-se, sendo o facto noticiado na imprensa.
Abriram -se subscrições em seu auxílio, que porém se ficaram na maioria das vezes pelas intenções, pois o que imperou foi a indiferença dos socialistas face à precária situação de Angelina.
No final da vida, apesar da miséria, da doença, da solidão e da desilusão, da asma e das dores articulares, Angelina Vidal continuava a ter o mesmo apurado sentido de humor de sempre.
Em 1917, voltou a pedir uma pensão de sangue pela morte do marido em serviço, que lhe vinha sendo sistematicamente recusada, e que acabaria por ser concedida, em 31 de Julho de 1917. No entanto, já era tarde, pois morreu no dia seguinte.
Em 2 de Agosto desse ano, numa homenagem feita pelo Senado da República, o deputado Agostinho Fortes deixou as seguintes palavras:

«A vida dessa pobre senhora foi um verdadeiro calvário. Havia quem a apodasse de leviana e de pouco ponderada; mas o certo é que ela era uma mulher de grande ilustração e de espírito ardente, vivendo em profundo desequilíbrio com uma sociedade sorna, bafienta e estúpida. É que então o problema económico para nós apresentava-se como devendo ter uma solução política. Angelina Vidal que muitas vezes foi levar uma parte do seu vencimento de professora, a mansardas que outros não visitariam, foi a companheira de muitos homens que pela política conseguiram governar-se.