18.4.10

Lisboa, capital europeia da espionagem (1)

Portugal, em cuja capital se ouvia então falar todas as línguas europeias, tornou-se, no período da II Guerra Mundial, uma importante placa giratória de informações, mercadorias e pessoas. Sob os olhares atentos dos portugueses e da imprensa, passaram, por Lisboa, embaixadores dos países beligerantes, a caminho da Europa ocupada ou de Londres e dos Estados Unidos da América. Através de uma política sinuosa de exploração das contradições entre os dois campos beligerantes, Salazar conseguiu manter uma neutralidade, declarada em 1 de Setembro de 1939. Neutralidade, aliás possibilitada tanto pelo Eixo como pelos Aliados, que começou por ser «equidistante».


A partir de 1943, após o desembarque no Norte de África e a derrota alemã em Estalinegrade, quando o desejo salazarista de uma «paz sem vencedores nem vencidos» se tornou inexequível, instalou-se no seio do regime o medo de que a vitória aliada acarretasse o fim do Estado Novo. Foi nesse período, num contexto interno de agitação social, que a neutralidade portuguesa passou de a «colaborante» com os aliados anglo-americanos.

Do lado dos britânicos

Um dos campos em que Portugal foi «equidistante» até ao fim da guerra foi o da espionagem dos dois campos beligerantes. Até 1939, a espionagem britânica actuava desligada do Foreign Office, mas, com o início da guerra, a estação secreta inglesa, fechada nos anos vinte, foi reaberta no Consulado da Grã-Bretanha, em Lisboa, sob a direcção de Phillip Johns. Este trabalhava simultaneamente para o Special Operation Executive Committee (SOE) e para o Secret Intelligence Service (SIS) – ou secção V (de contra-espionagem) do MI6. Além destas duas agências secretas, também operavam em Lisboa, a Naval Intelligence Division, a Military Intelligence Service e o MI9.

O MI9 e o SOE em Portugal

Dirigido por Donald Darling, funcionário do mesmo Consulado, o MI9 organizou fugas de prisioneiros e militares aliados, dos países ocupados pelo Eixo, mantendo linhas de entrada e de saída clandestina, através de Gibraltar e de Lisboa, a caminho de Londres. Entre Junho e Agosto de 1941, a PVDE detectou uma rede que introduzia clandestinamente, em Portugal, franceses e polacos em idade militar, ex-combatentes dos exércitos dos países ocupados, foragidos de campos de internamento franceses e opositores políticos alemães, detendo cerca de cinquenta clandestinos. Pertenciam a essa rede o inglês Victor Reynolds, proprietário da Quinta do Carmo, no Alentejo, e diversos portugueses, entre os quais se contava Mário Pinto Levy.

Quanto ao SOE, especializado em acções de propaganda nos países do Eixo e de sabotagem na Europa ocupada, era dirigido, em Portugal, por Jack Grosvenor Beevor, adido militar da Embaixada britânica em Lisboa. A partir de 1941, o SOE organizou, com o apoio de portugueses, um movimento de resistência contra uma eventual invasão alemã de Portugal, através da rede «Shell», assim chamada, por ser dirigida por Cecil Rogerson, vice-cônsul britânico e delegado dessa empresa petrolífera no Porto, bem como constituída por outros empregados nessa firma holandesa. Avisada pela polícia espanhola, que, por seu turno, soubera da existência da rede, através dos serviços secretos alemães, a PVDE desmantelou-a e prendeu, entre Setembro de 1941 e Maio de 1942, cerca de setenta e cinco pessoas.

Entre estas contavam-se William Frederick Cobb, Jinnings, John Smith, Charles William Everett, consultor de navegação, e Geoffrey Murat Tait, director do centro dos serviços de imprensa da Embaixada britânica. No sul de Portugal, actuavam ainda para a rede, Henry Brown, funcionário das minas de S. Domingos, um indivíduo de apelido Booth, Falconner, vice-cônsul em Vila Real de S. António, Henry Palmer, David Show, Mason, Marguerite Windsor, Paul Cardinal e Barley Cruser. Perante o embaraço do embaixador britânico, que privilegiava a manutenção de boas relações com o regime salazarista, a PVDE expulsou discretamente de Portugal a maioria dos ingleses envolvidos.

Entre os portugueses, contou-se José Magalhães e Meneses (conde de Vilalva), pelo qual intercedeu John Balfour, conselheiro da Embaixada inglesa, junto do governo português. Menos sorte tiveram doze outros portugueses implicados na rede «Shell», que foram violentamente interrogados pela PVDE e enviados para o campo de concentração do Tarrafal. Ocupando-se da estrutura logística, da vigilância do tráfego marítimo e aéreo bem como do reconhecimento dos objectivos estratégicos, os portugueses tinham um trabalho de retaguarda e de apoio a uma possível entrada de comandos ingleses, aos quais caberiam as acções directas de sabotagem. A rede «Shell» tentou também montar em Portugal um centro difusor de propaganda para os países ocupados, financiou a revista portuguesa de desporto Stadium, elaborou listas de simpatizantes anglófilos e vigiou os germanófilos portugueses.

A rede britânica de agentes duplos

Após o fim da rede «Shell», a secção V do SIS-MI 6, a cargo da qual estava a contra-espionagem inglesa, reforçou o sistema de detecção de agentes secretos alemães e criou uma rede de espiões duplos. Um dos mais célebres foi o jugoslavo Dusko Popov, na realidade um espião britânico, que, entre 1940 e 1944, foi operacional do «double cross system» (XX Commitee, organismo do MI5, especializado em agentes duplos). Popov terá, nomeadamente, transmitido, aos ingleses, informações sobre o ataque japonês a Pearl Harbour e o projectado rapto do duque de Windsor, em Portugal, pela Gestapo.

Outro dos espiões duplos que também actuou em Portugal, na realidade ao serviço dos ingleses, foi o célebre «Garbo», ou seja, Juan Pujol, natural de Barcelona. «Garbo» contactara os serviços secretos alemães em Madrid, convencendo-os de que, com o pseudónimo de «Arabel», espiaria por sua conta em Lisboa, mas ao mesmo tempo ofereceu-se para trabalhar na realidade para a Intelligence Service britânica. Esta incumbiu-o de transmitir, à Abwehr alemã, informações erradas sobre a localização do desembarque aliado, no continente europeu, a realizar em Junho de 1944, na chamada operação «Fortaleza».

Do lado dos aliados, embora com menor peso, também actuaram em Portugal a BCRA gaullista e os serviços secretos norte-americanos, o Federal Bureau of Investigation (FBI), de Edgar Hoover, e, a partir de 1942, o OSS (Office of Strategic Service). A estrutura informativa desta agência viria a ser utilizada, no final da guerra e no pós-guerra, pela Central Intelligence Agency (CIA), montou, em 1944. Os serviços secretos soviéticos, nomeadamente a Rote Kapelle, também teriam actuado em Portugal, durante a II Guerra Mundial, através de alguns comunistas portugueses e de judeus refugiados em Lisboa.

Do lado da Alemanha

A guerra secreta alemã contou, por seu turno, com várias agências, entre as quais se contou o serviço secreto do Alto Comando Militar Alemão, a Abwehr, dirigido pelo almirante Canaris. Este serviço, sediado na Legação da Alemanha em Lisboa, era chefiado em Portugal pelo major Albrecht von Auenrode, ou «Ludovico von Karshtor». A secção III de contra-espionagem da Abwehr era, por seu turno, dirigida pelo capitão Fritz Kramer, nome que constou de uma lista de alemães suspeitos de espionagem, elaborada pela PVDE em 30 de Abril de 1945, onde ele era apresentado como «chefe da contra-espionagem alemã» em Portugal desde 27 de Novembro de 1940. Outro elemento suspeito incluído nessa mesma lista era Erich Emil Schroeder, Oficial de Ligação da Polícia Alemã (OLPA, Polizei Verbindungsführer), que terá provavelmente sido o elemento da Gestapo-Sicherheitdienst (SD), em Portugal, sucedendo, em 1941, a Walter Schellenberg.

Raptos planeados e efectivados

Este chefe das SS tinha começado por trabalhar na secção de contra-espionagem da Gestapo na Alemanha e nos territórios ocupados, mas depois reorganizou os serviços secretos alemães no estrangeiro, tendo passado nessa qualidade várias vezes por Portugal, em 1940. No verão deste ano, programou os raptos, em Lisboa, dos germanófilos duques de Windsor do ex-nacional-socialista Otto Strasser, antigo dirigente da Deutshe ArbeitsFront (DAF).

Entre Junho e Outubro de 1940, os duques de Windsor permaneceram em casa do banqueiro português Ricardo Espírito Santo, no Estoril, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Von Ribbentrop, tentado utilizar a germanofilia do ex-rei britânico e da sua esposa americana, Wallis Simpson, para os “remover” para a Alemanha ou para um dos países sob seu controlo. Nas suas memórias, Schellenberg afirmou ter sabido que o duque não acataria voluntariamente o plano e ter achado um contra-senso a ordem de o raptar. Esta ordem acabou por não ser levada adiante e, no dia 2 de Agosto de 1940, o duque de Windsor e Wallis Simpson partiram, de Lisboa, no navio «Excalibur», rumo às Bahamas, tal como pretendia Churchill.

Quanto a Otto Strasser, um elemento da ala de «esquerda» do Partido nazi, odiado, tal como o era o seu irmão Gregor Strasser, por Hitler, que os considerava traidores pessoais, Schellenberg foi incumbido de o assassinar, em Portugal, onde se pensava que estava. O agente da Gestapo referiu também nas suas memórias, que se concluíra que Strasser não estava em Portugal e que, por seu conselho a ordem de assassinato fora anulada. Diga-se, porém, que Otto Strasser passou, realmente, por Portugal, no Verão de 1940, bem como outros nazis ou ex-nazis.

Embora essas duas operações não tivessem sido levadas por diante, o mesmo não aconteceu com o opositor anti-nazi alemão Berthold Salomon Jacob, raptado pela Gestapo na baixa lisboeta, no Verão ou Outono de 1941. Jacob já tinha sido raptado na Suíça e levado para a Alemanha, em 1935, mas devido a protestos internacionais, tivera de ser reenviado para a Confederação Helvética. Partira, depois, para Portugal, mas, antes de poder embarcar num navio, foi novamente apanhado, levado à força para o Reich, onde acabaria por morrer em consequência das torturas a que foi sujeito.

