5.10.12

John Locke: o direito de resistir à tirania




John Locke: o direito de resistir à tirania

A citação de Thomas Jefferson (Declaração de Independência dos EUA, 1776), feita por
José Gomes André, no blogue «Delito de Opinião» (08.09.12), levou-me a reler parte dos Dois Tratados sobre o Governo (1689), de John Locke (1632-1704), filósofo que os actuais neo-liberais tanto gostam de citar (está em inglês, porque não encontrei uma boa tradução portuguesa).

«Whenever the power that is put in any hands for the government of the people, and the protection of our properties, is applied to other ends, and made use of to impoverish, harass or subdue them to the arbitrary and irregular commands of those that have it; there it presently becomes tyranny, whether those that thus use it are one or many». (Second Treatise, Chapter 18).

«But if a long train of abuses, prevarications and artifices, all tending the same way, make the design visible to the people, and they cannot but feel, what they lie under, and whither they are going, 'tis not to be wondered, that they should then rouse themselves, and endeavour to put the rule into such hands, which may secure to them the ends for which government was at first enacted».
(Second Treatise, Chapter 19).

Para Locke, o governo civil legítimo é instituído pelo consentimento explícito dos governados, que decidem transferir para ele, por acordo, o seu direito de executar a lei de natureza e de julgar seu próprio caso. Estes são os poderes que são dados ao governo central e que legitimam a função do sistema da justiça dos governos. Todavia, a transferência dos direitos naturais para o Estado, representada pelo pacto originário, é parcial. Ao ingressar no estado civil, os indivíduos renunciam a um único direito: o de fazer justiça pelas suas próprias mãos. Conservam todos os outros, principalmente o direito à propriedade, que já nasceria perfeita no estado de natureza, fruto de uma acção natural - o trabalho -, que não dependeria do reconhecimento alheio.
Dado que, no estabelecimento do governo civil, o consentimento universal é necessário para dar forma a uma comunidade política e que uma vez concedido não pode ser retirado, alguns fazem uma leitura da comunidade política lockeana enquanto uma entidade estável. No entanto, outros observam que existe, em Locke, o direito a resistir ao governo ilegítimo. Nas circunstâncias de um governo ilegítimo, que viole a vida, a liberdade e a propriedade do povo, a rebelião é legítima. Para Locke, todo o poder político legítimo deriva somente do consentimento dos governados que confiam as suas «vidas, liberdades, e posses» à comunidade como um todo, expressa esta maioritariamente pelo seu corpo legislativo. Mas a comunidade política como um todo pode ser dissolvida (e uma nova pode ser formada) sempre que haja uma mudança fundamental nos membros da legislatura ou uma violação das leis. O soberano que, contrariando o poder supremo por ele representado, desrespeita a lei, perde o direito à obediência, «pois que não devem os membros [do corpo político] obediência senão à vontade pública da sociedade».
Locke admite assim o direito de insurreição em determinadas circunstâncias: «Se um governo subverte os fins para os quais foi criado e se ofende a lei natural, então pode ser deposto». Na visão de Locke, a possibilidade de revolução é uma das características de qualquer sociedade civil bem formada. A causa mais provável da revolução é o abuso do poder pelo próprio governo: quando a sociedade interfere erradamente nos interesses de propriedade dos cidadãos, estes têm de se proteger retirando-lhe o consentimento (Segundo Tratado, § 222). Ocorre uma usurpação quando alguém se apodera pela força daquilo a que outro tem direito ou prejudica o bem público. Quando são cometidos grandes erros na governação de uma comunidade, só a rebelião mantém uma promessa de restauração dos direitos fundamentais (Segundo Tratado, § 225).
Quem é o juiz disso quando tal ocorre? Só o povo pode decidir, segundo Locke, pois que a existência mesmo da ordem civil depende do seu consentimento (Segundo Tratado, § 240). Locke conclui que, «se em alguns casos é permitido resistir, nem toda resistência aos príncipes é rebelião», sendo por isso muito importante saber quando é lícito desobedecer. O direito de resistência não constitui perigo para os governantes justos e numa sociedade civil política justa, não é possível que um ou mais homens perturbem um governo se o interesse colectivo não estiver em risco. Só quando os malefícios da tirania atingem a maioria da sociedade, então existe o direito à resistência contra a força ilegal. São os tiranos que são os verdadeiros rebeldes e, dessa forma, os malefícios que resultarem da resistência aos verdadeiros rebeldes não podem ser creditados aos defensores da própria liberdade. Se o fim do governo é o bem da humanidade, não pode haver tolerância à tirania. 

Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu



Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu

Ainda emocionada com a histórica manifestação de 15 de Setembro, com aquele dia maravilhoso e «límpido» em que centenas de milhares de portugueses se reencontraram uns com os outros, em que centenas de milhares em todo país saíram da solidão, tristeza e depressão, para, em conjunto, expressarem a palavra livre, sinto que também a quero expressar. Ainda comovida com a imagem de centenas de milhares de portugueses, que saíram do seu mundo individual(ista), para expressarem colectivamente a solidariedade entre gerações, entre trabalhadores da Administração Pública e do sector privado, entre empregadas e desempregados e participarem, sem divisões, num protesto comum, onde se encontravam as mais variadas opções políticas, sociais, económicas e ideológicas, tenho de novo encontrado – como muito – a palavra política. No prazo de uma semana, de dia 7 a 15 de Setembro, Portugal de certa forma mudou e, por isso, gostava de realçar alguns aspectos, entre muitos que o acontecimento histórico e a situação política actual sugerem, através de um mini-glossário que envolve, quanto a mim, palavras, algumas das quais estão ligadas:

