28.4.11

Ao Professor, Intelectual, Historiador e Cidadão Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)


Há menos de uma semana, o historiador Diogo Ramada Curto publicou um excelente texto que já foi editado em post aqui no Jugular, pela Shyznogud. Tratou-se, sem que o autor o soubesse, de uma homenagem muito importante, segundo penso, ao intelectual, historiador, professor e cidadão Vitorino Magalhães Godinho, que acaba infelizmente de falecer. Diogo Ramada Curto evoca no seu texto o combate do historiador francês Marc Bloch e os «nomes dos intelectuais e historiadores portugueses que também lutaram pela liberdade – e por manter o estudo do passado fora das manipulações políticas -», citando em particular Jaime Cortesão, António Sérgio, Alfredo Margarido e precisamente Vitorino Magalhães Godinho. Ramada Curto considerou no seu texto que essa evocação «não é apenas um ato de justiça da nossa memória coletiva, europeia e portuguesa», mas pretende «ser, também, uma forma elevada de introdução a um debate que assume, hoje, particular intensidade: para que servem as humanidades, as ciências sociais e as universidades ou centros onde se ensinam e são objeto de pesquisa?»

Vou aproveitar a “boleia” de Diogo Ramada Curto para também prestar homenagem ao Professor Vitorino Magalhães Godinho, ao participar no debate, com a publicação de partes de um texto que redigi por ocasião do Dia da Universidade Nova, em 2008

«Neste início do século XXI, para que serve a universidade? Para que servem as ciências sociais e humanas? Para que serve a história?

Quanto à função da Universidade

A universidade não tem só um papel educativo, no sentido de se interessar apenas pelo que lá se apreende, mas deve interessar-se também pela forma como se aprende. Ela alimenta e forma a capacidade instintiva de compreender, de aprender a procurar. Ensina os estudantes a reflectir, a procurar um sentido, a identificar os problemas por eles próprios e a resolvê-los através de argumentos analíticos, apoiado em provas. Ensina a pôr em causa as interpretações que lhes são apresentadas, a pôr uma ordem no caos das informações, a verificar o que é estável no conjunto instável de informações que se fazem passar por conhecimento. Entre parênteses, na era da Internet, a universidade deve ensinar a utilizá-la, orientar para a pesquisa e, já agora, pelo caminho, dar um sentido à autoria, hoje perdido. A universidade também ensina muito do que a sociedade procura: o espírito de empreendimento, a capacidade de gestão, o trabalho de equipa, a adaptabilidade a várias situações e a utilização eficaz de competências específicas.

E as ciências sociais e humanas?

Isto tudo vale para as ciências sociais e humanas, cuja importância para a sociedade é infelizmente subestimada pela visão progressivamente instrumental da universidade, demasiado concentrada – embora bem – em outras ciências. Por um lado, há quem considere que as ciências sociais e humanas são inúteis e que seria melhor que fossem substituídas, pelo menos no liceu, pela gestão e pela informática. Por outro lado, já vai longe o tempo em que as saídas profissionais dos diplomados universitários pareciam estar garantidas e em que o investigador recém-doutorado em ciências sociais e humanas se definia por um método e pelo seu mérito, atravé do qual tinha acesso a um posto na universidade ou num centro de investigação.

É certo que essa situação, em Portugal, bem como noutros países europeus, também se aplica às outras ciências, mas tem talvez mais acuidade no campo das ciências sociais e humanas, onde – lembre-se – existe uma quase absoluta ausência de centros de investigação. (…) Pelo contrário, na Grã-Bretanha, há uma menor importância acordada à especialização e um doutor em filosofia ou história pode facilmente trabalhar num banco ou numa empresa.

Paralelamente, verifica-se também hoje de certa forma, em Portugal, uma acrescida procura social de produção dos cientistas sociais. Os especialistas de ciências humanas são cada vez mais solicitados a deixar o laboratório, a cátedra e a biblioteca, sendo convidados a intervir na sociedade, que por seu turno faz apelo às suas competências.

Não é porém unicamente com recurso ao argumento da «cultura geral» que se consegue explicitar o valor social, político e até económico e cívico do saber produzido pelas ciências humanas. Esta explicitação passa sobretudo por referir as competências que estas possibilitam adquirir no quadro académico. Passa também por mobilizar essas competências noutros contextos, que não sejam apenas os dos livros onde os conhecimentos são unicamente dirigidos aos colegas, pares, estudantes, aprendizes, eruditos ou mesmo autodidactas.