Outro caso controverso, também ocorrido em Lisboa foi o rapto e o envio para a Alemanha do oficial alemão da Abwehr, Johann Jebsen, que terá colaborado com uma rede de agentes duplos jugoslavos (certamente, através do seu amigo, Dusko Popov, ou «Triciclo»), desde o Verão de 1943. Em 28 de Março de 1944, Jebsen informou os serviços secretos ingleses, através de Graham Maingot, do SIS, de que a Abwehr tinha começado a suspeitar de «Triciclo», mas que ele próprio tinha travado o processo. Acrescentou que, no dia seguinte, iria receber uma condecoração, na Legação alemã em Lisboa. No entanto, mal entrou no gabinete de Aloys Schreiber, para receber a Cruz de Guerra, foi violentamente espancado e interrogado. Em 1 de Abril de 1944, foi tirado, inconsciente, para um automóvel de matrícula diplomática alemã, que o levou para França, a chamada operação «Dora». Entregue à Gestapo, foi executado no campo de concentração de Sachsenhausen (Oranienburg), em Abril de 1945.

(continua)

(Publicado no nº 6 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
03.Fev.2009

O 18 de Janeiro de 1934 em Coimbra

Segundo Fátima Patriarca, não faz sentido referir o 18 de Janeiro exclusivamente na Marinha Grande, como o fizeram ao longo dos anos, tanto a versão oficial do governo como a versão do PCP, ao destacarem quase unicamente o que se passou nessa vila, os vidreiros e a liderança comunista. Ao considerar que se deve «recolocar» o 18 de Janeiro na sua dimensão histórica exacta enquanto «movimento operário insurreccional, que visava a reconquista das liberdades sindicais, a par do derrube do regime do Estado Novo», esta autora mostra que o movimento operário insurreccional também teve expressão noutras localidades para além da Marinha Grande – em particular, em Lisboa, Coimbra, Leiria, Barreiro, Almada, Martingança, Silves, Sines, Vila Boim (Elvas), Algoz-Tunes-Funcheira.

Por outro lado, o movimento gerou-se e desenvolveu-se com o concurso das duas principais correntes sindicais – a anarquista e a comunista – e com o envolvimento dos sindicalistas socialistas (Federação das Associações Operárias) e da corrente sindical autónoma (Comité das Organizações Sindicais Autónomas). Além disso, demonstrou que a greve geral se deveria desencadear em paralelo e em simultâneo com uma revolta militar e política «reviralhista» que não chegou a sair à rua, devido à repressão policial que se desencadeou logo em Novembro de 1933.

Faz assim sentido referir, entre outros casos, o que aconteceu em Coimbra, onde rebentaram duas bombas na Central Eléctrica dos Serviços Municipalizados, colocadas por indivíduos ligados à CGT anarquista, englobados no Comité Sindicalista Revolucionário (CSR), na noite de 17 para 18 de Janeiro de 1934. Em Coimbra, o plano envolveria a destruição da linha-férrea do Choupal e a demolição de um posto de transformação de energia eléctrica no Lindoso, em Anadia, através de seis bombas, enviadas para Coimbra e escondidas na carvoaria de Manuel dos Santos.

Para a acção de Anadia, Raul Ferreira Galinha deslocou-se a Coimbra para receber duas bombas de Abílio da Encarnação Pereira, manipulador de massas da Fábrica Triunfo de Coimbra e membro da comissão administrativa do Sindicato dos Operários de Massas e Bolachas, que tinha guardado em sua casa o material explosivo. De regresso àquela vila, Raul Galinha entregara as bombas a Augusto Duarte Reis, mas, ao deslocar-se de novo a Coimbra, no dia 17 de Janeiro, foi preso, denunciado por telefone à PSP dessa cidade pelo administrador do Concelho de Anadia. Este informara a polícia da detenção de um motorista de praça, Edmundo, que disse ter conduzido um indivíduo a uma rua próxima do Palácio de Justiça de Coimbra, onde este tinha recebido dois embrulhos de Abílio da Encarnação Pereira.

Entretanto, duas horas antes da prisão de Raul Galinha, Abílio da Encarnação Pereira tinha ido buscar ao estabelecimento de Manuel dos Santos, em Coimbra, as bombas de rastilho destinadas à sabotagem da Central Eléctrica dessa cidade. Pelas 22 horas desse dia, teria havido uma concentração de grevistas ligados ao CSR no Alto de Santa Clara para distribuição de proclamações de greve e, pela meia-noite, alguns destes, entre os quais se contou o barbeiro Arnaldo Simões Januário que anteriormente tinha ido buscar a Lisboa dez bombas de choque, deslocaram-se a casa de João Gomes Jacinto. Este entregou um revolver a Bernardo Casaleiro Pratas, operário dos Serviços Municipalizados de Coimbra que, juntamente com o carpinteiro José Alexandre e o pedreiro José Ventura Paixão, sabotaram os transformadores de corrente da União Eléctrica Portuguesa, colocando duas bombas com cerca de nove quilos, que rebentaram às 4,30 horas da madrugada de dia 18 de Janeiro, deixando Coimbra às escuras.

A PSP de Coimbra acabaria por deter cerca de 80 pessoas, entre as quais se contaram 18 indivíduos do Comité Sindicalista Revolucionário (CSR), na sua maioria ligados à (CGT) anarquista, por participação directa no movimento de 18 de Janeiro de 1934. Entre os presos, contaram-se todos os participantes já referidos, bem como, de Anadia, Pedro Ferrer Catarino, e de Coimbra, o padeiro Manuel Rodrigues da Cunha Maia, presidente do Sindicato dos Manipuladores de Pão de Coimbra, bem como os militantes da CGT Joaquim Roque, Joaquim, Duarte e Júlio Ferreira, José Libório do Nascimento, Manuel dos Santos, José Fernandes Ferreira, e os sapateiros António Ferreira, Armando Nogueira de Figueiredo e José de Almeida. Em 18 de Dezembro de 1933, tinham entretanto sido detidos Cunha Melo, ligado aos anarquistas, bem como José Augusto Frutuoso e Álvaro Pinto Teixeira, do PCP.

As penas a que seriam sentenciados os principais implicados nos acontecimentos em Coimbra, pelo TMT instalado no forte da Trafaria, sob a presidência do coronel Costa Macedo, assessorado pelo coronel Mouzinho de Albuquerque, seriam pesadíssimas. Condenado a 10 anos, Raul Galinha cumpriria a pena no forte de Angra do Heroísmo, até ser libertado em 1944, embora ficando em residência fixa nessa cidade açoriana, enquanto Abílio da Encarnação Pereira apenas seria solto em Abril de 1949. José Alexandre foi condenado a 18 anos, enquanto Bernardo Pratas e Arnaldo Januário foram sentenciados a 20 anos. Enviado para o Tarrafal, este último morreria nesse campo de concentração em 27 de Março de 1938.

Fonte e bibliografia:

- Arquivo Histórico Militar, proc 441/74, Fernando Araújo Gouveia, volume II, fls. 553-555.

- Fátima Patriarca, Sindicatos contra Salazar, A Revolta do 18 de Janeiro de 1934, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000, pp. 275-303.
19.Jan.2009



18 Janeiro 1934

Logo que chegou à chefia do poder, em 5 de Julho de 1932, António de Oliveira Salazar começou a elaborar a Constituição sobre a qual assentaria o seu novo regime, o Estado Novo. Após ser plebiscitado, o texto constitucional foi promulgado em Abril de 1933, no ano em que o novo regime salazarista criou a polícia política (PVDE) e o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e lançou as bases da legislação corporativa, que assentaria, depois da proibição das associações operárias, em Sindicatos Nacionais (SN) únicos e Grémios patronais todo-poderosos. Na luta contra o processo da chamada «fascização» dos sindicatos e num movimento de recusa de dissolução das organizações operárias nos SN e de formação de comités de base de luta por reivindicações económicas e liberdades políticas, ergueram-se os anarco-sindicalistas, os comunistas e alguns socialistas, respectivamente organizados na Confederação Geral do Trabalho (CGT), na Comissão Inter-Sindical (CIS) e na Federação das Associações Operárias (FAO), bem como elementos do Comité das Organizações Sindicais Autónomas (COSA).


No PCP, a linha de Bento Gonçalves e da direcção foi inicialmente de aproveitamento das assembleias-gerais que deveriam realizar-se para decidir da aprovação dos novos estatutos sindicais e aprovar moções de repúdio da nova legislação e dos sindicatos nacionais, gerando um movimento de massas que poderia vir a desembocar numa greve geral contra a «fascização dos sindicatos». O certo é que a táctica do PCP teve pouca aceitação na própria CIS, dirigida por José de Sousa, que aderiu à táctica da «greve geral insurreccional» e a partir de então os sindicalistas comunistas concentraram-se nos preparativos desta.

No processo de organização do movimento de resistência aos decretos sindicais do Estado Novo, revelar-se-ia assim dominante um projecto insurreccional, programado inicialmente pelos comunistas e anarquistas, organizados em Comités Sindicalistas Revolucionários (CSR), em conjunção com forças reviralhistas. Mas logo em Novembro de 1933, a PVDE conseguiu prender e deportar Sarmento de Beires e outros reviralhistas, participantes numa tentativa falhada de intentona que deveria coincidir com a «greve geral revolucionária», que após conhecer sucessivos adiamentos devido à repressão, foi marcada para 18 de Janeiro de 1934.

A polícia e o governo comportaram-se como se desejassem que o movimento deflagrasse para, em seguida, desmantelá-lo e reprimir os envolvidos. Parecendo estar ao corrente dos preparativos da «greve geral revolucionária» de 18 de Janeiro de 1934, a PVDE prendeu, na véspera, alguns dos principais dirigentes sindicalistas, entre os quais se contaram os anarco-sindicalistas Mário Castelhano e Acácio Tomás de Aquino e o reviralhista Carlos Vilhena, detido na madrugada desse dia. Em Lisboa, na noite de 17 para 18 de Janeiro, Salazar abandonou a sua residência, acolhendo-se, primeiro no Governo Civil e, em seguida, ao quartel de Caçadores 5, em Campolide, enquanto os pontos nevrálgicos da capital eram de imediato ocupados pelo Exército. As adesões à «greve geral» de dia 18 acabaram por se revelar reduzidas, registando-se paralisações e acções diversas em Lisboa, Coimbra, Leiria, Barreiro, Almada, Martingança, Silves, Sines, Vila Boim (Elvas), Algoz-Tunes-Funcheira e na Marinha Grande.

Na noite de dia 17, em Lisboa, rebentou uma bomba no Poço do Bispo e foi cortado o caminho-de-ferro em Xabregas, ao mesmo tempo que explodiam duas bombas na central eléctrica de Coimbra, colocada por anarquistas. Só na Marinha Grande, onde as lutas anteriores dos vidreiros tinham criado um ambiente propício, se foi mais longe: sob o impulso do sindicato (onde predominavam os comunistas), grupos de operários ocuparam o posto da GNR, o edifício da Câmara Municipal e os CTT, proclamando o «soviete da Marinha Grande». Tropas vindas de Leiria tomariam conta da vila poucas horas depois, ficando-se «greve geral insurreccional» por aí, com o governo a aproveitar para intensificar a caça aos libertários e comunistas.

