O título deste texto pode parecer totalmente escusado, pois
no longuíssimo prazo, em História, “tanto faz” que o Estado social tenha
nascido, dez anos antes ou dez anos depois, ainda para mais porque se vive, em
Portugal e noutros países europeus, um período em que ele está a ser
desmantelado (pelo actual governo, e não pelos sucessivos governos nos últimos
anos).
No entanto, considero que é importante a questão e a
distinção entre situar-se a emergência do Estado social há 50 anos, ainda
durante a vigência do regime ditatorial de Marcello Caetano, ou posteriormente.
É que entretanto houve um acontecimento de grande importância, o golpe de
Estado de 25 de Abril de 1974, que não possibilitou apenas a transição para a
democracia, mas também, entre outros factores, o nascimento do
Estado-Providência em Portugal.
A afirmação de que o seu surgimento foi há 50 anos não se
relaciona apenas com aspectos historiográficos, mas tem motivos claramente
políticos e ideológicos. Tenta-se dizer com isso que o 25 de Abril de 1974 era
escusado e até foi prejudicial pois que, quiçá, do “marcelismo”, se poderia ter
feito uma transição para a democracia “à espanhola”, através de um processo
reformista mais “doce”, poupando Portugal a uma ruptura política. Não vou
entrar por aí, pois também podem ser atribuídas razões políticas e ideológicas
à minha afirmação de que o Estado social não surgiu na vigência de Marcello
Caetano no poder, quando me esforço por ficar no campo da História (na certeza
que existe sempre, também neste, a interpretação).
Além do mais, não entro por aí, pois não sou adepta da
História contrafactual, talvez porque me falte imaginação para ser ficcionista.
No entanto, não posso escapar a colocar algumas questões: seria possível
enveredar pelo Estado Providência, só possível em democracia, com a manutenção
da guerra colonial e do afastamento da então CEE? Mesmo se a continuação dessa
guerra já não tinha como objectivo manter o império colonial, mas, como disse
Caetano, a “defesa do Ultramar impôs-se-nos, pois pela necessidade moral de
preservar vidas e bens daqueles que, em territórios secularmente portugueses,
portugueses são” (Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1975, p. 225).
Ao invés de entrar por aí, prefiro dizer por que afirmo que
o Estado Providência não nasceu em Portugal com Marcello Caetano, ao citar o
próprio. Desde já, também digo que ele também não emergiu com Bismarck, na
Prússia, como alguns dizem, ou até com as ditaduras que enxamearam a Europa nos
anos trinta e quarenta do século XX. Sim, porque esses regimes de “omnipotência
estatal” (a frase é do próprio Salazar, referindo-se ao Estado hitleriano),
podem também ser caracterizados como “Estado social”: por exemplo, foi durante
o regime nacional-socialista que trabalhadores alemães puderam, por exemplo,
realizar cruzeiros à Madeira, através da organização de tempos livres “Força
pela Alegria”. Evidentemente, esse “Estado social” não beneficiava milhões de
outros alemães, entre os quais comunistas, socialistas, homossexuais, ciganos e
judeus.
É que uma das características – não tenho aqui espaço para
descrever todas elas – do chamado Welfare State – que nasceu na Europa, pela
mão de Beveridge e do Partido Trabalhista britânico, elaborado durante a II
Guerra e colocado em prática no pós-guerra
–, é precisamente a sua universalidade, que também não existiu na
vigência de Marcello Caetano. Este governante português foi aliás o primeiro a
especificar, nos anos 70, já após ser apeado do poder, que a lógica do seu
“Estado Social” - ele assim lhe chamou – não deixava de ser “corporativa”. O
que Marcello Caetano fez, quanto a mim, foi reformar o Estado corporativo
salazarista, sem sair da lógica corporativa, enquanto que o que aconteceu, após
25 de Abril de 1974, foi a emergência em Portugal de um Estado-Providência, à
semelhança do existente em quase toda a Europa ocidental. Se ele está condenado
ou não, neste terrível século XXI, não sou capaz de profetizar – a História
também não, nem é esse o meu ponto aqui. No já referido seu livro Depoimento
(pp. 124-127), escrito no exílio brasileiro, o ex-chefe do governo português
teve o cuidado de esclarecer que tinha tentado erguer o “Estado social”, “a
partir do corporativismo”, cuja história em Portugal relata, a partir de 1933,
bem como a do lançamento, a partir de 1934, das “bases da previdência social”,
também corporativa.