Entre as ciências sociais e humanas, conta-se a História

Em 2000, o professor José Mattoso, da FCSH da Universidade Nova de Lisboa dirigiu-se aos estudantes de História, para afirmar precisamente a utilidade e a necessidade dessa disciplina no mundo actual e em Portugal. Hoje, oito anos depois, as suas observações mantêm-se perfeitamente actuais, por isso vou aqui referir algumas, de forma telegráfica. Em primeiro lugar, continua a verificar-se hoje um alargamento da projecção cultural da História, revelador de que a licenciatura em nesta disciplina não serve só para dar aulas, mas também para responder a um enorme interesse e curiosidade por parte de sectores amplos da população. Interesse que também se exerce sobre outros profissionais, jornalistas, sociólogos, economistas, etnólogos, especialista em literatura, ou no campo das artes. Ao mesmo tempo, os historiadores exercem hoje uma variada gama de profissões e estão, geograficamente, por toda a parte, ocupando-se a investigar o passado de todos os lugares e de todas as regiões. O Professor José Mattoso explicitou as competências fornecidas pelos cursos de História, salientando a necessidade de se esbater a oposição estabelecida entre a investigação e a aplicação dos conhecimentos às tarefas da vida corrente.

A formação em História contribui para se adquirir a noção da infinita complexidade das formas de sociabilidade. Habitua a olhar para todos os acontecimentos como resultantes de causas e de condições muito variadas, conjugadas de forma aleatória. Habitua a descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças e das doutrinas. Habitua a detectar por que razão, sob aparências diferentes, se voltam a repetir situações análogas, se reproduz a busca de soluções parecidas ou se verificam evoluções paralelas. Habitua a aferir as informações recebidas segundo os seus diversos graus de credibilidade, a compará-las entre si para tentar descobrir os factos objectivos que lhes deram origem. Habitua a saber onde ir buscar os testemunhos necessários para obter e documentar as informações desejadas.

Hoje estamos a viver um período em que parece haver, na sociedade, um eterno presente, sem ligação, quer com o passado, quer com o futuro. Nem sempre foi assim, pois a relação com o tempo e a historicidade foi mudando ao longo dos séculos.

Antes do período contemporâneo, inaugurado pela revolução francesa reinava um regime de historicidade no qual a luz vinha do passado e não do futuro. O interesse pelo passado prendia-se com o objectivo de fazer do presente um melhor presente. Era esse o movimento do humanismo renascentista, ao procurar na antiguidade clássica as raízes para a construção de um presente ainda mais glorioso que o de antanho.

A partir do século XVIII, surgiu, na Alemanha, outro regime de historicidade, que recebeu a sua tradução politica, sob forma violenta, com a Revolução francesa. A história instalou-se na relação entre passado e o futuro, como tentativa de articulação desses dois elementos, para estabelecer um continuum entre passado, presente e futuro.

Depois, ao longo do século XIX, no campo académico, os professores de história e os historiadores tinham uma missão: fabricar a nação. As histórias nacionais eram teleológicas, escritas em função do futuro, um futuro de progresso e de Luzes. Hoje, após 1989, a ideia do progresso entrou em crise. Perdeu-se a abertura para o futuro e passou-se a viver uma historicidade «presentista», segundo a expressão de François Hartog.

Actualmente, vive-se um presente que é órfão do passado e do futuro, que fabrica cada dia o passado e o futuro de que necessita. Ora, é no investimento do futuro que o passado se tornava inteligível. Mas quando o futuro já não é o motor da sociedade e já não é objecto da esperança, apontando para a catástrofe, a história com grande «H» já não tem sentido, parecendo estar a transformar-se numa multidão de histórias particulares com pequenos «h». O que nada tem a ver – diga-se – com o fim da história. Por outro lado, com o fascínio pelo presente que conduz ao desinteresse de tudo o que se passou antes, o passado já não é convocado.

Há a ideia de que se pode viver ignorando o passado. No entanto, sem ter o passado em conta não se consegue compreender o que se passa. Um povo ignorante da sua história está desarmado, pois, não podendo comparar o que é ao que foi, fica perante o facto consumado que ele tende a aceitar sem protestar. A história é de certa forma a mais política das ciências humanas. Espera-se do historiador que, além de político, ele seja juiz, especialista em direitos do homem e monitor da consciência universal. É por
isso fundamental caracterizar o lugar na História.

E a História não é uma religião, não aceita dogmas, não respeita interditos, não conhece tabus. A História também não é a moral, nem um objecto jurídico. Não cabe ao historiador ou ao professor de História exaltar ou condenar, dado que ele não é um auxiliar da justiça, nem uma testemunha da moralidade.

O historiador é um paciente investigador, que das descobertas no indicativo não pretende tirar conclusões no imperativo, como diz Jacques Julliard. E, no entanto, num mundo reduzido ao presente, condenado ao zapping e dominado pelos media, o historiador é mais necessário que sempre. O profissional de História é aquele que tem o encargo social de cultivar a memória, cujo exercício é indispensável à vida em sociedade.

Os seus objectivos são, no fundo, a preservação da vida dos membros da sociedade e a criação de condições favoráveis ao seu desenvolvimento. Escrever a História é também um modo de nos livrarmos do passado, por vezes infeliz, como disse Goethe. Ou seja, na medida em que, ao fazer o luto do passado, o trabalho da História ao mesmo tempo preserva a memória e contribui para pacificá-la. Ao transformá-la numa justa memória, a História possibilita uma relação actuante entre o passado, o presente e o futuro, bem como de solidariedade entre as gerações