John Locke: o direito de resistir à tirania
A
citação de Thomas Jefferson (Declaração de
Independência dos EUA, 1776), feita por
José Gomes
André, no blogue «Delito de Opinião»
(08.09.12), levou-me a reler parte dos Dois
Tratados sobre o Governo (1689), de John Locke (1632-1704),
filósofo que os actuais neo-liberais tanto gostam de citar (está em inglês,
porque não encontrei uma boa tradução portuguesa).
«Whenever the
power that is put in any hands for the government of the people, and the protection
of our properties, is applied to other ends, and made use of to impoverish,
harass or subdue them to the arbitrary and irregular commands of those that
have it; there it presently becomes tyranny, whether those that thus use it are
one or many». (Second Treatise, Chapter 18).
«But if a long train of abuses, prevarications and artifices, all tending the same way, make the design visible to the people, and they cannot but feel, what they lie under, and whither they are going, 'tis not to be wondered, that they should then rouse themselves, and endeavour to put the rule into such hands, which may secure to them the ends for which government was at first enacted». (Second Treatise, Chapter 19).
«But if a long train of abuses, prevarications and artifices, all tending the same way, make the design visible to the people, and they cannot but feel, what they lie under, and whither they are going, 'tis not to be wondered, that they should then rouse themselves, and endeavour to put the rule into such hands, which may secure to them the ends for which government was at first enacted». (Second Treatise, Chapter 19).
Para Locke, o governo civil legítimo é instituído pelo consentimento
explícito dos governados, que decidem transferir para ele, por acordo, o seu
direito de executar a lei de natureza e de julgar seu próprio caso. Estes são
os poderes que são dados ao governo central e que legitimam a função do sistema
da justiça dos governos. Todavia, a transferência dos direitos naturais para o
Estado, representada pelo pacto originário, é parcial. Ao ingressar no estado
civil, os indivíduos renunciam a um único direito: o de fazer justiça pelas
suas próprias mãos. Conservam todos os outros, principalmente o direito à
propriedade, que já nasceria perfeita no estado de natureza, fruto de uma acção
natural - o trabalho -, que não dependeria do reconhecimento alheio.
Dado que, no estabelecimento do
governo civil, o consentimento universal é necessário para dar forma a uma
comunidade política e que uma vez concedido não pode ser retirado, alguns fazem
uma leitura da comunidade política lockeana enquanto uma entidade estável. No
entanto, outros observam que existe, em Locke, o direito a resistir ao governo
ilegítimo. Nas circunstâncias de um governo ilegítimo, que viole a vida, a
liberdade e a propriedade do povo, a rebelião é legítima. Para Locke, todo o poder político legítimo deriva somente do consentimento
dos governados que confiam as suas «vidas, liberdades, e posses» à comunidade
como um todo, expressa esta maioritariamente pelo seu corpo legislativo. Mas a
comunidade política como um todo pode ser dissolvida (e uma nova pode ser formada)
sempre que haja uma mudança fundamental nos membros da legislatura ou uma
violação das leis. O soberano que, contrariando o poder supremo por ele
representado, desrespeita a lei, perde o direito à obediência, «pois que não
devem os membros [do corpo político] obediência senão à vontade pública da
sociedade».
Locke admite assim o direito de
insurreição em determinadas circunstâncias: «Se
um governo subverte os fins para os quais foi criado e se ofende a lei natural,
então pode ser deposto». Na visão de Locke, a possibilidade de revolução é uma das características
de qualquer sociedade civil bem formada. A causa mais provável da revolução é o
abuso do poder pelo próprio governo: quando a sociedade interfere erradamente
nos interesses de propriedade dos cidadãos, estes têm de se proteger
retirando-lhe o consentimento (Segundo Tratado, § 222). Ocorre uma usurpação quando alguém se apodera pela
força daquilo a que outro tem direito ou prejudica o bem público. Quando são cometidos grandes
erros na governação de uma comunidade, só a rebelião mantém uma promessa de
restauração dos direitos fundamentais (Segundo Tratado, § 225).
Quem é o juiz disso quando tal
ocorre? Só o povo pode decidir, segundo Locke, pois que a existência mesmo da
ordem civil depende do seu consentimento (Segundo Tratado, § 240). Locke conclui que, «se em alguns casos é permitido resistir, nem toda resistência aos príncipes é rebelião»,
sendo por isso muito importante saber quando é lícito desobedecer. O direito de
resistência não constitui perigo para os governantes justos e numa sociedade
civil política justa, não é possível que um ou mais homens perturbem um governo
se o interesse colectivo não estiver em risco. Só quando os malefícios da
tirania atingem a maioria da sociedade, então existe o direito à resistência
contra a força ilegal. São os tiranos que são os verdadeiros rebeldes e, dessa
forma, os malefícios que resultarem da resistência aos verdadeiros rebeldes não
podem ser creditados aos defensores da própria liberdade. Se o fim do governo é
o bem da humanidade, não pode haver tolerância à tirania.