ana vidigal, da serie "beija-florzinha" - Brasil 2012
A História
nunca se repete, no
sentido de uma determinada situação se apresentar exactamente da mesma forma em
épocas diferentes, no presente ou no futuro como noutros tempos passados. Os
acontecimentos estão sujeitos a várias determinações de contexto, em conjunções
diversas de factores diferentes, além de a cronologia, com os seus contextos
específicos, impedir a
repetição. Cada momento ou
acontecimento na História é singular e a
História enquanto disciplina estuda precisamente as singularidades nos seus
contextos específicos. Dito
isto, é importante o conhecimento da História. A célebre frase que diz que um
povo sem história e sem memória está condenado repetir os erros do passado (um
povo que não se lembra do passado está condenado a revivê-lo»[1],
ou a «repeti-lo», como diz Tzetan Todorov)[2],
não contradiz o que acima foi dito. Da mesma forma, aliás, um povo ou um
indivíduo que não se esquece de nada, está destinado fatalmente à repetição
incessante.
Memória e História
Ao
estabelecer uma ligação necessária entre a Memória e a História, Paul Ricoeur
considera que o estudo histórico põe em cena o trabalho da memória. Esta
representa, no entanto, um processo contraditório, pois tanto selecciona e
transforma experiências anteriores para se ajustarem a novos usos, como pratica
o esquecimento, a única forma de dar lugar ao presente. Se o esquecimento e a
míngua de memória («pas-assez»,
segundo a terminologia de Paul Ricoeur), frequente nos regimes totalitários e
autoritários, é um problema, o excesso de memória, ou o excesso de comemoração
(«trop-plein») relativamente a um
evento, também pode ser um problema, ao lembrar a repetição compulsiva,
referida por Freud, que conduz a substituir a lembrança através da qual o
presente se reconciliaria com o passado, pela passagem ao acto.
A
análise histórica refaz em laboratório essas operações ambíguas da memória[3]
e o historiador pratica não um «dever de memória», mas como prefere a este Ricoeur,
um duplo «trabalho de memória», à maneira do trabalho de luto, e de
esquecimento. História e memória só podem ser apreendidas com o esquecimento,
que reveste duas formas: a negativa, do esquecimento irreversível, que
corresponde à perda de documentos, e o esquecimento positivo, que é a própria
condição da memória e que, segundo Nietzsche, é condição da vida: «É possível viver quase sem lembranças e
viver feliz, como demonstra o animal, mas é impossível viver sem esquecer».
«Só quando tivermos aprendido a amar o
esquecimento aprenderemos a arte de viver» (Oscar Wilde). História e a memória só podem ser apreendidas com o
esquecimento.
A
História permite, ao mesmo tempo, que alguém não se lembre de tudo em
permanência, mas é «contra o esquecimento destruidor», através de um processo
de esquecimento de «reserva», que «tem a capacidade de preservar». Este tipo de
esquecimento reveste um significado positivo, na medida em que «o que foi»
prevalece sobre o que «já não é». A memória é o reconhecimento» do traço vivido
de um «real já passado» e lembrar-se é reconhecer uma anterioridade. Mas o
reconhecimento entrecruza-se com o conhecimento. A terceira fase da operação
historiográfica, a da escrita, da representação do passado necessita de traços
que façam emergir a história na memória. O corte entre memória e história toma
a forma de «escrita».
Relativamente
à memória, segundo Ricoeur, a escrita histórica tem a ambiguidade do «pharmakon», que é ao mesmo tempo remédio
e veneno: remédio porque se apresenta como um pró-memória destinado a proteger
do esquecimento, mas veneno, na medida em que se torna um factor de esquecimento
porque os que o tomam, cessam de exercer a sua memória, substituindo o trabalho
desta, pela escrita. A História estabelece uma distância com o seu objecto de
referência, mas, na medida em que é mais distante, mais objectivante, mais
impessoal na sua relação com o passado, ela pode ter um papel de equidade e de
verdade, para temperar a exclusividade e a fidelidade das memórias
particulares. Pode contribuir, segundo Ricoeur, para transformar a memória
infeliz em memória feliz, pacificada, em justa memória[4].
