5.10.12

Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu



Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu

Ainda emocionada com a histórica manifestação de 15 de Setembro, com aquele dia maravilhoso e «límpido» em que centenas de milhares de portugueses se reencontraram uns com os outros, em que centenas de milhares em todo país saíram da solidão, tristeza e depressão, para, em conjunto, expressarem a palavra livre, sinto que também a quero expressar. Ainda comovida com a imagem de centenas de milhares de portugueses, que saíram do seu mundo individual(ista), para expressarem colectivamente a solidariedade entre gerações, entre trabalhadores da Administração Pública e do sector privado, entre empregadas e desempregados e participarem, sem divisões, num protesto comum, onde se encontravam as mais variadas opções políticas, sociais, económicas e ideológicas, tenho de novo encontrado – como muito – a palavra política. No prazo de uma semana, de dia 7 a 15 de Setembro, Portugal de certa forma mudou e, por isso, gostava de realçar alguns aspectos, entre muitos que o acontecimento histórico e a situação política actual sugerem, através de um mini-glossário que envolve, quanto a mim, palavras, algumas das quais estão ligadas:

- Alternativa(s)
- Europa
- Contrato social
- Contra-revolução ou revolução (da direita radical)

- Alternativa(s) e Europa.
Tem sido o papão do pensamento único que está no poder o facto propagandeado de que não haveria alternativas. Ora a política e a democracia são precisamente os terrenos da discussão de alternativas. Esta pseudo-ausência de alternativas acompanha-se de um total silêncio relativamente à Europa. Por isso, acho necessário que pessoas dos mais variados sectores da sociedade civil, credíveis, intervenham. Por exemplo Maria João Rodrigues, hoje, no Público, alerta: «Não acreditemos na ameaça de que se Portugal não introduzir a TSU no próximo orçamento, perderá a credibilidade internacional alcançada e o acesso à próxima fatia de financiamento externo. Há outras soluções! E no fim faz o balanço: «O que nos falta? Não o povo, que tem sido notável de bom senso e sentido de dignidade» – e digo eu, a dignidade ontem saiu à rua -. «Apenas um governo que saiba estar na Europa como parceiro responsável em vez de aluno acrítico e bem comportado». Eu diria que, para já, a alternativa é lutar contra as leis iníquas anunciadas em 7 de Setembro – foi há tão pouco tempo e tanta água já correu sob as pontes....

- Contrato social.
Este contrato social foi quebrado, porque o governo atingiu a propriedade – curioso como um governo de Direita que é visto como neo-liberal é tão estatal, para tirar aos pobres e dar aos ricos, e agride assim a propriedade individual e – que é intocável pois provém do trabalho e, portanto atingiu o que os seres humanos têm de mais precioso - a vida, a justiça e a(s) liberdade(s). Por isso, ontem a sociedade civil e política, através da manifestação de ontem está à beira de rasgar esse contrato com quem detém actualmente o poder

- Contra-revolução ou revolução da direita radical?
Ultimamente, penso que se está finalmente a perceber qual o verdadeiro plano e a real agenda política e ideológica do governo actual, do seu primeiro-ministro e ministro das Finanças, escondidos sob o guarda-chuva da Troika. Como o governo e os seus ideólogos não o expressam – e compreende-se porquê – tem sido difícil descortinar esse plano, muitas vezes escondido sob a capa da Troika, por um lado, ou sob a capa da irresponsabilidade, do erro político e de uma incapacidade de passar a mensagem, por outro lado. Se penso que todas essas características existem nos muitos novatos elementos educados na Academia e na juventude partidária que estão hoje no governo, com os quais se misturam ideólogos distantemente vindos da extrema-esquerda e mais recentemente do neo-liberalismo e do conservadorismo, também considero que já há hoje muitos indícios de que há um plano político em curso, mais vasto e global. Aproveitando, muitos deles após terem provocado a crise financeira, económica, social e política actual, trata-se de uma linha ideológica e económica que se baseia no chamado Consenso de Washington  e pretende fazer uma revolução ou contra-revolução mundial. Curiosamente, esta direita radical actual de novo tipo difere da tradicional direita radical: por exemplo, não recorre à repressão directa, não defende no imediato valores conservadores – por isso, não se preocupou em remover a legislação sobre a despenalização do IVG e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é isso que lhe interessa (para já?): curiosamente seguindo o marxismo, preocupam-se primeiro por mudar a infra-estrutura económica, e só depois se vão preocupar – sem deixarem de ter esse objectivo – com a mudança das mentalidades e a mudança do regime. A primeira etapa tem por objectivo embaratecer ao mínimo os salários, aprofundar as desigualdades sociais já existentes e proceder a uma redistribuição de riqueza, retirando-a dos trabalhadores e do Estado social, e colocando-o nas mega-empresas. Pelo caminho, o objectivo de fabricar um «homem novo» e mudar a «mentalidade» - regenerar? – dos portugueses já está a ser iniciado, tentando amedrontar e instilar uma passividade política e social.