- Alternativa(s)
- Europa
- Contrato social
- Contra-revolução ou revolução (da direita radical)

- Alternativa(s) e Europa.
Tem sido o papão do pensamento único que está no poder o facto propagandeado de que não haveria alternativas. Ora a política e a democracia são precisamente os terrenos da discussão de alternativas. Esta pseudo-ausência de alternativas acompanha-se de um total silêncio relativamente à Europa. Por isso, acho necessário que pessoas dos mais variados sectores da sociedade civil, credíveis, intervenham. Por exemplo Maria João Rodrigues, hoje, no Público, alerta: «Não acreditemos na ameaça de que se Portugal não introduzir a TSU no próximo orçamento, perderá a credibilidade internacional alcançada e o acesso à próxima fatia de financiamento externo. Há outras soluções! E no fim faz o balanço: «O que nos falta? Não o povo, que tem sido notável de bom senso e sentido de dignidade» – e digo eu, a dignidade ontem saiu à rua -. «Apenas um governo que saiba estar na Europa como parceiro responsável em vez de aluno acrítico e bem comportado». Eu diria que, para já, a alternativa é lutar contra as leis iníquas anunciadas em 7 de Setembro – foi há tão pouco tempo e tanta água já correu sob as pontes....

- Contrato social.
Este contrato social foi quebrado, porque o governo atingiu a propriedade – curioso como um governo de Direita que é visto como neo-liberal é tão estatal, para tirar aos pobres e dar aos ricos, e agride assim a propriedade individual e – que é intocável pois provém do trabalho e, portanto atingiu o que os seres humanos têm de mais precioso - a vida, a justiça e a(s) liberdade(s). Por isso, ontem a sociedade civil e política, através da manifestação de ontem está à beira de rasgar esse contrato com quem detém actualmente o poder

- Contra-revolução ou revolução da direita radical?
Ultimamente, penso que se está finalmente a perceber qual o verdadeiro plano e a real agenda política e ideológica do governo actual, do seu primeiro-ministro e ministro das Finanças, escondidos sob o guarda-chuva da Troika. Como o governo e os seus ideólogos não o expressam – e compreende-se porquê – tem sido difícil descortinar esse plano, muitas vezes escondido sob a capa da Troika, por um lado, ou sob a capa da irresponsabilidade, do erro político e de uma incapacidade de passar a mensagem, por outro lado. Se penso que todas essas características existem nos muitos novatos elementos educados na Academia e na juventude partidária que estão hoje no governo, com os quais se misturam ideólogos distantemente vindos da extrema-esquerda e mais recentemente do neo-liberalismo e do conservadorismo, também considero que já há hoje muitos indícios de que há um plano político em curso, mais vasto e global. Aproveitando, muitos deles após terem provocado a crise financeira, económica, social e política actual, trata-se de uma linha ideológica e económica que se baseia no chamado Consenso de Washington  e pretende fazer uma revolução ou contra-revolução mundial. Curiosamente, esta direita radical actual de novo tipo difere da tradicional direita radical: por exemplo, não recorre à repressão directa, não defende no imediato valores conservadores – por isso, não se preocupou em remover a legislação sobre a despenalização do IVG e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é isso que lhe interessa (para já?): curiosamente seguindo o marxismo, preocupam-se primeiro por mudar a infra-estrutura económica, e só depois se vão preocupar – sem deixarem de ter esse objectivo – com a mudança das mentalidades e a mudança do regime. A primeira etapa tem por objectivo embaratecer ao mínimo os salários, aprofundar as desigualdades sociais já existentes e proceder a uma redistribuição de riqueza, retirando-a dos trabalhadores e do Estado social, e colocando-o nas mega-empresas. Pelo caminho, o objectivo de fabricar um «homem novo» e mudar a «mentalidade» - regenerar? – dos portugueses já está a ser iniciado, tentando amedrontar e instilar uma passividade política e social.

O contributo da História
Penso de facto que, tal como Daniel Oliveira e Pedro Marques Lopes aventaram, poderá estar em curso uma (contra-)revolução da direita radical com o objectivo de criar revolucionariamente um «Homem Novo» português. Claro que este projecto é uma utopia e pouco importa se esse «homem novo» almejado seja na realidade aquele homem muito «velho» – de espinha dobrada, com chapéu na mão a pedir pão, silenciado e silencioso -, a obedecer porque deve ao «homem novo», que manda porque pode (Salazar: «Manda em pode, obedece quem deve!). 
Tentando não cair em comparações simplistas e abusivas ou em anacronismo vou-me socorrer da História do Século XX. Ora, como todos sabem, nos anos 20 e 30 desse século houve uma tremenda crise financeira (1929), que se transformou em crise económica, social e política. Dessa chamada «crise política do demo-liberalismo» surgiram respostas diferentes no espectro político europeu – por um lado, as soluções social-democrata/socialista ou marxista-leninista da ditadura do proletariado e, por outro lado, a solução do recurso a ditaduras de extrema-direita de terceira via. Apesar das diferenças existentes entre elas - por exemplo, entre o nacional-socialismo alemão, o fascismo italiano e o autoritarismo salazarista - todas elas foram ditaduras de partido único que proibiram a greve e os sindicatos livres, os partidos políticos, recorreram à censura e à repressão violenta para eliminar os adversários – à cabeça dos quais se contavam os comunistas - e, com o objectivo de eliminarem a tão odiada luta de classes, aspiravam a um corporativismo de patrões e assalariados que colaborariam entre si a favor do «Bem comum». No caso do Portugal salazarista, a formação da ditadura, ou do chamado Estado «Novo», iniciou-se, como diziam os ideólogos do regime, pela «revolução legal» - promulgação de uma nova Constituição (1933) c criação de novas instituições de repressão, censura e propaganda, bem como lançamento de uma legislação corporativa. Depois da «revolução legal», como diziam os ideólogos salazaristas, faltava criar a «revolução mental» - aquela que modificasse a mentalidade dos portugueses, criando «homens novos e «mulheres novas» adaptados aos propósitos do novo regime. E foi então que entrou em actuação, em 1936, o ministro da Educação Nacional, que «regenerou» a educação «nacional» e criou a Mocidade Portuguesa