Lembre-se
um mito grego acerca da relação entre a História, cuja patrona é a musa Clio, e
a Memória, cuja deusa é Mnemosyne, mãe de Clio. O objectivo das musas é fazer
com que as pessoas esqueçam as suas preocupações e os seus traumas, que lhes
são incessantemente relembrados por Mnemozyne. Ora, na mitologia, um dos
objectivos da História é precisamente tratar a Memória e curar as experiências
traumáticas que esta transporta[5].
O «trabalho da História»
Enquanto conhecimento, a História é uma tomada de distância que
permite ao investigador libertar-se do passado e ter em conta as mudanças
ocorridas nas sociedades. Enquanto
a memória se apoia sobre a experiência vivida num passado que deixou marcas nos
actores, se coloca no evento e faz-se contemporânea daquele que a tenta
transmitir, enquanto a História tenta apreender o evento, distanciando-se e
extraindo dele uma substância e um sentido. A História é uma tentativa de
conhecimento e de análise, reconstrução, compreensão e de narração do passado,
perspectivado através do presente, do qual o investigador parte sempre. Ora, no
caso dos historiadores do passado recente, os perigos da interpretação do
passado à luz do presente são talvez maiores do que aqueles com que se
confrontam os historiadores do passado mais remoto. Por um lado, porque as
fronteiras entre presente e passado são mais ténues, gerando o perigo de
comparações abusivas e, por outro lado, porque o aumento da curiosidade pela
história recente tem, por vezes, intuitos ideológicos e valorativos.
O
trabalho de história é um duplo trabalho de recordação e de luto em que, ao dar
uma «sepultura» aos mortos e à morte uma materialidade, cria simultaneamente a
categoria do «ser-em-dívida», que assegura a ligação entre o futuro e o passado
e representa a relação entre as gerações. Para
Ricoeur, é na medida em que os homens do passado «estiveram lá» com os seus
projectos, os seus medos e esperanças, deixando a sua marca (impressão) no
mundo onde nascemos, que eles exercem ainda uma influência sobre a nossa existência
actual. Eles deixaram-nos valores e significados culturais, uma pré-compreensão
do mundo e do ser humano sedimentado e transmitido através das gerações. Por
isso, mantemos uma «dívida» relativamente a eles, mesmo quando nos esforçamos a
«subtrair-nos à sua influência».
É porque a história escreve as nossas dívidas para com os mortos que ela obriga
a ter em conta as promessas não cumpridas no passado. Assim, como o
reconhecimento exige o conhecimento, a dívida face ao passado é a condição de
uma relação actuante com o futuro. Dessa
forma, a representação e a escrita histórica não se limitam à análise
distanciada do passado, mas contribuem também para a história em curso e «a
história por fazer».
O
passado tem um estatuto dual porque mesmo quando as coisas passadas já não
existem - já não são -, elas nunca deixaram de existir – foram-no. O «não…mais»
do passado não pode obscurecer o objectivo historiográfico que olha para os
vivos que eles eram, antes de se tornarem os ausentes da história. Através da
representação historiográfica, os homens do passado «olham para nós». A
representação histórica «toma o lugar» do passado e revela, por um lado, que os
mortos perderam para sempre a capacidade de falar, mas que a sua causa é
defendida pelo historiador, enquanto «representante» deles, diante do tribunal
dos leitores, isto é no terreno da discussão pública actual. Dessa forma, o seu
trabalho não se limita à análise distanciada do passado, mas contribui também
para a história em curso, «a história por fazer», ao possibilitar indirectamente
aos seus contemporâneos entrar em contacto com os homens do passado. A dívida face
ao passado é a dívida das gerações presentes, fonte de ética da
responsabilidade[6].
Singularidade e comparação
A
História estuda as singularidades nos seus contextos específicos. Uma das consequências imediatas na
clivagem entre memória literal e memória exemplar (ou, entre memória e justiça)
é a impossibilidade de proclamar em simultâneo que um certo evento é absolutamente
único e que ele deve servir-nos de lição para interpretar muitas outras
situações. Se o evento é único, ele pode ser guardado na memória e agir em
função dessa lembrança, mas não pode ser utilizado como chave em nenhuma outra
ocasião. Reciprocamente, retirar de um evento passado uma lição para o presente
supõe um reconhecimento de traços comuns entre ambos. Proust dizia que não se
pode tirar nenhuma lição se se pensa sempre encontrar-se na presença de uma
experiência que não tem precedentes no passado»[7].