O contributo da História
Penso de facto que, tal como Daniel Oliveira e Pedro Marques Lopes aventaram, poderá estar em curso uma (contra-)revolução da direita radical com o objectivo de criar revolucionariamente um «Homem Novo» português. Claro que este projecto é uma utopia e pouco importa se esse «homem novo» almejado seja na realidade aquele homem muito «velho» – de espinha dobrada, com chapéu na mão a pedir pão, silenciado e silencioso -, a obedecer porque deve ao «homem novo», que manda porque pode (Salazar: «Manda em pode, obedece quem deve!). 
Tentando não cair em comparações simplistas e abusivas ou em anacronismo vou-me socorrer da História do Século XX. Ora, como todos sabem, nos anos 20 e 30 desse século houve uma tremenda crise financeira (1929), que se transformou em crise económica, social e política. Dessa chamada «crise política do demo-liberalismo» surgiram respostas diferentes no espectro político europeu – por um lado, as soluções social-democrata/socialista ou marxista-leninista da ditadura do proletariado e, por outro lado, a solução do recurso a ditaduras de extrema-direita de terceira via. Apesar das diferenças existentes entre elas - por exemplo, entre o nacional-socialismo alemão, o fascismo italiano e o autoritarismo salazarista - todas elas foram ditaduras de partido único que proibiram a greve e os sindicatos livres, os partidos políticos, recorreram à censura e à repressão violenta para eliminar os adversários – à cabeça dos quais se contavam os comunistas - e, com o objectivo de eliminarem a tão odiada luta de classes, aspiravam a um corporativismo de patrões e assalariados que colaborariam entre si a favor do «Bem comum». No caso do Portugal salazarista, a formação da ditadura, ou do chamado Estado «Novo», iniciou-se, como diziam os ideólogos do regime, pela «revolução legal» - promulgação de uma nova Constituição (1933) c criação de novas instituições de repressão, censura e propaganda, bem como lançamento de uma legislação corporativa. Depois da «revolução legal», como diziam os ideólogos salazaristas, faltava criar a «revolução mental» - aquela que modificasse a mentalidade dos portugueses, criando «homens novos e «mulheres novas» adaptados aos propósitos do novo regime. E foi então que entrou em actuação, em 1936, o ministro da Educação Nacional, que «regenerou» a educação «nacional» e criou a Mocidade Portuguesa