Após a PVDE ter desmantelado as movimentações operárias, Salazar propôs, ao Conselho de Ministros, no dia 19, diversas medidas repressivas e sanções para os envolvidos nas acções da véspera. Considerados como participantes num «acto revolucionário», todos os dirigentes mas também qualquer mero aderente do movimento foram «sujeitos aos tribunais especiais». Numa nota oficiosa, o governo avisou também que iria «reprimir eficazmente a propaganda e as ideias dissolventes e atentatórias da moral pública e da ordem, bem como «promover a demissão de funcionários públicos» civis e militares envolvidos. Dos acontecimentos de 18 de Janeiro, resultou também a decisão de o governo criar, no sul de Angola, junto à foz do Cunene, um campo para os responsáveis revolucionários, e a vontade de erguer uma colónia penal em Cabo Verde. Esta viria a ser criada em 1936 no Tarrafal, para onde seriam enviados, logo em Setembro desse ano, os principais dirigentes detidos nos acontecimentos de 18 de Janeiro de 1934[1].

Nos dias subsequentes a 18 de Janeiro, houve porém um afrouxamento da censura e o governo não colocou limites à divulgação dos acontecimentos violentos da véspera. Pelo contrário, tudo fez para dar conta de um pretenso clima insurreccional, potenciando o impacto das acções violentas, em detrimento das greves, com o objectivo de assustar a população e apelar ao seu repúdio pelos acontecimentos. Além disso, o governo foi atribuindo crescentemente a autoria dos acontecimentos ao PCP, omitindo a participação dos elementos dos antigos partidos, dos reviralhistas e dos anarco-sindicalistas. Por exemplo, depois de ter referido estes últimos como os organizadores da «greve revolucionária», o ministro do Interior Gomes Pereira já quase não os nomeou, na conferência de imprensa realizada por ele no dia 19 de Janeiro.

O «18 de Janeiro» marcaria uma ruptura histórica no movimento operário português e o fim de uma época. Em primeiro lugar, foi o fim de mais de meio século de um sindicalismo sempre perseguido mas livre. O fracasso dos acontecimentos de 18 de Janeiro de 1934 levaria também ao fim da hegemonia do anarco-sindicalismo no movimento operário e sindical português, devido à violenta repressão que desabou sobre a CGT e o movimento libertário, que revelaram grandes dificuldades de sobrevivência na clandestinidade. Mais apto em actuar nessas condições adversas e passando a partir de então a hegemonizar a oposição ao regime, o PCP também viria a sofrer uma mudança, abandonando gradualmente o seu carácter ainda «pré-leninista», muito marcado pela herança anarco-sindicalista e pela colagem ao reviralhismo.

Finalmente, a partir de então, a nível do regime salazarista, derrotados os anarco-sindicalistas e os reviralhistas à sua esquerda, e os nacionais-sindicalistas à sua direita, o Estado Novo erigiria os comunistas como seus principais inimigos. Efectivamente, após o desmantelamento do movimento revolucionário de 18 de Janeiro de 1934, Salazar introduziu, pela primeira vez no seu discurso, um novo elemento – o comunismo e o perigo comunista. Foi Franco Nogueira que o disse, ao acrescentar que, através desse discurso, o País compreendia que estava «perante uma nova opção: a ordem social existente ou uma ordem social» que a destruísse por inteiro. O certo é que esse novo tema foi lançado por Salazar, no final do próprio mês de Janeiro de 1934, numa sessão de apresentação da nova organização de juventude estatal, a Acção Escolar Vanguarda (AEV). Depois de avisar que o Estado Novo não reconhecia as «liberdade contra a Nação, contra o bem comum, contra a família contra a moral», afirmou, aos jovens, que constituiriam «a geração do resgate» de que haveria de «nascer o mundo novo», que o comunismo se havia convertido na «grande heresia da nossa idade».

[1] Entre os participantes no «18 de Janeiro de 1934», morreriam no campo de concentração do Tarrafal, Pedro Matos Filipe e Augusto Costa, em 1937, Arnaldo Simões Januário, em 1938, Casimiro Ferreira e Ernesto José Ribeiro, em 1941, Joaquim Montes, em 1943, Mário dos Santos Castelhano e Manuel Augusto da Costa, em 1945, bem como António Guerra, em 1948
18.Jan.2009

José Correia Pires, um anarquista no Tarrafal

O fracasso da «greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934», em que participaram conjuntamente anarquistas, republicanos, «reviralhistas» e comunistas marcou o ocaso em Portugal do movimento anarco-sindicalista, desmantelado pela repressão e sem capacidade para sobreviver em condições de clandestinidade. Depois, outras memórias hegemónicas atiraram os anarquistas portugueses para o esquecimento, de onde também devem ser retirados. Este caso é só um entre muitos.


José Correia Pires (CP) nasceu em 17 de Abril de 1907, em S. Bartolomeu de Messines, concelho de Silves. Os pais, José Correia e Isabel Pires, eram trabalhadores pobres e analfabetos, como a maioria dos portugueses. No entanto, compreenderam a necessidade de o filho aprender a ler e escrever e colocaram-no numa escola particular onde aprendeu as primeiras letras e depois na escola oficial, onde fez a instrução primária até à então 5.º classe. Profissionalizou-se como carpinteiro, por volta de 1922, num período em que, já militando no movimento anarquista, em particular na Confederação Geral do Trabalho (CGT), foi activista do sindicato da construção civil de Messines.

Após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República portuguesa e a partir do qual vigorou um regime de Ditadura Militar, tentou criar em Messines uma organização, a Aliança Libertária, ao mesmo tempo que colaborava em alguns semanários regionais. Em Janeiro de 1931, ano em que haveria uma intensa agitação social e política contra a ditadura militar, CP teve o primeiro embate com a repressão quando, com outros camaradas, abriu uma escola na sede do Sindicato da Construção Civil de Messines, que acabaria por ser encerrada pelo administrador do Conselho, alferes Barroso, que a considerou subversiva.

Em protesto, CP escreveu um texto no jornal local A Voz do Sul e, para não ser preso, dirigiu-se a Faro, onde o comandante da polícia, capitão Maia Mendes, o tirou de apuros e conseguiu mesmo a demissão do administrador Barroso. Esta situação foi reveladora de que havia ainda então, no seio da Ditadura Militar, contradições, em particular na província, onde «o sentido de repressão ainda não tinha atingido o cunho que viria a ter depois de 33 ou mesmo como já teria em Lisboa e arredores», conforme afirmou o próprio CP nas suas memórias.

No entanto, tudo se clarificaria na Ditadura, quando no ano seguinte António Oliveira Salazar, ministro das Finanças desde 1928, chegou à presidência do Conselho de Ministros. Não por acaso, foi no verão de 1932 que CP conheceu pela primeira vez a prisão, relacionada com a luta pelas 8 horas de trabalho na construção civil. Numas obras a decorrer numas estradas circunvizinhas de Messines, trabalhava-se cerca de 14 horas por dia e o sindicato onde militava CP incitou os trabalhadores a reivindicar o cumprimento da lei das 8 horas. O «incidente» fez cair sobre ele a ameaça de prisão, pelo que teve de se ausentar durante uns meses de Messines, embora acabasse por ser detido em Faro e enviado para a prisão do Aljube, em Lisboa. Levado a julgamento no Tribunal Militar Especial, acabaria porém por ser absolvido, já em 1933.

Lembre-se que, no período da detenção de CP, começou a ser erguido o edifício do regime salazarista, Estado Novo, com a aprovação da nova Constituição e a criação de diversas instituições, entre as quais se contou a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Foi também então que Salazar lançou os primeiros diplomas da legislação corporativa, criando os Grémios patronais e os Sindicatos Nacionais e proibindo a partir de então os organismos de classe que neles não se transformassem.

Ora, quando ainda se encontrava preso nos começos de 1933, já se punha, segundo CP, «a hipótese de um movimento revolucionário feito pela CGT e sua possível coincidência com outro dos políticos» contra a «fascização» dos sindicatos.Tratava-se da greve geral marcada para 18 de Janeiro de 1934, numa conjunção de esforços das três centrais sindicais existentes – anarquista, socialista e comunista – e de um projecto insurreccional, programado inicialmente pelos comunistas e anarquistas em conjunção com forças reviralhistas e republicanas. No entanto tudo falhou dado que, avisada, a PVDE conseguiu desmantelar o movimento.

Após a sua libertação da primeira prisão, CP encontrava-se no Algarve a preparar o movimento de 18 de Janeiro de 1934, quando foi surpreendido, logo em 7 de Janeiro, «com um “achado explosivo” no sítio chamado serro grande que pôs em alvoroço toda a vila de Messines». No processo a que CP seria sujeito em 1936, ao ser preso pela segunda vez, consta que, no início de 1934, teria recebido em sua casa, em S. Bartolomeu de Messines, Virgílio Barroso, que havia ido buscar a Lisboa seis bombas de estilhaços para rebentarem em 18 de Janeiro de 1934. Procurado pela polícia, CP exilou-se em Espanha, onde chegou a ser preso e trabalhou numa pedreira, até que regressou clandestinamente a Portugal, em 1935, roído pelas saudades.

Vivia clandestino em Lisboa com a mulher e cinco filhos, quando se envolveu novamente, com camaradas anarquistas e elementos republicanos, numa tentativa de intentona. No entanto, segundo contaria CP numa entrevista dada em 1976, infiltrou-se no grupo um elemento de ligação com os republicanos, que se propôs arranjar-lhes armas, mas verificou-se depois que se tratava de um informador da PVDE. CP voltou a ser preso, passando pelos cárceres do Governo Civil de Lisboa e pela prisão do Aljube, então repleto de outros presos políticos anarquistas e, sobretudo, comunistas, num período em que, com a eclosão da guerra civil em Espanha, o regime salazarista sofreu um processo de endurecimento repressivo. Lembre-se que em 1936 a PVDE prendeu 2748 pessoas por razões políticas e depois continuou a não ter mãos a medir pois, entre esse ano e 1939, houve 9.575 detidos nos seus cárceres; ou seja uma média de cerca de 2400 detenções anuais.

Nesse período, como disse CP nas suas memórias, o ambiente entre todos os detidos era bom, pois pairava «a ideia de “frente única” ou “frente popular”, como vinha ocorrendo em França e em Espanha». Efectivamente os comunistas, anarquistas, republicanos e outros oposicionistas ao Estado Novo formaram então a Frente Popular Portuguesa (FPP), para responder ao processo de «fascização» que se fazia sentir em Portugal. Não por acaso, foi nesse ano de 1936 que foram formadas a milícia paramilitar Legião Portuguesa (LP) e as organizações de enquadramento das mulheres e dos jovens (a Obra das Mães pela Educação Nacional – OMEN -, bem como a Mocidade Portuguesa – MP – e a Mocidade Portuguesa Feminina – MPF, em 1937).