Ora, apesar de ter em conta que passaram cem anos, neste início dos anos dez do século XXI, considero que há um propósito que se assemelha a este em Portugal e que poderá estar ligado a uma vontade de criar um novo regime, em que somente as etapas se inverteram. Penso que, aproveitando, como nos anos vinte, a crise, o actual governo optou por modificar economicamente as condições de vida dos portugueses, empobrecendo-os e começando a criar uma nova mentalidade, para depois, com a cumplicidade silenciosa e obediente, proceder então à revolução «legal», eliminando a incomodativa Constituição de 1976, e erguendo um novo regime. Em democracia, este propósito de empobrecimento generalizado e destruição da classe média – sustentáculo da mesma democracia – não é possível. Por isso, a prazo, esse regime política e as suas instituições teriam a prazo de ser eliminados.
 Para isso, em democracia – com a que apesar de tudo existe, em termos de instituições, e de opinião pública não amordaçada mas conveniente e assinaladamente controlada – há que ter cumplicidades fortes, uma das quais é a desmobilização cívica e política dos cidadãos. Por isso, a estratégia tem sido e é, de forma simplista e populista:
- arranjar de forma expedita culpados – os governos desde 25 de Abril, os portugueses por terem gasto mais do que tinham, etc… - e surgir como a única alternativa, qual vanguarda impoluta que vai colocar tudo nos eixos, cortando no património, liberdade de pensar e na própria dignidade dos portugueses
- mostrar que o actual estado das coisas é de emergência nacional, não há dinheiro, os credores e a Europa estão fartos de nos aturar como gastadores preguiçosos, e por isso temos de passar a trabalhar mais horas e de forma mais barata, para que as empresas investam, exportem e milagrosamente haja mais trabalho. Azar, e passageiro, acreditam, que haja diminuição do consumo, fecho de empresas, desemprego e maior empobrecimento. E não venham o chefe do governo passos coelho e os seus ministros que dizerem que estão muito surpreendidos com a quebra do consumo e o aumento exponencial do desemprego. Claro que sabiam e que fizerem para que isso acontecesse. Está nos livros que para embaratecer a força do trabalho convém ter uma bolsa razoável de desempregados e empregados no fio da navalha, empobrecidos e aterrados por também caírem no desemprego.
- Com uma opinião pública aterrada, culpabilizada e responsabilizada por ter vivido acima das suas posses, silenciada, evitar-se-ia para já os meios repressivos e a ditadura aberta. Por isso, como diz o Arquitecto Siza Vieira, numa frase aparentemente paradoxal para quem vive em democracia, ter a sensação por vezes que se está a viver em ditadura.
Vou contar um episódio que me alertou já há algum tempo para o que se estava a passar. Por acaso, ouvi um jovem governante português actual dizer entre estrangeiros: o que é preciso e vamos fazê-lo é mudar a mentalidade dos portugueses.



Ora, eu penso que o plano deste governo é um plano revolucionário (no sentido filosófico de revolução, religare, aliás etimologicamente vem também a palavra religião da Direita radical destinado a (re)fazer de Portugal o que ele já foi - um país de salários miseráveis, de gente pobre, temendo o desemprego e a fome e disposto, reverente, a trabalhar por qualquer salário.
Isso foi feito, é verdade, num período completamente diferente do que se vive hoje, nos anos 20 e 30 do século XX e sei bem que há perigo de se cair em anacronismo histórico, no qual não quero cair. À época o regime escolhido foi a ditadura e o certo é que nos anos trinta esse tipo de regime, contra o que se chamava a decadência e falência do regime democrático liberal do pós-Grande Guerra (1914/18). Para cumprir esse objectivo, havia que proibir a greve e acabar com os sindicatos livres, os partidos, através de um aparelho de repressão política e um aparelho de Censura. Em Portugal, como na Itália fascista e noutros países, a ideologia era a corporativa, que, ao mesmo tempo que combatia a «plutocracia» liberal, combatia também a luta de classes e o comunismo, pretendendo substituir essas duas alternativas, por uma terceira, em que corporativamente patrões e trabalhadores se juntassem à mesma mesa em prol do que se chamava «bem comum». Não ouviram ontem Vítor Gaspar referir que uma empresa era um local de colaboração?
Uma a categoria que se prende com a caracterização dos regimes antiliberais e antidemocráticos que assolaram a Europa no período entre guerras é a do mito da criação do «homem novo», que faz parte do conceito de «fascismo» mas também do dos vários «totalitarismoa», na medida em que implica uma invasão e interferência «totais» da esfera política na privada para cumprir um pretenso objectivo de «engenharia social».
Segundo a definição ideal-típica de fascismo elaborada pelo historiador Roger Griffin, há mais de vinte anos, a ideologia fascista seria um «ultranacionalismo populista palingenético», cujo mínimo denominador comum seria precisamente o mito da criação do «homem novo». Diga-se, porém, que, segundo este autor, a realidade esteve longe do ideal-tipo e que, no caso concreto de Portugal, o regime salazarista teria sido apenas «parafascista» . Prometo voltar a esse tema do homem (velho) novo