Ora, apesar de ter em conta que passaram cem anos, neste início dos anos dez do século XXI, considero que há um propósito que se assemelha a este em Portugal e que poderá estar ligado a uma vontade de criar um novo regime, em que somente as etapas se inverteram. Penso que, aproveitando, como nos anos vinte, a crise, o actual governo optou por modificar economicamente as condições de vida dos portugueses, empobrecendo-os e começando a criar uma nova mentalidade, para depois, com a cumplicidade silenciosa e obediente, proceder então à revolução «legal», eliminando a incomodativa Constituição de 1976, e erguendo um novo regime. Em democracia, este propósito de empobrecimento generalizado e destruição da classe média – sustentáculo da mesma democracia – não é possível. Por isso, a prazo, esse regime política e as suas instituições teriam a prazo de ser eliminados.
 Para isso, em democracia – com a que apesar de tudo existe, em termos de instituições, e de opinião pública não amordaçada mas conveniente e assinaladamente controlada – há que ter cumplicidades fortes, uma das quais é a desmobilização cívica e política dos cidadãos. Por isso, a estratégia tem sido e é, de forma simplista e populista:
- arranjar de forma expedita culpados – os governos desde 25 de Abril, os portugueses por terem gasto mais do que tinham, etc… - e surgir como a única alternativa, qual vanguarda impoluta que vai colocar tudo nos eixos, cortando no património, liberdade de pensar e na própria dignidade dos portugueses
- mostrar que o actual estado das coisas é de emergência nacional, não há dinheiro, os credores e a Europa estão fartos de nos aturar como gastadores preguiçosos, e por isso temos de passar a trabalhar mais horas e de forma mais barata, para que as empresas investam, exportem e milagrosamente haja mais trabalho. Azar, e passageiro, acreditam, que haja diminuição do consumo, fecho de empresas, desemprego e maior empobrecimento. E não venham o chefe do governo passos coelho e os seus ministros que dizerem que estão muito surpreendidos com a quebra do consumo e o aumento exponencial do desemprego. Claro que sabiam e que fizerem para que isso acontecesse. Está nos livros que para embaratecer a força do trabalho convém ter uma bolsa razoável de desempregados e empregados no fio da navalha, empobrecidos e aterrados por também caírem no desemprego.
- Com uma opinião pública aterrada, culpabilizada e responsabilizada por ter vivido acima das suas posses, silenciada, evitar-se-ia para já os meios repressivos e a ditadura aberta. Por isso, como diz o Arquitecto Siza Vieira, numa frase aparentemente paradoxal para quem vive em democracia, ter a sensação por vezes que se está a viver em ditadura.
Vou contar um episódio que me alertou já há algum tempo para o que se estava a passar. Por acaso, ouvi um jovem governante português actual dizer entre estrangeiros: o que é preciso e vamos fazê-lo é mudar a mentalidade dos portugueses.



Ora, eu penso que o plano deste governo é um plano revolucionário (no sentido filosófico de revolução, religare, aliás etimologicamente vem também a palavra religião da Direita radical destinado a (re)fazer de Portugal o que ele já foi - um país de salários miseráveis, de gente pobre, temendo o desemprego e a fome e disposto, reverente, a trabalhar por qualquer salário.
Isso foi feito, é verdade, num período completamente diferente do que se vive hoje, nos anos 20 e 30 do século XX e sei bem que há perigo de se cair em anacronismo histórico, no qual não quero cair. À época o regime escolhido foi a ditadura e o certo é que nos anos trinta esse tipo de regime, contra o que se chamava a decadência e falência do regime democrático liberal do pós-Grande Guerra (1914/18). Para cumprir esse objectivo, havia que proibir a greve e acabar com os sindicatos livres, os partidos, através de um aparelho de repressão política e um aparelho de Censura. Em Portugal, como na Itália fascista e noutros países, a ideologia era a corporativa, que, ao mesmo tempo que combatia a «plutocracia» liberal, combatia também a luta de classes e o comunismo, pretendendo substituir essas duas alternativas, por uma terceira, em que corporativamente patrões e trabalhadores se juntassem à mesma mesa em prol do que se chamava «bem comum». Não ouviram ontem Vítor Gaspar referir que uma empresa era um local de colaboração?
Uma a categoria que se prende com a caracterização dos regimes antiliberais e antidemocráticos que assolaram a Europa no período entre guerras é a do mito da criação do «homem novo», que faz parte do conceito de «fascismo» mas também do dos vários «totalitarismoa», na medida em que implica uma invasão e interferência «totais» da esfera política na privada para cumprir um pretenso objectivo de «engenharia social».
Segundo a definição ideal-típica de fascismo elaborada pelo historiador Roger Griffin, há mais de vinte anos, a ideologia fascista seria um «ultranacionalismo populista palingenético», cujo mínimo denominador comum seria precisamente o mito da criação do «homem novo». Diga-se, porém, que, segundo este autor, a realidade esteve longe do ideal-tipo e que, no caso concreto de Portugal, o regime salazarista teria sido apenas «parafascista» . Prometo voltar a esse tema do homem (velho) novo

P.S. Como estive na manifestação, não vi as reportagens e várias pessoas me disseram que a RTP e os seus trabalhadores foram os que melhor cobriram a jornada, independentemente de os outros canais também terem dado o devido destaque a cobertura ao evento, mostrando como a sociedade civil e política está em todo o lado.