Segundo Caetano, “aquilo que nos países do centro e norte da
Europa foi resultado de árdua conquista do proletariado, com o apoio do
sindicalismo ou do socialismo reformista, em Portugal proveio da acção do
Estado e converteu-se pacificamente em direito”. Caetano concluiu que, aos
trabalhadores portugueses, “a legislação corporativa trouxe benefícios
inegáveis, com a vantagem suplementar de lhes ter poupado muitos milhões de
horas de expectativa, de sofrimento, de miséria, de ódio que as greves
reivindicativas acarretaram para o operariado nos países em que os mesmos
benefícios foram arrancados na luta ou onde as organizações sindicais fizeram
dos trabalhadores massa de manobra de exercícios revolucionários”. Por isso,
por respeito e convicção, Marcello disse ter mantido o Estado Corporativo,
embora sob a fórmula do “Estado Social”, “mas não socialista”, como disse num
discurso, proferido no Porto, em 21 de Maio de 1969.
Caetano referiu ainda a sua acção na “execução da legislação
que deu aos sindicatos nacionais maior liberdade de gestão e de acção” e “no
“processo de elaboração ou da revisão das convenções colectivas de trabalho”
(decreto-lei de 28 de agosto de 1969). Queixou-se porém de que a “libertação
das eleições sindicais da sanção governamental levou o partido comunista a
movimentar-se imediatamente em quantos sindicatos pôde, para conquistar
posições nos respectivos corpos gerentes”. Mencionou ainda o alargamento do
abono de família para os rurais, em 1969. Efectivamente foi então – só nesse
ano! – instituído o regime de abono de família dos trabalhadores rurais por
conta de outrem, gerido pelas Caixas regionais de Previdência e Abono de
Família (Lei n.º 2144, de 29 de Maio).
Marcello Caetano recordaria ainda que ter sido ele a
desenvolver de forma assinalável a Assistência na Doença aos Servidores do
Estado (ADSE), introduzida em 1963. Realçaria também o facto de, na sua
vigência, se ter procurado “melhorar as condições do estatuto dos funcionários
e suprimir discriminações e restrições desnecessárias, aproximando-o, em tudo
quanto fosse do interesse dos servidores públicos, do regime jurídico dos
trabalhadores privados”. No estabelecimento dessa igualdade, começara assim a
ser atribuído o 13.º mês de vencimento e procedera-se a mudanças no capítulo da
aposentação, através do novo Estatuto da Aposentação, publicado em 9 de
Dezembro de 1972. Marcello Caetano referiu também os progressos feitos na
vigência do seu governo, em particular a explosão escolar, recordando que,
sempre “em Portugal a escola foi considerada um processo de ascensão na
sociedade”, mas salientando que apenas, “na década de 60 a afluência de alunos
às escolas de todos os graus de ensino tomou o aspecto de uma verdadeira avalancha”.
No seu Depoimento, publicado em 1975, Caetano tentou defende
a sua acção política, dando a entender que estava em marcha uma autêntica
reforma social – “aumento de força e de prestígio dos trabalhadores, melhoria
da sua participação no rendimento nacional, fácil acesso à educação”, segundo
as suas palavras – que teria sido impedida pelo golpe de Estado militar de um
ano antes. É compreensível da parte dele que assim justificasse a sua política,
embora ele próprio reconhecesse também que não havia conseguido o “progresso
moral”, “pois os factores de desmoralização encarniçaram-se sobretudo na
juventude”. E tinha razão, ideológica e politicamente o seu regime já não tinha
qualquer espécie de hegemonia, sendo rejeitado por largas camadas da população
portuguesa. O que já não é compreensível é que se arrume o assunto de uma
“penada”, ao fazer-se hoje afirmações segundo as quais o Estado social
português, tal como o encaramos – na lógica de Estado-Providência – teria
nascido na vigência de Marcello Caetano. Não, o “seu a seu dono”. Surgiu após
25 de Abril de 1974, cujos 40 anos se comemoram agora em 2014.
Texto publicado ontem, na edição do 24 Aniversário do Jornal PÚBLICO