Foi também então criado, para encarcerar os opositores políticos mais activos, em particular os envolvidos em acções armadas, o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, para o qual foram enviados CP – sem ser alvo de qualquer julgamento – e 41 outros presos políticos, em Junho de 1937. Nos oito anos durante os quais CP permaneceu no Tarrafal, erguido sob inspiração dos campos de concentração nazis alemães, foram sucessivamente directores seis militares: Manuel Martins dos Reis, também chamado «Manuel dos Arames», pela sua obsessão em vedar tudo e todos a arame farpado e em impor o isolamento absoluto aos prisioneiros[1], José Júlio da Silva, João da Silva, Olegário Antunes, Filipe de Barros e o capitão Pratas.

Nesse campo «da morte lenta», os presos políticos eram sujeitos a trabalhos forçados e a tremendo castigos, contando-se entre estes a «frigideira» de cimento – um forno durante o dia e um «frigorífico» durante a noite – e a célebre «brigada brava», de trabalhos duríssimos, criada pelo chefe de guardas Henrique de Sá e Seixas, no período «mais duro» do campo, quando este era dirigido pelo capitão João da Silva. CP sofreu todos esses tormentos, incluindo duas estadias na «frigideira» e trabalhos forçados na «brigada brava», até regressar, «amnistiado» sem nunca ter sido julgado, a Lisboa, em 1945.

Após umas semanas no forte de Caxias, acabou por ser solto em 12 de Março desse ano, fixando-se em Almada. Começou por trabalhar nos estaleiros navais da Rocha do Conde de Óbidos e depois voltou à sua profissão de marceneiro até se estabelecer durante um período com uma carpintaria em Almada. Manteve sempre uma actividade associativa e cooperativa, tendo sido fundador da Cooperativa de Panificação – SulCoop, enquanto delegado da Sociedade Cooperativa de Consumo Almadense, do qual foi dirigente. Entre 1956 e 1957, foi presidente da Assembleia-geral da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, da qual foi ainda, em 1958, delegado a Federação.

Em Fevereiro de 1974, José Correia Pires foi denunciado à DGS por ter participado numa sessão comemorativa – autorizada – do 31 de Janeiro de 1891, na Academia Almadense. Após 25 de Abril de 1974, publicou dois livros, Memórias de Um Prisioneiro do Tarrafal e A revolução Social e a sua Interpretação Anarquista, ao mesmo tempo que se manteve politicamente interveniente, escrevendo diversos artigos, no Jornal de Almada e no mensário, Voz Anarquista, em defesa do anarquismo e do cooperativismo. Em 16 de Julho de 1976, José Correia Pires casou com Maria Guerreiro Correia, na conservatória de Almada, mas faleceria, poucos meses depois, em 28 de Outubro de 1976.


[1] Memórias de Um Prisioneiro do Tarrafal, Edições Dêagá, 1975, pp. 283

Fontes e bibliografia Arquivo da PIDE/DGS, José Correia Pires, processos SPS 600, SPS 2410 e 878/74«A revolução Social e a sua Interpretação Anarquista, um novo livro de Correia Pires», Jornal de Almada, 12/11/75, p. 2.
18.Dez.2008

As duas fugas de «Pavel»

Francisco Paula de Oliveira («Pavel»), operário serralheiro do Arsenal de Marinha e dirigente da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP) na clandestinidade, desde 1932, foi preso pela primeira vez pela polícia política, em Fevereiro desse ano, mas acabou então por ser solto por falta de provas. Mais tarde, a PVDE apuraria que, dias antes dessa detenção, «Pavel» havia iniciado a reorganização das juventudes comunistas, numa reunião realizada na Costa da Caparica, onde fora nomeado um novo secretariado da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP), no qual ele próprio ficara responsável pela imprensa.


Depois, ainda segundo o relatório daquela polícia, «Pavel» tinha sido enviado como delegado português a um congresso das juventudes comunistas espanholas, que não chegara a realizar-se. Após regressar de Madrid, convocara nova conferência regional para a Costa Caparica, tendo proposto nova reorganização da FJCP e, pouco depois, redigira um informe em nova reunião realizada na Amadora. Tinha ainda participado na organização de um plano de acção para a agitação para 4 de Setembro de 1932 e, nesse dia, havia sido ele a discursar num comício relâmpago em Alcântara.

Em 13 de Março de 1933, «Pavel» foi novamente preso, quando, na clandestinidade, visitava a sua mãe numa casa na Rua do Ferragial, em Lisboa. Ao verificar que ele sofria de uma grave doença pulmonar e não querendo que morresse nas suas mãos, a polícia transferiu-o da cadeia Aljube para a enfermaria do Limoeiro. Foi aqui que Edmundo Pedro conheceu «Pavel», que, devido ao seu precário estado de saúde, acabou por voltar a ser transferido, sob prisão, para o hospital-sanatório da Ajuda, de onde ele conseguiria evadir-se, em 3 de Setembro de 1933, com a ajuda de um indivíduo de nome Ferreira da Silva, motorista, e de Gabriel Pedro que o levou depois para uma sede clandestina do PCP, em Lisboa (1).

Fugindo para Espanha e daí para a URSS, «Pavel» fixar-se-ia, durante três anos, em Moscovo, para cursar na Escola de quadros leninistas e exercer tarefas práticas na Internacional Comunista da Juventude (ICJ), enquanto era condenado à revelia, em Portugal, a dois anos de prisão correccional. Entretanto, em 11 de Novembro de 1935, o PCP sofreu uma grande machadada, com as prisões, num encontro de rua em Lisboa, dos membros do seu Secretariado, José de Sousa, Júlio Fogaça e Bento Gonçalves. Devido a essas prisões, a ICJ decidiu que a delegação da FJCP permanecesse em Moscovo, até ao princípio 1936, e depois, numa reunião do Bureau Latino do Comintern, realizada na capital da URSS, ficou decidido que «Pavel» deveria regressar a Portugal para reorganizar o PCP. Após uma estadia de meses em Paris e Madrid, «Pavel» regressou clandestinamente a Portugal, no início de 1937, num cargueiro vindo de Marselha. Pouco depois de aportar à Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa, integrou o Secretariado do PCP, com Alberto Araújo, Francisco Sacavém e Firminiano Cansado Gonçalves.

Seguindo as directivas do VII Congresso da IC, «Pavel» iniciou o combate ao radicalismo sectário e a propensão para acções violentas, preocupando-se também em erguer a Frente Popular e formar uma central sindical única, que englobasse a CGT anarquista, a Comissão Inter-Sindical (CIS), dos comunistas e os Sindicatos Autónomos, dos socialistas. Na FJCP, foram também dados passos no sentido da concretização da política frentista, sendo criado, nas universidades, o Bloco Académico Antifascista (BAA), activa entre 1936 e 1938.

Em 10 de Janeiro de 1938, «Pavel» voltou a ser preso, desta vez pelo agente José Gonçalves da PVDE, após ter tentado resistir e lançar fogo ao arquivo, numa casa da Rua da Beneficência n.º180-2.º, onde estava montada a sede do secretariado do PCP e a redacção do Avante! Dois dias depois, Maria Eugénia Martins, que vivia com «Pavel» mas não se encontrava nessa casa quando este fora preso, também foi detida pelo agente António Pinto Soares, na Avenida Sacadura Cabral.

Interrogado várias vezes pelo capitão José Ernesto Catela do Vale Teixeira, secretário-geral da PVDE, e pelo investigador Raul Pinheiro, «Pavel» foi considerado, por essa polícia, «depois de Bento Gonçalves e José de Sousa, o mais hábil e perigoso condutor das massas revolucionárias». Dada a precariedade da sua saúde – tuberculose -, baixou à enfermaria do Aljube, onde entrou em contacto com o enfermeiro Augusto Rodrigues, que lhe disse ser um antigo militante da FJCP (2). Como «Pavel» desafiasse os guardas da cadeia, cantando canções revolucionárias, Augusto Rodrigues avisou-o de que nem ele nem o PCP lucrariam com a «brutal sova» de que estava ameaçado. Depois de um momento de desconfiança inicial e de o pôr à prova, «Pavel» acabou por confiar nesse enfermeiro, que lhe prometeu ajuda para uma evasão, desde que ele próprio pudesse ir para a URSS e que também fugisse o seu ex-controleiro na FJCP, António Gomes Pereira, que estava muito doente e queria morrer em liberdade.

Com a sua ajuda, «Pavel», o enfermeiro e este outro preso, António Gomes Pereira, conseguiram, em 23 de Maio de 1938, fugir. Atingindo a clarabóia de um prédio lateral ao Aljube, no qual penetraram, desceram depois as escadas, até à rua, onde os aguardavam dois automóveis, um, com Inácio Fiadeiro e a sua mulher, Stella Bicker, e outro, com Manuel Domingues. «Pavel», que se magoou durante a fuga, foi levado ao médico comunista Ludgero Pinto Basto, que o tratou e, após um período em que andou escondido em diversas casas de militantes do PCP, acabaria por ir para o Porto e, daí, sair do país, clandestinamente, na caixa de carvão de um navio sueco, via Casablanca, até Marselha e Paris. Ao descrever a prisão e fuga de «Pável», Fernando Gouveia aproveitou para referir a «intriga e luta interna» na organização clandestina do PCP e da FJCP em Portugal e no estrangeiro.

Em 5 de Setembro de 1938, a IC, através do se delegado em Paris, Victorio Codovilla considerou suspeitas as condições da fuga de «Pavel» e, concluindo, como já o havia feito anteriormente, pela existência de indícios de infiltração policial no PCP, decidiu suspender as relações com a direcção deste partido. Em Paris, onde se encontrava, sem saber da suspensão do PCP, Francisco Paula de Oliveira elaborou, com a data de 9 de Fevereiro, um relatório, para a IC, reconhecendo a incapacidade de ter conseguido uma viragem completa da actividade partidária, na linha do VII Congresso do Comintern. O seu balanço não era porém completamente pessimista, dado que, segundo ele, o número de militantes do PCP estaria acima dos 500 e que esse partido teria tido avanços em matéria sindical, na influência na imprensa legal e em associações desportivas, bem como na infiltração em aparelhos e organizações do próprio regime. Abandonado pela IC e pelo PCP do interior, «Pavel» exilar-se-ia no México.

(1) Edmundo Pedro, «A segunda morte de Pavel», in Expresso, 4/12/1993, artigo reproduzido neste blogue aqui e aqui.