P.S. Como estive na manifestação, não vi as reportagens e várias pessoas me disseram que a RTP e os seus trabalhadores foram os que melhor cobriram a jornada, independentemente de os outros canais também terem dado o devido destaque a cobertura ao evento, mostrando como a sociedade civil e política está em todo o lado.

30.9.12

Reviver o período da II Guerra Mundial no Tamariz


Em Setembro de 2011, passei alguns dias no Estoril, aproveitando o sol e a praia, ao mesmo tempo que preparava um futuro livro sobre a espionagem em Portugal durante a II Guerra Mundial. De Lisboa, deslocava--me quase diariamente à piscina do Tamariz, com uma pasta cheia de livros sobre esse tema. A caminho da praia, eu passava ao largo do Casino – cujo edifício já não é o mesmo de há 60 anos - e pelos hotéis que já existiam durante a II Guerra Mundial, albergando refugiados ricos, ex-chefes de governo e ex-monarcas de países ocupados pelas tropas alemãs, bem como espiões dos dois campos beligerantes. Pude assim ler relatos sobre a actividade de agentes secretos ao serviço da Grã-Bretanha ou da Alemanha, que estiveram muitos deles alojados no Hotel Palácio, imersa num ambiente que remetia para a época dos anos quarenta do século XX.

Efectivamente, durante a II Guerra Mundial, a Costa do Sol, e em particular o Estoril, viveu um período de pujança, devido ao «turismo forçado» de muitos dos perseguidos e fugidos à guerra e às perseguições racistas e políticas do nacional-socialismo alemão e de outras ditaduras europeias anti-semitas. Ironicamente, foi num país onde vigorava uma ditadura nacionalista com simpatias pelo anti-demo/liberalismo e anti-comunismo do nacional-socialismo alemão que alguns perseguidos por Hitler e pelo seu regime encontraram um porto de abrigo transitório, que nunca foi de exílio definitivo.
Devido à censura, os jornais portugueses quase silenciaram por completo a presença dos anónimos «refugiados de guerra», como lhes chamaram, e preferiram evidentemente realçar os «visitantes ilustres» que chegavam a Portugal, «ponto terminal da Europa para as carreiras aéreas da América», como se lia, num entusiasmado artigo do Diário Notícias (DN), de Novembro de 1939. A partir do final desse ano, chegaram perante o deslumbramento dos portugueses e dos repórteres, muitos ex-governantes europeus, aristocratas, ex-monarcas, escritores e actores, expulsos pela ocupação alemã dos seus países ou voluntariamente, que passaram pelos hotéis do Estoril, a caminho de exílios dourados.
No final de 1940, um editorial do mesmo DN dava conta que a «guerra e o Clipper tornaram Lisboa escala obrigatória de vedetas» e que a capital portuguesa era então «a sede cinematográfica da Europa». Por Portugal, porto neutro europeu, passaram também, entre Janeiro e Outubro de 1940, a caminho do exílio, os ex-presidentes lituano e russo, respectivamente, Autonas Smetona e Kerenski, bem como os ex-governantes da Grécia, Jugoslávia, Bélgica e França. Muitos aristocratas e ex-monarcas também se instalaram nos hotéis luxuosos de Lisboa e do Estoril. Foram os casos, entre outros, da princesa Margarida da Dinamarca, dos príncipes regentes da Jugoslávia, Alexandra e Nicolau, dos condes de Paris, do Arquiduque Otto de Habsburgo e da Grã-Duqueza Carlota do Luxemburgo.
Músicos e compositores também se exilaram no «Novo Mundo», através de Portugal. Entre eles, contaram-se os compositores Bela Bartok e Darius Milhaud, bem como o antigo presidente da República da Polónia e pianista, Ignacy Jan Paderewski (1860-1941), que aguardou no Estoril a ida para os EUA. Pelo Estoril, passou logo no início de 1938, ainda antes de a guerra começar, o escritor e intelectual alemão, Stefan Zweig, exilado em Londres, para onde tinha fugido da perseguição nazi. Da estância estância balnear do Estoril, Zweig escreveu duas cartas aos seus amigos Joseph Roth e a Siegmund Freud, convidando-os para passarem um «intermezzo meridional» nesse «local tranquilo da Riviera» portuguesa. Já depois o começo da guerra, estiveram de passagem no Estoril diversos governantes, personalidades e cabeças coroadas da Europa, ocupada pela Alemanha.
Em Novembro de 1940, hospedaram-se no Hotel Palácio do Estoril o milionário Charles Guggenheim, a futura primeira-ministra da Índia, Indira Nehru, e o economista John Maynard Keynes. Outros passaram pelo Estoril com passaportes falsos, clandestina e brevemente. Foram os casos de diversos escritores e intelectuais alemães e austríacos fugidos ao nacional-socialismo, munidos de passaportes checos emitidos em Marselha, que ficaram alojados no Grande Hotel da Itália do Estoril, entre Julho e Outubro de 1940, enquanto aguardaram o navio para os Estados Unidos da América. Entre estes, contaram-se o escritor Franz Werfel e a esposa, Alma Mahler-Werfel, que sentiu, em Portugal, uma «tranquilidade paradisíaca», bem como o historiador Golo Mann, filho de Thomas Mann e sobrinho de Heinrich Mann. Este último e a sua mulher, Nelly, vinham munidos com passaportes checos em nome de Ludwig, para escapar à perseguição nazi.
Antes de partir para Nova Iorque, juntamente com o cineasta Jean Renoir, o aviador e autor do Príncipezinho esteve alojado, entre 28 de Novembro e 20 de Dezembro de 1940, no Hotel Palácio do Estoril. Face à sofreguidão com que os refugiados mais ricos gastavam, na roleta, fortunas «esvaziadas de significado» e «moeda talvez caducada», Saint-Exupéry sentiu uma tristeza e uma angústia iguais à «que nos invade no jardim zoológico diante dos sobreviventes de uma espécie em (vias de) extinção».