O
historiador Henry Rousso lembrou que a comparação tem um valor heurístico, pois
não é mais que um ponto de apoio para melhor relevar as singularidades próprias
a cada sistema. Por exemplo, apesar da singularidade do Holocausto, é útil
compará-lo com outras situações essencialmente diferentes, pois que a
comparação serve mais para «desbanalizar uma situação» do que banalizar uma
realidade extrema e pode constituir o princípio de uma construção de um
discurso alternativo da memória à qual as outras vítimas da história se poderão
agarrar. Sem minimizar nem exagerar Auschwitz, a memória desse campo de
extermínio pode, apesar da sua singularidade, ser tomada como ponto de vista
indissociavelmente cognitivo e ético sobre a História universal[8].
Escolha-se um exemplo, para se
perceber de que forma a História pode funcionar como um processo preventivo,
sem, porém, ter pretensões de profetizar ou «anular o destino»:
Há uma
tendência hoje para comparar a crise financeira, económica, social e política
actual com a crise de 1929 que provocou nos anos trinta do século XX diversas situações singulares, entre as quais se contou a
ascensão na Europa de ditaduras de carácter autoritário ou totalitário, com a
situação actual dos anos dez do século XXI. Por outro lado, após o triunfo do
Estado-providência, no pós-II Guerra Mundial, assiste-se neste momento, por
várias razões, entre as quais se conta a demografia, a uma crise desse mesmo
Estado social que pode fazer tender para soluções de tipo assistencial que se
pensava desaparecidas, no mundo ocidental. neste momento em que se fala,
a nível governamental, em «refundação» do Estado social e em que a demografia é
claramente desvantajosa, talvez seja interessante revisitar a forma como a
problemática social foi gerida durante a Ditadura de Salazar, até ao 25 de
Abril de 1974.
A era da
segurança social, universal, baseada nos direitos dos cidadãos, só nasceu em
Portugal depois do 25 de Abril de 1974, tendo o processo de construção do
Estado do Bem Estar português sido muito mais tardio e diferente do que o
moldou, noutros países europeus, o chamado «Estado Providência». E hoje, quase
40 anos depois, estaremos a assistir, em Portugal, a um daqueles recuos
históricos, que por vezes surgem, embora sempre assumindo tonalidades
diferentes? Tonalidades tão diferentes que diferenciam seguramente as duas
situações em comparação na sua essência, impossibilitando saber-se ou
profetizar-se o que virá a acontecer no futuro, devido ao processo estar
aberto. No entanto, conhecer o que aconteceu no processo fechado do passado,
através da revelação das suas matrizes, pode, mais do que indicar caminhos,
revelar aqueles pelos quais não se deseja andar.
[1]
Henry Rousso, «Pour une histoire de la mémoire collective,
l´après Vichy, Histoire politique et
sciences sociales, questions au xx siècle, Paris, éditions Complexe, 1991,
pp. 249, 251
[3]
Michel de Certeau. Les chemins de l´histoire, dir. Christian
Delacroix, François Dosse, Patrick Garcia, Michel Trebitschn, ed Complexe,
CNRS/IHTP, 2002, pp. 163-169
[4] Paul Ricoeur, La mémoire, l´Histoire, l´oubli, Paris, Ed. Seuil, 2000, apud.
François Dosse, «Le moment Ricoeur», Vingtième
Siècle, revue d´histoire, n.º 69, janvier-mars 2001, pp. 138, 139, 141,
147, 148, 150 e 152
[5] Antonis Liakos, «History writing as the return of the repressed», Historein, «A review of the past and other stories, European
Ego-histories. Historiography and the Self,
1970-2000», Athens,
volume 3, 2001, pp. 50-51, 56-57
[6] André
Breitling, « l´Ecriture de l´histoire: un acte de sépulture?» Ricoeur, dir Myriam Revault d´Allonnes
et François Azouvi, Paris, Éd. de l`Herne, 2004
[7] Tzetan Todorov, «La mémoire et ses
abus», op. cit., pp. 35, 37, 39, 41 e
44
[8] Henry
Rousso, Vichy, l´évènement, la
mémoire, l´ histoire, Paris,
Gallimard, folio histoire, 2001, pp.25, 176, 181, 184,
187, 207, 219, 223, 224, 322, p. 662, nota 1