Mais tarde, Ferreira da Silva esteve em Tânger (1959) e terá sido informador da PIDE, provavelmente com o pseudónimo «Nunes da Silva», denunciando nomeadamente o exilado Fernando Queiroga, participante no «golpe» da Mealhada, em 1946. Transferido de Marrocos para a Argélia e trabalhando inicialmente como topógrafo, Ferreira da Silva informaria a PIDE sobre Humberto Delgado e participaria na tentativa de rapto, em Espanha, de Tito Morais, realizada por António Rosa Casaco e José Gonçalves, que sofreram uma acidente de viação, em Zafra, pelo que a operação falhou.

(2) Ludgero Pinto Basto, num depoimento publicado no Expresso de 31.12.1993, em resposta a um texto de Edmundo Pedro, afirmou que o enfermeiro nunca tinha sido da FJCP e havia sido aliciado na cadeia pelo próprio «Pavel». No entanto, este último, confirmou que o enfermeiro o abordou, dizendo-lhe que tinha sido da organização comunista da juventude, como se pode ver em José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política, «Daniel…», p. 311.

Fontes e bibliografia:

- Arquivo da PIDE/DGS, processo 25/38, de Francisco Paula de Oliveira, Maria Eugénia Martins Correia, Alexandre Martins Correia, Alberto Araújo, Virgínia Inês de Lima, Ludgero Pinto Basto e outros.

- José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política, «Daniel, o Jovem Revolucionário (1913-1941)», volume 1, Lisboa, Temas e Debates, 1999, pp. 305-325.
26.Nov.2008

História e Justiça

Eu estou de acordo em geral com a opinião (ou as três opiniões do Rui Bebiano), formulada(s) em resposta às suas próprias perguntas, às quais, vou também procurar responder, uma vez que penso serem as que verdadeiramente se colocam. Por isso as volto a formular: «Deve o historiador tomar posição sobre o passado? Deve, em consequência, tomar posição sobre iniciativas de natureza penal que sobre ele incidam? E deve aceitar a manipulação mediática da história e da memória?»

Relativamente à primeira pergunta, é claro que faz parte do próprio ofício do historiador «tomar posição relativamente ao passado», ou seja, interpretar as fontes disponíveis, que ele próprio escolhe – lembre-se -, ao utilizar umas e prescindir de outras, na fase documentalista da sua pesquisa, analisá-las e organizá-las, para depois chegar à fase da escrita, introduzindo o que apurou e interpretou numa narrativa compreensível. O seu objectivo é tentar procurar a verdade, sabendo que ela é relativa e transitória. E fá-lo, também sabendo que ele próprio está envolvido subjectivamente num presente, do qual parte sempre, para analisar o passado. Por isso, ele não é neutro, mas tem de tender para essa neutralidade. Não é totalmente objectivo, mas tem de tender para essa objectividade. Em suma, ele escolhe o seu objecto de estudo, parte de uma hipótese inicial, que deve cotejar com as fontes que ele próprio escolhe, mas deve estar absolutamente disponível para, cotejando-as, conseguir até por em causa a sua hipótese inicial. Relativamente ao passado recente, ainda «fumegante», como diz Rui Bebiano, todo este processo se torna mais difícil, mas também aliciante. Mas o historiador também se tem de defender do relativismo e das noções de que tudo, em História, seria representação e não teria nada a haver com a realidade. Não se trata de verdades que se equivalem ou de meras opiniões, trata-se, da parte do historiador, de uma posição sobre factos que se passaram. Dando exemplo do Holocausto: dizer que o extermínio nazi ocorreu e as câmaras de gás existiram não é uma questão de opinião é uma questão de verdade ou de mentira. E os negacionistas do Holocausto mentem, por razões políticas e até criminosas. Se eles devem ser perseguidos ou não pela Justiça é outra questão, sobre a qual tenho uma opinião mas que não vou gora aqui expressar, podendo vir a ser abordada noutra ocasião. Agora, como diz Jacques Julliard, se a sua profissão é a procura da verdade, o historiador não deve pretender ser ele o único a detê-la. E deve reagir contra qualquer pressão do poder político para definir ou impor uma única verdade, o que remete para a segunda questão.

Quanto ao envolvimento, ou não, do historiador em questões penais ou políticas sobre o passado recente, deve-se dizer que ele não tem a vida facilitada. Não só, relativamente ao passado recente, como observa Pierre Nora, é pressionado pelas várias sensibilidades memoriais, como tem de «rivalizar» com muitas outras partes, entre as quais se contam a testemunha, a vítima, o jornalista, o juiz e o legislador. Sendo certo que a «história é algo de demasiado sério para ser exclusivamente deixado aos historiadores», como disse o historiador Pierre Vidal-Naquet, também é um facto que a História não deve ser escrita nem pelas vítimas, nem pelos carrascos, que se movem ambos no campo da Memória. Por outro lado, o historiador é frequentemente solicitado para se pronunciar sobre o passado recente na barra do tribunal, onde corre o risco de colaborar numa incriminação retrospectiva jurídica e política desse mesmo passado e de transformar o seu papel no do magistrado do presente. Se há historiadores que vão a tribunal para revelar um determinado contexto histórico, enquanto especialistas, outros recusam, em nome das diferenças entre a Justiça e a História. Mesmo se muitos dos processos de investigação histórica se assemelhem aos do detective ou do magistrado em juízo, o historiador não é um investigador policial nem um juiz, quer pela metodologia utilizada, quer, sobretudo, pelos fins que pretende atingir. Enquanto o juiz, partindo do geral para o particular, tem de provar os factos e decidir sobre responsabilidades individuais e males passados, presentes e futuros, cabendo-lhe, no fim, condenar ou absolver, o historiador vai do particular e do singular para o quadro geral de conjunto, escolhe os seus temas e as suas questões, elabora um contexto com valor hipotético e pode dar-se ao luxo de concluir consoante a «preponderância da prova», de forma não definitiva. O historiador não se propõe julgar, nem defender valores, mas apenas defender o valor em si que constitui a própria escrita de uma História capaz de restituir o máximo da substância, através de uma valoração que imprime à escrita. Ele tem, como todos, os seus próprios valores e não deixa de projectá-los na leitura que faz do seu objecto de estudo, dando algum sentido ao que escreve e, por outro lado, a par de ser historiador, é cidadão e vive no presente. Ora, isso já remete para a terceira questão.

Deve ele contribuir para a instrumentalização e manipulação política da memória? Memória que, diga-se, é outra coisa que a História. Penso que não e considero mesmo que ele se deve precaver disso, lutando até contra a ingerência do poder político no estabelecimento de uma verdade histórica, que é sempre tributária do presente e nunca do passado. Poder político que hoje pode ser um, com o qual até pode concordar, mas que amanhã, pode ser outro, autoritário ou mesmo totalitário. Nesse sentido, o historiador não tem a vida fácil, e se deve lutar contra qualquer pressão memorial ou politicamente correcta, que lhe trave os passos da pesquisa, também acaba por correr o risco perder a sua liberdade enquanto cidadão. Ora ele é-o, como o são todos os outros, políticos, juristas, magistrados ou polícias, e tem direito à opinião. Mas não enquanto historiador. É certo que ele também não é, como diz Rui Bebiano, Dr. Jekyll ou um Mr. Hyde, consoante as ocasiões e é cidadão e historiador ao mesmo tempo.

E chegando agora ao caso concreto de Garzón e ao envolvimento dos historiadores na criminalização de um passado, que para não me ficar apenas por generalidades, reconheço a dificuldade de emitir uma opinião. Para já, há que ter em conta que esse passado não está fechado e que o luto em relação a ele não está feito, enquanto houver vítimas e descendentes próximos das mesmas, vivos, à procura do local onde desapareceram e foram enterrados em valas comuns. Por isso, não se trata unicamente do campo da História, nem de criminalizar o passado, mas de saber se se deve fazer hoje Justiça, onde não a houve, num dos campos, onde muito depois da guerra civil o governo franquismo continuou a matar. Também é verdade que, na guerra civil, houve vítimas de ambos os lados e que não se pode dizer que umas foram «assassinadas», enquanto outras foram «falecidas». Cá está uma «verdade» única que não deve ser estabelecida, nem pelo poder político, que, em Espanha, onde aliás se deve dizer que, se este se pronunciou sobre uma Lei da Memória, não está a manifestar qualquer interferência, que eu saiba, na criminalização penal do passado. A transição espanhola para a democracia, ao colocar desde logo uma pedra no passado recente e ao «amnistiar» todos os crimes, possibilitou o recalcamento, que, na memória, é muito prejudicial. Quanto menos se espera, esta reage de forma não controlada. No caso de Portugal, onde os crimes não têm qualquer comparação com os cometidos em Espanha, a criminalização foi imediata, pelo menos na opinião pública e, mesmo assim, sabe-se como ainda hoje a memória deve ser defendida, e não apagada. Mas, se por mera hipótese contrafactual, alguém decidisse levantar a questão no terreno político ou na barra do tribunal, eu tenderia, se a ela fosse chamada, a decidir não ir, enquanto historiadora, pois estaria a tomar posição no presente relativamente a um passado já fechado, e por isso mesmo passível de ser investigado historicamente. Mas, se mesmo assim decidisse ir, limitar-me-ia, nunca como testemunha, mas como historiadora, apenas a apresentar, com o que sei, um contexto histórico multifacetado, sem colaborar com a criminalização do passado, nem contribuir para que haja uma única verdade. Não sei se dei «uma no cravo, e outra na ferradura», mas o problema é complicado.

20.Out.2008

O Imperador de Atlantis

Nos passados dias 12 e 13 Setembro 2008, realizaram-se, no convento dos Capuchos, que comemorou então os seus 450 anos, duas récitas da ópera Der Kaiser von Atlantis oder die Tod Verweigerung («O Imperador da Atlântida ou a abdicação da Morte»), composta, em 1943, por Vicktor Ullmann, com libretto de Peter Kien, no campo de concentração de Theresienstadt (Terezin, a norte da actual República Checa). Estreada na sua totalidade pela primeira vez em Portugal, com organização da Câmara Municipal de Almada e da Associação Ginásio Opera (1), a ópera foi concebida pelos dois artistas durante o cativeiro em Theresienstadt, para apresentação no campo de concentração. Devido à sua temática pacifista e anti-hitleriana, o espectáculo jamais seria levado à cena dado que, nos ensaios realizados em Outubro de 1944, o comando local das SS proibiram a sua apresentação. Pouco tempo depois, Ullmann, Kien e todo o cast foram enviados para Auschwitz, onde acabariam por morrer nas câmaras de gás. Apenas em Dezembro de 1975, trinta anos depois da sua criação, a ópera teria a sua estreia mundial no Bellevue Center de Amesterdão.