A maioria dos refugiados e estrangeiros que se alojaram no Estoril e na «Costa do Sol» permaneceram pouco tempo nesse local de «turismo forçado». As praias da costa do Sol, em particular a do Tamariz no Estoril, aliás como as da Foz do Arelho e da Figueira da Foz começaram a encher-se de refugiados, a partir do verão de 1940. A presença dos refugiados em Portugal nessa época foi aliás a causa da introdução de novas leis de policiamento de costumes e, nomeadamente, da adopção de normas sobre o uso dos fatos de banho, que deviam obrigatoriamente incluir o saiote, para as mulheres, e uma camisa que cobria o tronco, para os homens.
Na Costa do Sol, além dos refugiados ricos, diplomatas e estrangeiros de passagem, também permaneceram, no período da II Guerra Mundial, muitos agentes secretos dos dois campos beligerantes, que se escondiam sob a capa de adidos diplomáticos. Os agentes secretos da Alemanha terão escolhido o Hotel Atlântico, o Grande Hotel do Monte Estoril e o Hotel do Parque, enquanto o Grande Hotel da Itália e o Hotel Palácio eram os preferidos dos agentes secretos dos aliados. Aliadófilos e germanófilos também se cruzavam nos lobbies dos hotéis da Inglaterra, Paris e Miramar.
Em Outubro de 1940, alojou-se no Hotel Palácio do Estoril, o arménio Nubar Gulbenkian, que colaborou com a agência secreta britânica, MI 6 e, entre 19 e 24 desse mês, aí se instalou também o futuro ensaísta Isaiah Berlin, que então trabalhava na Embaixada britânica em Washington. Embora com um peso diferenciado consoante as fases da guerra, a actuação dos serviços secretos ingleses predominou sobre os outros. «Kim» Philby, que, mais tarde, se soube ser um espião britânico ao serviço da URSS, alojou-se no Estoril, da mesma forma que o escritor e agente secreto Graham Greene, e autor de inúmeros livros de espionagem. Outro escritor e agente secreto do Almirantado britânico que se alojou no Estoril, em Maio de 1941, foi Ian Lancaster Fleming, o criador da figura de James Bond.
Thomas Malcolm Muggeridge, outro elemento da Intelligence inglesa, alojou-se na Pensão Royal do Estoril, em Maio de 1942. Enquanto o espião jugoslavo Bocko Christitch se hospedou no Grande Hotel do Monte Estoril, em Agosto de 1941, o conde Iwan Schouwaloff, um russo branco naturalizado holandês que espiou por conta dos alemães viveu em Cascais. Este último viria a ser denunciado como espião nazi, pelo jugoslavo Dusko Popov («Triciclo»), um espião duplo que estava na realidade ao serviço dos britânicos. Entre 1940 e 1944, várias vezes em Portugal, o operacional do XX Commitee, «Triciclo» transmitiu aos ingleses e norte-americanos diversas informações, nomeadamente sobre o ataque japonês a Pearl Harbour.
Popov tinha um quarto no Hotel Palácio do Estoril, onde também permaneceu o célebre espião duplo «Garbo», para os ingleses, «Arabel», para os alemães. Tratou-se do catalão Juan Pujol, que na realidade esteve ao serviço dos britânicos e, em 1944,transmitiu aos alemães informações erradas sobre a localização do desembarque aliado, no continente europeu, dando a entender que o «Dia D», de 6 de Junho ocorreria na zona do Pas-de-Calais e não, como aconteceu, nas praias da Normandia. No Hotel Palácio do Estoril, também estiveram hospedados os actores Zsa Zsa Gabor, fugida da Hungria, em 1944, e Leslie Howard, que colaborou no esforço de guerra dos aliados. Este último partiu de Portugal, onde tinha vindo assistir à exibição do seu penúltimo filme, «Spitfire, the first of the few», em Junho de 1943, para a sua derradeira viagem num avião da BOAC, abatido por caças alemães no golfo da Biscaia.
No Estoril, também viviam espiões ao serviço da Alemanha, pertencentes quer a redes de espionagem da Abwehr – do Alto Comando da Wehrmacht - ou da Gestapo-SD. Em 8 de Outubro de 1943, por denúncia dos ingleses à PVDE, uma brigada desta polícia política portuguesa participou numa rusga, às moradias «Bel Ver», «Gira-Sol» e «Bem-me-Quer», no Estoril, as últimas das quais pertenciam respectivamente a Wilhelm Lorenz e a Hans Bendixen. Outro elemento da Abwehr alemã era o capitão Fritz Kramer, que esteve alojado no Hotel Atlântico, do Estoril, até se instalar na «Casa Atlanta».
Além de Bendixen e de Fritz Kramer, muitos outros agentes secretos alemães viviam aliás no Estoril: foram os casos, por exemplo, de Johan Georg von Wussow e de Rolf Friederici adjunto do adido comercial da Legação alemã, que reorganizou os serviços secretos da Alemanha em Portugal. Outro elemento importante da espionagem alemã em Portugal era Erich Emil Schroeder, «assistente científico e delegado da polícia» (Polizei Verbindungsführer), da Legação alemã em Lisboa, Schroeder era provavelmente o elemento da Gestapo-SD, sucedendo, em Março de 1941 e até ao final da guerra, a Walter Schellenberg.
Este último foi incumbido de raptar os duques de Windsor, que estiveram alojados na casa do banqueiro português Ricardo Espírito Santo, em Cascais, entre Junho e Outubro de 1940. O plano não foi porém levado adiante e, em 2 de Agosto de 1940, o duque de Windsor e Wallis Simpson partiram, de Lisboa, no navio «Excalibur», rumo às Bahamas, tal como pretendia Churchill. No mesmo ano, partia também do Estoril, para embarcar em Lisboa no navio que o levaria ao exílio nos EUA, o exilado alemão Heinrich Mann, deixando escrito nas suas memórias que o olhar sobre Lisboa era «o último, de uma Europa que fica».