Dada a perplexidade que pode haver com o facto de ter sido composta uma ópera – não foi aliás caso único em Theresienstadt – num campo de concentração nazi, convém dar algumas explicações sobre a forma como ele foi concebido pelos nazis, como instrumento de propaganda para esconder os seus crimes, a par aliás com a destruição das câmaras de gás e as transferências dos deportados dos campos do extermínio, nas «marchas da morte», no final da guerra. Lembre-se que, questionado sobre as atrocidades cometidas, o próprio chefe das SS, Heinrich Himmler disse a um deportado estar convicto que ninguém iria acreditar na magnitude do crime do extermínio e que ainda hoje os negacionistas do Holocausto utilizam o exemplo de Theresienstad.

Enquanto Chelmno, Maidanek, Belzec, Sobibor, Treblinka e Auschwitz-Birkenau, entre outros, foram campos de extermínio, Theresienstadt teve desde o início, diversos outros objectivos: concentrar a maioria dos judeus do Protectorado da Boémia e Morávia, bem como certas categorias de judeus da Alemanha e de países da Europa ocidental; servir como ponto de paragem de judeus antes da transferência gradual a caminho dos campos da morte a leste de extermínio e esconder o extermínio dos judeus.

Efectivamente, as autoridades alemãs utilizaram desde logo Theresienstadt para apresentar o campo como um «gueto modelo». Os primeiros 1.300 judeus checos chegaram a Theresienstadt, no final de Novembro de 1941, juntando-se-lhes depois alemães, austríacos e holandeses, nomeadamente pessoas proeminentes de mérito especial e velhos. O alojamento estava separado por sexo, ficando as mulheres com os filhos abaixo de 12 anos, separados dos homens e dos filhos acima daquela idade. Os assuntos internos eram tratados por um Conselho de Anciões, composto por judeus que colaboravam na gestão do campo, esperando assim evitar as deportações. Graças ao grande número de artistas, escritores e académicos encarcerados no campo, havia um vasto programa de actividades culturais.

Em Setembro de 1942, quando havia cerca de 54.000 judeus internados, entre eles o compositor Viktor Ullmann, que chegou a Theresienstadt com a mulher Elisabeth vindos de Praga, o comando SS abriu ali lojas e um café. Paralelamente à apresentação de Theresienstadt como um «campo modelo», os nazis «eliminavam», através da deportação para leste, o excesso de prisioneiros do gueto, onde grassava a morte, devido à doença e à má alimentação, provocadas pela sobre-população. A primeira deportação de 2.000 judeus para Riga ocorrera em Janeiro 1942, depois outros foram transferidos para guetos na Polónia e nos Estados Bálticos e, em Outubro desse ano, para Treblinka e Auschwitz.

Em 18 Dezembro desse ano de 1942, doze governos aliados, incluindo o checo, no exílio em Londres, denunciaram o tratamento dos judeus pelos nazis e, provavelmente por isso, Heinrich Himmler ordenou em 2 de Fevereiro de 1943, a paragem dos transportes de Theresienstadt, para Auschwitz, num período em que ali havia 44.672 prisioneiros. Em Maio de 1943, foi criado em Theresienstadt um banco e foi impresso papel de moeda para pagamento do trabalho dos judeus nas fábricas do gueto que trabalhavam numa tenda de circo então erguida. Em Julho, os números e letras das ruas e edifícios foram mudados para nomes e a palavra «gueto» foi eliminada de Theresienstadt, sendo substituída, por «estabelecimento de judeus».

Mas o verdadeiro «programa de embelezamento» de Theresienstadt foi encetado pelos nazis, no final de 1943, para receber uma inspecção da Cruz Vermelha Internacional (CVI), pressionada pelo governo dinamarquês no exílio, que quis conhecer as condições de vida do gueto, para onde tinham sido enviados 466 judeus dinamarqueses, em 5 Outubro 1943. Na primavera de 1944, os nazis começaram a preparar a visita da CVI. O comando SS chegou ao ponto de produzir um filme intitulado Der Führer schenkt den Juden eine Stadt («O Führer oferece uma cidade aos Judeus») em que prisioneiros – mais tarde enviados para Auschwitz – foram obrigados a participar, utilizando cenários com fachadas de prédios. Foram plantadas flores na praça, o café e as lojas foram embelezadas, além de serem construídos um pavilhão de música, um espaço para as crianças brincarem, um clube para eventos sociais, uma sinagoga e uma biblioteca para os judeus. A visita da CVI, ocorrida em 23 de Julho de 1944, durou seis horas mas os eventos culturais duraram uma semana, com vários espectáculos, entre os quais a apresentação da ópera de crianças Brundibar e a actuação de uma banda de jazz, chamada Ghetto Swingers, apesar de os nazis terem banido o jazz e o swing da Alemanha.

No Outono, depois da visita da CVI, recomeçaram os transportes de Theresienstad, onde havia então cerca de 30.000 prisioneiros, para Auschwitz. Num desses transportes, incluíram-se Peter Kien e Viktor Ullmann que, durante os dois anos que permaneceu em Theresienstadt, compôs diversas cantigas a capella, coros, três sonatas para piano, uma peça baseada em Die weise von Liebe und Tod des Cornets, de Christoph Rilke, além da ópera Der Kaiser von Atlantis. Dos 18.402 judeus do gueto enviados para Auschwitz, em onze transportes, entre 28 de Setembro e 28 de Outubro de 1944, só sobreviveriam 1.570. Após estes transportes, ficaram em Theresienstadt cerca de 11.000 pessoas, incluindo 819 crianças abaixo de 15 anos. Em 5 Março de 1945, Adolf Eichmann visitou Theresienstadt para preparar nova visita da CVI, em 15 de Abril, e o gueto voltou a obter um bom relatório dessa instituição internacional. Cinco dias depois, Theresienstad foi entregue à CVI.

Dos 139.654 judeus originariamente deportados para Theresienstadt, entre 24 de Novembro de 1941 e 20 de Abril de 1945, 86.934 foram transportados para vários campos de extermínio a leste e destes apenas 3.097 sobreviveram. Após 20 de Abril desse ano, chegaram ao gueto 13.454 deportados, evacuados de outros campos alemães, fechados antes da chegada das tropas soviéticas, e, em resultado disso, grassou uma epidemia de tifo em Theresienstadt que matou 33.430 pessoas. Quando a guerra terminou, em 8 de Maio de 1945, havia ali 29.320 prisioneiros; todos os outros tinham sido enviados para campos de extermínio ou haviam morrido no interior dos muros desse campo. As 1.260 crianças sobreviventes do gueto de Bialystok na Polónia oriental que chegaram a Theresienstadt, em 1942, foram enviadas, acompanhadas de médicos e enfermeiros para fora desse gueto, pretensamente para serem trocados por prisioneiros de guerra alemães na Suíça, mas acabaram, ao invés, por ser enviadas para Auschwitz e assassinadas, não sendo contabilizadas pelos nazis como tendo sido enviadas para leste.


(1) A encenação e direcção cénica couberam a João Maria de Freitas Branco e a direcção musical a Jean Sebastien Bereau. Interpretaram a ópera o baixo João Oliveira, no Arauto, os barítonos Luís Rodrigues e Pedro Correia, respectivamente, no Imperador e na Morte, a meio soprano Madalena Bole, no Tambor, a soprano Teresa Cardoso Menezes, na Rapariga, e Mário João Alves, tenor, assegurando as personagens do Arlequim e do Soldado. Houve ainda a intervenção do corpo de baile da Associação Gestos

14.Out.2008

Peniche: de Prisão a Pousada? (2)

Após a chegada de vários comentários ao que escrevi no anterior post, que muito agradeço, gostaria de assinalar em primeiro lugar que algo vai mal na nossa democracia argumentativa. Situação aliás que tem a ver com a enorme fraqueza da nossa sociedade civil. De facto, alguns comentadores, cuja opinião têm todo o direito de defender, tal como eu tenho todo o direito de defender a minha, não conseguem argumentar, sem recorrer ao rótulo, por vezes insultuoso. «Cruzada indigna», «sectarismo», «fundamentalismo», defesa de «uma memória “antifascista”» (com as devidas aspas) são só alguns dos epítetos que têm sido lançados nos comentários. O interessante de um ponto de vista político é que não se distinguem pela área ideológica de onde provêm.

Além desta observação, gostaria também de referir algumas questões que, entre outras, me sugerem alguns comentários e servem de pretexto para explicitar melhor a minha ideia.

1 – Nunca pretendi que a fortaleza de Peniche ficasse exactamente como está, ao abandono, como realmente se encontra. A responsabilidade por esse estado é da autarquia e do Estado central. Numa visita que lá fiz, verifiquei que a pobreza «museológica» é total e que pouco serve para preservar a memória. Por isso, como muitos outros, já defendi que devia ser ali erguido um espaço museológico «a sério», actual e com preocupações estéticas, bem como pedagógicas. Essa defesa vem na mesma linha daquela que, com outros companheiros do «Não Apaguem a Memória!», temos vindo a fazer de outros espaços museológicos, não só onde funcionavam o tribunal plenário de Lisboa, na Boa-Hora, a sede da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, como noutras sedes de delegações dessa polícia política e, em especial, na cadeia do Aljube e o campo de concentração do Tarrafal, onde estamos a tentar intervir.

2 – Por outro lado, verifico por alguns comentários que, segundo a opinião de alguns elementos ou apoiantes de um determinado partido, o PCP seria o guardião da memória do período ditatorial. Nada de mais falso. A memória é de todos, e não só devido ao facto de ter havido ao longo dos anos, em Peniche, bem como outros locais de repressão, muitos outros presos de partidos diferentes – anarquistas, «reviralhistas», republicanos e militantes de movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas e dos chamados movimentos e grupos da extrema-esquerda e de luta armada. Também, e sobretudo, porque a preservação da memória se faz no presente, a pensar no futuro, envolvendo gerações que nada têm a ver com essas organizações.

3 – Outro argumento, que não aceito, é o de que eu não poderia defender a preservação de Peniche como espaço de memória, sem ser obrigada também, por exemplo, a defender o período anterior em que o forte serviu de fortaleza. O mesmo argumento já tinha aliás sido utilizado relativamente ao edifício da Rua António Maria Cardoso, que, antes de ser sede da PIDE, teve outras valências. Se quiserem defender essas memórias anteriores, que o façam. Tenho direito a escolher os meus objectos de defesa, ou não? Só posso garantir que expressarei essas ideias, sem recurso a «cruzadas», pois sou laica.
01.Out.2008



Sofia Oliveira Ferreira

Sofia de Oliveira Ferreira nasceu em Alhandra (Vila Franca de Xira), em 10 de Maio de 1922. Por volta dos vinte anos, foi «servir» para uma casa particular, em Lisboa, onde se encontrava em 1945, quando ingressou no Partido Comunista Português (PCP). Foram as suas duas irmãs que viviam em Vila Franca de Xira, vila onde esse partido foi buscar muitos dos seus quadros no período da II Guerra Mundial, que a levaram para o PCP, antes de ingressarem na clandestinidade. A própria Sofia também foi colocada, em 1946, numa «instalação» clandestina do PCP, onde funcionava uma tipografia que imprimia o Militante e outras publicações desse partido.

Dois anos depois, Sofia foi colocada numa casa do Secretariado do PCP, no Luso, onde foi presa, pela primeira vez, em 25 de Março de 1949, juntamente com os dirigentes comunistas Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro. A casa foi assaltada por uma brigada da PIDE, chefiada pelo chefe de brigada Jaime Gomes da Silva e integrada pelos agentes Mortágua, Rego, Guerra e Pais, acompanhados pela GNR, que levaram os três presos para a delegação da polícia política do Porto. Mal ali entrou, Sofia ouviu os gritos da sua camarada Luísa Rodrigues, companheira de Militão Ribeiro, presa desde 7 de Fevereiro. Sofia disse ter aí começado a tortura para ela, pois viu-se impossibilitada de prestar socorro à sua camarada, cuja janela da cela foi logo entaipada pela PIDE.

Contou Sofia «que uma das formas de tortura da PIDE era justamente fazer ouvir gritos e gemidos de outros presos, para quebrar a moral e criar tensão psicológica e nervosa aos presos recém-chegados e mesmo aos que já se encontravam presos havia longo tempo». Como tentasse fazer chegar um bilhete a Luísa Rodrigues, Sofia foi agredida e insultada pelos elementos da PIDE. Depois, os seus interrogatórios processaram-se sob provocações e ameaças de cassetête, com o qual lhe bateram num braço, às ordens do chefe de brigada Gomes da Silva. Numa ocasião foi esbofeteada, com tal violência, que ficou com um derramamento de sangue no olho esquerdo e perturbações auditivas durante muito tempo.

Álvaro Cunhal e Sofia Ferreira recusaram-se a prestar declarações e a assinar os autos e Militão Ribeiro apenas declarou pertencer do CC. Cunhal só recuperaria a liberdade, onze anos depois, ao fugir de Peniche, e Militão morreria em Janeiro de 1950, na Penitenciária de Lisboa, não sem antes dizer que a polícia o estava a matar. A morte deste, foi, aliás, motivo de controvérsia dentro do PCP, por ter sido considerado que se «suicidara» através de uma greve de fome.

Após os interrogatórios, Sofia foi mantida em completo isolamento durante seis meses, cinco dos quais, sem ter acesso a livros e jornais e impedida de executar trabalhos manuais. Quanto a visitas, os seus familiares apenas se podiam deslocar ao Porto de quinze em quinze dias, e podiam estar com ela apenas 15 minutos. Diga-se também que, num determinado período de 1949, chegaram a estar presas pela PIDE as três irmãs, Mercedes, Georgete e Sofia Ferreira.

Julgada em Maio de 1950, Sofia foi condenada a 18 meses, pena depois agravada pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao qual recorreu, para 20 meses e 1 ano de medidas de segurança. Foi libertada condicionalmente, em 4 de Fevereiro de 1953, ano em que voltou à clandestinidade. Embora não tivesse tomado parte no V Congresso, em 1957, foi ali proposta e eleita como membro substituto do CC, constando da sua biografia política então apresentada 12 anos de filiação partidária, 11 anos de clandestinidade como funcionária do PCP e 3 anos e meio de prisão cumprida.

Em 28 de Maio de 1959, Sofia foi novamente detida, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa, juntamente com o seu companheiro António Santo, pelos agentes Inácio Ribeiro Ferreira, Silvestre Soares e José Henriques Júnior. António Santo («Silva») e Sofia Ferreira («Soares»), que foi então submetida à tortura da «estátua», recusaram responder às perguntas da PIDE e a assinar os autos. No entanto, através de documentação apreendida, a PIDE considerou que ambos actuavam num denominado «organismo regional de Lisboa», de cuja direcção central «fazia parte a arguida Sofia, na qualidade de membro suplente do CC, desde o Congresso de 1957». A PIDE concluiu que Sofia Ferreira detinha maiores responsabilidades do que António Santo e que controlava outros funcionários, cabendo-lhe receber, censurar e fazer seguir a correspondência, que recebia «dos seus subordinados aos familiares dos mesmos, através da “organização” de que faz(ia) parte».

No final de Maio de 1960, Sofia Ferreira foi julgada, no Tribunal Plenário da Boa Hora, presidido pelo juiz Silva Caldeira. Quando o seu advogado Manuel João da Palma Carlos pretendeu contestar a acusação e explicar os objectivos dos partidos comunistas, esse juiz opôs-se, dizendo que tal não interessava à defesa dos réus. À testemunha de acusação, o agente da PIDE Varatojo, o advogado perguntou se ele podia «explicar ao tribunal quais os fins que o PCP» visava, mas o juiz repetiu que não era permitida fazer tal pergunta. Palma Carlos disse então que não continuaria o interrogatório se não fosse dado esse esclarecimento e o desembargador ordenou-lhe a saída da bancada da defesa, nomeando Duarte Turras defensor oficioso da ré.

Sofia Ferreira levantou-se para dizer que não prescindia do seu advogado, sendo-lhe ordenado que se sentasse. Ao ser-lhe perguntado se queria dizer algo, afirmou que o julgamento era «ilegal por não poder ser defendida pelo seu advogado», pelo que o juiz os mandou recolher ao calabouço do tribunal. Na audiência do dia seguinte, Sofia declarou pertencer ao PCP, partido que não era «uma associação ilícita e subversiva que pretende derrubar o governo pela violência», conforme deduzia a acusação, e foi novamente enviada para o calabouço, onde ouviu a sentença que a condenou a 5 anos e 6 meses de prisão maior e 3 anos de medidas de segurança.

Durante os nove anos e três meses seguidos que esteve presa em Caxias, Sofia Ferreira foi punida diversas vezes. Para se ser castigada, bastava, segundo ela, falar um pouco mais alto no corredor, cantar, cumprimentar um companheiro com quem se cruzava ou reclamar tratamento ou o internamento de uma companheira. Segundo Sofia Ferreira, os «castigos por tudo e por nada obedeciam a uma orientação da PIDE», com o objectivo, por um lado, «de refrear o espírito combativo dos presos, acerca dos problemas prisionais, de quebrar a unidade e a organização dos patriotas presos e de suas famílias». Por outro lado, «a acumulação de castigos influía na libertação condicional dos presos e na prorrogação das medidas de segurança, pois estas eram concedidas na base do “bom” ou do “mau” comportamento prisional».

Contou ainda Sofia que, em Caxias, se vivia «sob uma tensão permanente que se reflectia profundamente na saúde, no estado psíquico e no sistema nervoso dos presos», não só devido aos castigos, mas também à falta de assistência médica, à péssima alimentação e à falta de visitas. Em Abril 1961, a sua irmã Mercedes escreveu ao director da PIDE a pedir autorização para visitar Sofia, presa em Caxias, mas o pedido foi indeferido, com o argumento de que ela já tinha estado presa. Quando Mercedes fez, mais tarde, outro pedido para que a mãe de ambas, que era cega, pudesse ter uma visita em comum com Sofia, a polícia recusou, em virtude de isso constituir «uma excepção». Diga-se, aliás, que, quando a mãe morreu, em Março de 1965, a PIDE e o ministério do Interior indeferiram uma autorização para ela comparecer no velório.

Sofia Ferreira começou a cumprir os três anos de medidas de segurança em Outubro de 1965 e apenas foi libertada condicionalmente em 6 de Agosto de 1968. Foi então morar para Alverca do Ribatejo com o seu companheiro António Santo, solto condicionalmente em 8 de Agosto de 1968, não sem ter de pagar uma caução. Em Dezembro, os dois deixaram de se apresentar à polícia, considerando a PIDE que teriam ido para o estrangeiro. Regressariam a Portugal após 25 de Abril de 1974.

Fonte e bibliografia:

Arquivo da PIDE/DGS no IANTT, proc. dir. 551/59, Div. Inv., António Santo e Sofia Oliveira Ferreira.

Rose Nery Nobre de Melo, Mulheres Portugueses na Resistência, Lisboa, Seara Nova, 1975, pp. 48-57.
30.Set.2008

Peniche: de Prisão a Pousada?

Segundo noticiou o jornal Público, de 25 de Setembro de 2008, a Fortaleza de Peniche vai ser transformada em Pousada de Portugal, devendo abrir portas até 2013. «Com um investimento previsto de dez a 15 milhões de euros, a nova unidade deve compatibilizar a função hoteleira com a “preservação da memória da prisão política”» – disse António Correia, presidente da Câmara de Peniche. O autarca acrescentou que essa «pousada será diferente», pois «será construída num local que é visitado por milhares de pessoas à procura da memória do que ali se passou» (*).


Esta declaração parece uma anedota (de mau gosto).

Será que o Sr. Presidente da Câmara está à espera de «clientes» bebam um copo, num hipotético bar, erguido junto ao «parlatório», onde os familiares visitavam os presos políticos com uma placa de vidro encimado por uma rede de permeio e os guardas a vigiarem? Ou que dêem um mergulho na piscina, junto à «furna» isolada em cimento, que servia de «segredo», para punir os presos políticos? Ou ainda que façam parapente para o mar, ou escalada dos muros, para reviver as fugas audaciosas dos presos políticos?

As declarações do autarca de Peniche revelam também que a questão da preservação da memória está a «passar» em Portugal e até a tornar-se numa moda. Não se trata porém de criar espaços museológicos, necessários a um trabalho de memória, que não só a possa preservar, pacificá-la nos que sofreram a repressão da ditadura de Salazar e Caetano, como servir de ponte actuante entre o passado, o presente e o futuro, bem como de solidariedade entre as gerações. Não. O que se pretende é utilizar a mesma memória para efeitos comerciais, até com algo de macabro. Pelos vistos, o exemplo da sede da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso em Lisboa, transformada em condomínio de Luxo, «pegou». Só que desta vez, até uma propriedade pública que serviu de centro de detenção política para os opositores a Salazar e Caetano cumprirem as penas a que eram condenados pelos Tribunais Plenários do Estado Novo parece poder vir a ser transformada numa Pousada de Portugal privada.

(*) A notícia também refere que do grupo Pestana-Pousadas de Portugal fará essa transformação, ao abrigo de um contrato que já terá já sido assinado, no passado dia 25, entre ele e os organismos estatais Turismo de Portugal, Enatur (Empresa Nacional do Turismo) e Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.
28.Set.2008

«Esta não é a minha revolução»

O fascínio da autora, Clara Queiroz, pela personalidade de Emma Goldman resulta da impressionante actualidade da análise política, da defesa dos direitos das mulheres e dos trabalhadores, da justiça social e política e, sobretudo, da intransigente luta pela liberdade.