«Portugal, durante a II Guerra Mundial, e o Holocausto»

 Foto do Holocaust Memorial Museum


Portugal, a viver sob um regime ditatorial, foi, durante a II Guerra Mundial, um país neutral por onde passaram alguns refugiados judeus e políticos, fugidos a Hitler e ao Holocausto. Ironicamente, foi numa ditadura nacionalista com simpatias pelo anticomunismo e antiliberalismo do regime nazi alemão que refugiados encontraram um porto de abrigo provisório. O facto de o regime ditatorial português, apesar das semelhanças, se ter diferenciado em aspectos essenciais do alemão, a ausência de anti-semitismo na ideologia salazarista e na sociedade portuguesa, bem como as circunstâncias geográficas da neutralidade portuguesa no quadro da aliança com a Inglaterra, acabaram por possibilitar a salvação através de Portugal de perseguidos pelo nacional-socialismo.
No entanto, da mesma forma como noutros países aliados ocidentais e neutros, só muito tardiamente o governo ditatorial português foi sabendo - ou disse que tinha vindo a saber – da existência do que se viria a denominar Holocausto (ou Shoah). Propõe-se dar aqui um contributo para esclarecer de que forma o governo português e a quase inexistente “opinião pública”, moldada por jornais censurados, se foram apercebendo do Holocausto e de que forma reagiram, ou não, face às notícias que iam chegando.

O conhecimento do Holocausto pelas forças aliadas
Os crimes nazis que envolveram um número avassalador de vítimas dificilmente poderiam ter permanecido secretos, apesar dos cuidados que os perpetradores do genocídio tiveram em escondê-los. Alguns historiadores revelaram de que forma chegaram regularmente aos aliados, em particular à Grã-Bretanha, as notícias sobre os massacres de judeus na Polónia e na URSS. O governo soviético também terá sabido dos massacres logo que a Alemanha invadiu o seu território, em Junho de 1941, e, após algumas semanas, o mesmo terá acontecido às capitais ocidentais. A Londres e Washington chegaram notícias das suas representações diplomáticas e serviços secretos na Europa, bem como as veiculadas pelo governo polaco no exílio e pelos dirigentes judeus na GB e nos EUA.
Há que fazer referência à distinção levada a cabo pelo Yehuda Bauer entre informação e conhecimento, sendo este último fundamental para a tomada de uma acção, se é que ela era passível de ser tomada. «Saber, habitualmente vem através de uma série de fases: primeiro, a informação tem de ser disseminada; depois, tem de se acreditar nela e ela deve ser internalizada, ou seja, tem de ser estabelecida alguma ligação entre a nova realidade e um possível processo de acção»[1].
O certo é que, entre a chegada aos Aliados ocidentais das primeiras informações sobre os crimes vindas da Polónia e da Rússia, em 1941, e a publicitação dos mesmos decorreram quase dois anos. Efectivamente apenas em 17 de Dezembro de 1942, foi publicamente difundida uma declaração conjunta, assinada pelos governos aliados e pelo Comité nacional da França Livre, segundo a qual os judeus da Europa estavam a ser exterminados e avisando que os responsáveis por esses crimes não escapariam ao castigo.

E a Portugal, quando chegaram informações sobre o Holocausto?
Foi então que de certeza absoluta o governo português soube do que se passava, embora já tivesse recebido das suas várias representações diplomáticas informações sobre o tratamento dos judeus nos territórios ocupados e satélites. As notícias sobre o Holocausto foram chegando ao governo de Portugal de forma desfocada, como em todo lado, mas foram-se tornando, com o tempo, cada vez mais nítidas. Em Novembro de 1941, numa carta sobre a «Ordem Nova» alemã, o ministro de Portugal em Berlim, Tovar de Lemos, observou que a forma como o partido e o Estado nacional-socialistas se relacionarem com as Igrejas, bem como «o procedimento do Governo Alemão para com os judeus» até caía «mal na opinião pública» de Portugal.
Por outro lado, através de um relatório da missão de oficiais portugueses do CEM enviados à Alemanha, de Dezembro de 1941, dava-se conta que «certas práticas seguidas no interior, pelo partido, sem que lei alguma as permita – perseguição dos judeus e eliminação de doentes considerados incuráveis» tinham vindo a levantar uma viva reacção, «em especial por parte dos chefes da igreja católica, com o apoio do Exército» alemão. O relatório acrescentava que os judeus na Alemanha e nos países ocupados eram obrigados a usar «uma grande estrela amarela, na qual se lê a palavra judeu» e, que, nos países Bálticos, os judeus «não podiam, por exemplo, circular nos passeios», nem exercer trabalhos «em contacto com o público» (sublinhado no texto)[2].
Quando os judeus de Paris, encarcerados no campo de internamento de Drancy, começaram a ser deportados para Leste, na segunda metade de 1942, o cônsul-geral de Portugal na capital francesa, António Alves, tentou obter a libertação dos sefarditas portugueses, promover a sua repatriação e negociar com os alemães no sentido de «os israelitas portugueses» serem «isentos do porte da es­trela». O argumento do cônsul era que tal medida discriminatória «implicaria fatalmente uma desi­gualdade de tratamento a que não estão submetidos os cidadãos franceses residentes em Portugal, seja qual for o respectivo credo»[3]
O MNE português também recebeu, entre Setembro de 1941 e final de 1942, diversas notícias sobre as perseguições aos judeus na Roménia, transmitidas pelo representante diplomático em Bucareste, Quartim, embora a grande maioria das informações sobre massacres tivessem chegado da Polónia ocupada. Em 22 Maio de 1942, deu entrada no MNE português um documento do responsável pelos Negócios Estrangeiros do governo polaco no exílio em Londres, a denunciar assassinatos em massa, onde eram referidos os campos de concentração de Oswiecim (Auschwitz), Sachsenhausen/Oranienburg, Mauthausen e Dachau. De novo, em 18 Junho, a Legação do governo polaco no exílio em Lisboa fez chegar ao MNE a notícia de que a Alemanha tinha o objectivo de «exterminar todos os judeus sem se preocupar com o resultado da guerra».
Em Setembro de 1942, a Reichssicherheitshauptamt (RSHA, organismo central da Segurança do Reich, que controlava todas as polícias da Alemanha nazi) questionaria o consulado alemão em Lisboa, acerca da possibilidade de as autoridades portuguesas impedirem a «emigração a partir de Portugal» dos judeus, «no âmbito da solução final da questão judaica na Europa». Em resposta, o próprio cônsul alemão em Lisboa, Hollberg, informou a RSHA de que, actuando «segundo critérios de humanidade», o Estado português não iria «impedir de forma nenhuma, judeus, de qualquer nacionalidade, de emigrar para estados além-mar», pelo que era inútil «tentar realizar a repatriação dos judeus existentes em Portugal através das ligações existentes entre as polícias» dos dois países[4].
Ainda nesse ano de 1942, Salazar recebeu um relatório, enviado pela Igreja portuguesa, onde se denunciava a ocorrência de muitas mortes nos campos nazis, nomeadamente no de Oswiecim (Auschwitz) na Polónia, embora não se especificasse que se tratava de judeus[5]. Mais importante foi uma carta, recebida por Salazar, dos Serviços de Censura, sobre uma notícia que o jornal católico A Voz pretendia publicar no primeiro dia de 1942, onde se dava conta «da exterminação das crianças» na desventurada Polónia. A Censura considerara passagens da notícia de tal forma «fantasiosas, ou pelo menos exageradas» que as havido “cortado”, impedindo a sua publicação[6].
De qualquer forma, como se viu, o governo português foi informado, através da já referida declaração conjunta dos Aliados, de 17 de Dezembro de 1942, do «propósito» alemão de «exterminar o povo judeu da Europa». O representante do governo polaco no exílio, em Lisboa, continuou a fazer chegar, em Janeiro de 1943 ao MNE português diversos documentos sobre o extermínio de judeus nos territórios ocupados pelos alemães[7]. No dia 25 desse mês, Edward Raczynski, em nome do governo polaco, descreveu os «meios empregues pelas autoridades de ocupação alemãs para a exterminação em massa de Judeus nos territórios da Polónia». O mesmo documento polaco informava que os alemães tinham estabelecido na Polónia 24 campos de concentração, entre os quais se contavam os de Treblinka e Oswiecim (Auscwitz), dando conta das inúmeras mortes ocorridas neste último.
            Mesmo assim, quando a Legação alemã em Lisboa deu conta ao governo português, em 4 de Fevereiro de 1943, que, por «motivos de cortesia», este último teria a oportunidade de retirar dos «territórios sob domínio alemão os judeus de nacionalidade portuguesa», Portugal atrasou o referido repatriamento. Relativamente aos judeus de ascendência portuguesa, a residir na França ocupada, após muitas vicissitudes, 137 judeus sefarditas de ascendência portuguesa ali residentes acabariam por chegar a Portugal, entre Setembro e Novembro de 1943.
A Legação alemã em Lisboa voltou a informar Salazar, em Dezembro, que, «por motivos de ordem policial», era «necessária a deportação imediata de todos os judeus na Itália e Grécia», perguntando ao governo português, se desejava o envio imediato dos mesmos para Portugal[8]. Face à demora da resposta portuguesa, em 5 de Maio de 1944, o ministério dos Estrangeiros alemão enviou à Legação portuguesa em Berlim, uma lista com os nomes de 19 judeus portugueses encarcerados em Atenas, que haviam sido transferidos, com 155 judeus espanhóis e dezenas de outros de diferentes países europeus, para o campo de concentração de Bergen-Belsen[9]. Os 19 judeus chegariam a Portugal, em Julho de 1944[10], mas, a 28 desse mês, a Legação de Portugal em Berlim enviou a Salazar mais uma lista de 13 judeus, oriundos da Grécia (nascidos em Salónica e Kavalla), cujo destino se desconhece.
Diferente foi a sorte dos judeus portugueses na Holanda. Para escaparem aos nazis, cerca de 4.300 judeus sefarditas portugueses, aí residentes, tentaram negar a sua pertença ao povo judeu, pedindo a isenção da aplicação das leis anti-semitas alemãs[11]. Em Agosto de 1942, o comissário do Reich para os territórios Holandeses Ocupados informou «que os “marranos” devem ser vistos como judeus». O caso dos judeus holandeses que se diziam de ascendência portuguesa, que solicitavam a repatriação para Portugal terminaria da pior maneira, dado QUE, dos 4.000 membros da comunidade israelita portuguesa, só se salvariam 500[12].
O caso da Hungria foi também diferente dos anteriores. A Legação portuguesa em Baudapeste, a cargo do ministro Sampaio Garrido e depois do encarregado de Negócios Teixeira Branquinho, concedeu, tais como as outras representações diplomáticas de países neutrais e do Vaticano, «passaportes provisórios» portugueses aos judeus húngaros, «que iniludivelmente provassem ter tido nos últimos anos quaisquer espécie de relações morais, intelectuais ou comerciais com Portugal ou com o Brasil»[13]. Todos os «suplicantes» tiveram de assinar um documento, «comprometendo-se a nunca invocar o pas­saporte» para solicitar a nacionalidade portuguesa[14]. Seja como for, aponta-se para 1.000 o número de pessoas protegidas na Hungria, pelos diplomatas portugueses, das quais 700 ou 800 receberam passaportes provisórios[15].



[1] Yehuda Bauer, Repenser l´Holocauste, postface de Annette Wieviorka, Paris, Éds. Autrement/Frontières, 2002, pp. 219-221
[2] AHD-MNE, GSG 6, pasta 3, 6/12/1941. Relatório da missão de oficiais do CEM à Alemanha

[3] Manuela Franco, «Os Judeus em Portugal», Dicionário de História de Portugal, dir. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Porto, Ed. Figueirinhas, volume 8, 2002, pp. 314-324

[5] AOS/CO/NE 2 pasta 46 «Situação religiosa na Alemanha (1942)»
[6] AOS/CO/NE 2 pasta 48. «Notícia sobre a exterminação de crianças judaicas (1942)»
[7] AHD-MNE, 2.º piso, armário 49, maço 76; 3.º piso A69 M163 a e b, 3.º piso, A 48, M 22-23


[8] AHD-MNE. Legação da Alemanha em Lisboa-Aide mémoire, Dezembro de 1943
[9] Judeus em Portugal. O Testemunho de 50 Homens e Mulheres, dir. José Freire Antunes, Versailles, Edeline, 2002, pp.107-111
[10] Nair Alexandra, «Judeus ibéricos no Levante: Salónica», Estrelas da Memória, dir. editorial e coordenação de Esther Mucznik, autores Jean Pierre Guéno e Jérôme Penard, Paris, Les Arènes, 2002 e Lisboa, Global Notícias Publicações, 2005, pp. 218-227.
[11] António Louçã, Conspiradores e Traficantes. Portugal no Tráfico de armas e Divisas nos Anos do Nazismo. 1933, 1945, Lisboa, Oficina do Livro, 2005, pp. 206-207.
[12] Haim Avni, p. 212, cit. por António Louçã, Conspiradores e Traficantes…, pp. 199, 203-206
[13] Doc. 15 – Informação/Resumo de Teixeira Branquinho, de 20 de Abril 1945, Vidas Poupadas. A acção de três diplomatas portugueses na II Guerra Mundial, dir. Manuela Franco, coord. Manuela Franco e Isabel Fevereiro, catálogo da Exposição Documental, Ministério dos Negócios, Setembro 2000, pp.76-78.
[14] Manuela Franco, «Os Judeus em Portugal», Dicionário de História de Portugal, vol. 8, pp. 314-324; Doc. 15, Informação resumo de Teixeira Branquinho, de Abril de 1945, Vidas Poupadas…, pp. 124-125
[15] João Mendes e Clara Viana, Público, Revista 27/3/1994, cit. em Judeus em Portugal, p. 465.