Cada obra acaba por ter algo de autobiográfico, mesmo que seja a biografia de outra personagem. A autora, cuja empatia com a biografada é muito grande, revê-se no seu pensamento e na sua personalidade e retira do silêncio para o público português esta personagem, malquista e malvista pelos hegemónicos na esquerda europeia durante tantos anos.

Através da narrativa escorreita do livro, assiste-se à vida de uma judia russa, nascida na Lituânia e emigrada para os EUA, onde se abriu para a revolução e para o anarquismo. Este seria, aliás, na sua vivência, intimamente relacionado com o feminismo. Emma Goldman participou também em reuniões com socialistas alemães que tentavam organizar o movimento operário norte-americano e acompanhou as lutas operárias pelas oito horas de trabalho.

Esteve presa durante dois anos e, em 1919, foi deportada para a Rússia com Berkman, seu marido. Aí, depressa descobriram que a revolução, na qual tantas esperanças tinham depositado, também encarcerava anarquistas e outros dissidentes. E ouviram da boca do próprio Lenine que a liberdade de expressão era um conceito burguês.

Acabaram por deixar a Rússia e passaram por vários países da Europa, onde assistiram ao nascer dos fascismos e à derrota da República espanhola. Emma Goldman viria a morrer no Canadá, em 1940, com 71 anos – quando o mundo estava já sob o jugo dos nazis e de Hitler, mas sem assistir ao Holocausto judaico.

Talvez valha a pena sublinhar algumas das suas preocupações mais constantes. Para além de explicar por que razão não podia aceitar o estado bolchevique, preocupou-se com a questão da necessidade de coerência entre os meios e os fins:

«Não há maior falácia do que a crença de que objectivos e propósitos são uma coisa, enquanto métodos e tácticas são outra. Esta concepção é uma potente ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana nos ensina que métodos e meios não podem ser separados do objectivo último. Os meios empregados tornam-se, através do hábito individual e da prática social, parte integrante do propósito final; influenciam-no, modificam-no e, dentro em pouco, objectivos e meios tornam-se idênticos…»

Na Rússia, «os grandiosos e inspiradores objectivos da Revolução tornaram-se tão nebulosos e obscurecidos pelos métodos usados pelo poder politico governante que era difícil distinguir o que eram meios temporários e qual o propósito final. Psicologicamente e socialmente os meios influenciam e alteram necessariamente os objectivos. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que despojar os métodos de conceitos éticos significa mergulhar na profundeza da total desmoralização. Aí reside a tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Socialista. Que possa esta lição não ter sido em vão».

Esta longa citação, que faz lembrar outra, do escritor francês Albert Camus, «La fin justifie les moyens? Cela est possible. Mais qui justifie la fin?» («O fim justifica os meios? É possível. Mas quem justifica o fim?») é espantosa, pois remete para a ideia da já referida profunda actualidade do pensamento de Emma Goldman, uma mulher livre que pensou pela sua cabeça, independentemente dos dogmas e da ideologia que se tornaram hegemónicos na esquerda (?) europeia. Por isso, o seu legado foi renegado e esquecido, embora esteja hoje a ser relembrado por todo o mundo (basta ver a profusão de sites na Internet sobre essa anarquista feminista).

É mérito deste livro, que se lê com todo o interesse num ápice, lembrar Emma Goldman em Portugal, ao revelar não só a personalidade da mulher, anarquista e feminista, como a forma como ela viu, tão cedo, de que modo a confusão entre os meios e os fins poderia degenerar no totalitarismo.

Clara Queiroz, Se não puder dançar, esta não é a minha revolução. Aspectos da vida de Emma Goldman, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, 288 p.
22.Set.2008

Maria Ângela Vidal Campos

Nasceu no Porto, em 5 de Setembro de 1926, no ano em que um golpe de Estado militar derrubou a I Republica portuguesa, filha de um comerciante, proprietário de uma loja de lanifícios na Rua de Santa Catarina, na baixa portuense, e de uma professora primária que faleceu muito cedo, quando Ângela era uma criança.

Em casa, segundo diria Ângela, coexistiam duas correntes que a marcaram na infância e primeira adolescência. A da madrasta, católica praticante, embora também se dedicasse ao espiritismo, que foi uma segunda mãe para Ângela e a influenciou, nomeadamente, no sentido de fazer a primeira comunhão. Quanto ao pai, era um republicano agnóstico e anticlerical, que lia muito literatura francesa e acreditava na educação inglesa, não deixando de ser severo e disciplinador.

Foi através dele que, por volta dos treze anos, Ângela acedeu aos primeiros livros, até ali guardados numa estante fechada e foi graças a ele que ela nunca frequentou a Mocidade Portuguesa Feminina, nem foi forçada a frequentar as aulas de moral. No liceu, Ângela fez as suas escolhas, juntamente com quatro colegas e as primas. Rebeldes, partilhavam as mesmas ideias, trocavam livros, deixaram de ir à missa e tentavam sair à noite, até à Foz, algo de impensável para jovens de 18 anos do Porto, nos anos quarenta, mesmo para famílias da oposição.

Durante a II Guerra Mundial, como o pai, Ângela foi aliadófila e frequentava o Instituto Britânico, uma lufada de ar fresco no ambiente conservador portuense. Começou a assistir aos primeiros comícios antifascistas, embora tivesse de pedir autorização ao pai que receava a repressão. Por volta dos 19 anos, em 1946, ingressou no Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF), órgão de frente oposicionista influenciada pelo Partido Comunista Português (PCP), e mais tarde no Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUD J).

Da revolta social e moral face ao Estado Novo, Ângela passou à oposição política organizada, ingressando no PCP, por volta dos 20 anos. A sua primeira controleira na célula comunista era uma mulher que Ângela tinha conhecido no Ginásio Feminino Atlético Clube e que muito admirou. Tratava-se de Maria Natália Maia, uma mãe que trabalhava para sustentar a família e com a qual Ângela resolveu fazer umas cadeiras do 7° ano. Ao mesmo tempo que trabalhava como funcionária da biblioteca da Faculdade de Medicina do Porto, Ângela foi convidada para uma actividade semi-clandestina, tendo por tarefa o apoio ao Secretariado do PCP.

Pouco tempo depois deixou de trabalhar, ingressando na total clandestinidade, juntamente com o companheiro, Rolando Verdial, do qual teve um filho. Os três instalaram-se numa casa clandestina na Lagoa Azul, onde Ângela se tornou uma «amiga» das casas clandestinas do PCP, assegurando que a «instalação» continuasse a ser um local seguro para o seu companheiro, quando ele regressava do trabalho clandestino. Posteriormente, com o companheiro e o filho, Ângela instalou-se noutra casa clandestina no Algarve (Albufeira), com outro funcionário do PCP, Carlos Costa, com o qual casaria mais tarde, em 1959, quando ambos estavam presos.

Em 24 de Maio de 1953, Rolando Verdial foi preso em Paderne (Albufeira), mas curiosamente acabou por ser libertado por parecer estar mentalmente desequilibrado e entregue à família, até voltar a ser detido, em 25 de Novembro, nas minas de Jales, onde estava na semi-clandestinidade. Entretanto em 12 de Junho desse mesmo ano, por suspeita de contrabando, a GNR entrara de surpresa na casa clandestina de Ângela Vidal, onde ela se encontrava sozinha com o filho, então com cerca de dois anos, e ali encontrou uma mala cheia de papéis ilegais. Essa detenção não se deveu assim a um trabalho prévio de investigação da PIDE, mas, sim, à desconfiança da GNR. Mais tarde, ao voltar de um encontro partidário, Carlos Costa foi, por seu turno, preso e os dois foram entregues pela GNR à PIDE.

Os dois foram transferidos para a prisão de Caxias, onde Ângela ficou numa cela, durante onze dias, com o filho, para o qual teve de exigir alimentos e cuidados de saúde. Nesse período, recusou-se a entregar a criança a um intermediário e exigiu que só o faria a um parente directo, o que demorou onze dias a resolver. Depois, continuou o isolamento, durante cerca de dois meses, sem recreio, visitas, livros e sem o filho, entregue a um familiar. Apenas tinha os ratos a quem dava de comer pão e a ela própria, enquanto aguardava as idas para interrogatórios, na sede da PIDE Lisboa, já condenada a dois meses de prisão, por não se querer sequer identificar.

Um dos que a interrogou foi o inspector Fernando Gouveia, que, face a ela declarar nada ter a declarar, assim procedendo «por sua honra», retorquiu brutalmente que ela nada sabia de honra, pois estava a viver com outro funcionário, e não com o marido, acrescentando: «causais-me tanto nojo (funcionários) que apetecia-me esmagar-vos como répteis». Durante um ano, como não tinha família em Lisboa e, por lei, só os parentes directos podiam visitá-la, só recebeu a visita do avô paterno do filho, Mem Verdial, e esporadicamente, o pai, quando este se podia deslocar do Porto. Por exemplo o director de Caxias, João da Silva, informou que não autorizava que Ângela fosse visitada pela sua prima, Natália David, pois que não era afecta à situação e trabalhava no escritório do advogado de presos políticos, Heliodoro Caldeira.

Segundo o processo da PIDE, «pela atitude» que Ângela tomava nos interrogatórios, se verificava que estava «cumprindo a “ordem” que o “PCP” impõe a todos os seus “militantes” de nada revelarem à Polícia, quando presos». Esclarecida «que a manter tal atitude prejudica(va) grandemente as investigações em curso e o consequente apuramento da verdade» e, «mais uma vez instada» para que revelasse «toda a sua acção como “funcionária” daquela organização secreta e subversiva», respondeu que não tinha declarações a prestar àquela polícia e recusava a assinar os autos. A PIDE concluiu que a recusa dela em descrever e confessar as suas actividades, só confirmava tratar-se de uma «funcionária» da «associação secreta» denominada PCP.

Além de ser arguida no processo 89/53, por ser funcionária do PCP, Ângela foi ainda acusada de fazer parte, com outros doze militantes comunistas presos, da organização prisional do PCP, em Caxias, após lhes serem apreendidos documentos. Apenas foi julgada e condenada, em 23 de Julho de 1957, a quatro anos de pena maior e medidas de segurança, pena da qual interpôs recurso, mas que foi confirmada pelo Supremo Tribunal. A seguir a Fernanda Paiva Tomás, foi a segunda mulher mais tempo presa por motivos políticos, dado que só foi libertada condicionalmente, nove anos depois de ter sido detida, ou seja, em 31 de Março de 1962. Esteve dois anos à espera de julgamento, quatro depois do julgamento e mais três anos de medidas de segurança.

Em Caxias, Ângela Vidal Campos foi castigada, doze vezes, entre 1953 e 1962, pelas mais variadas razões: «por cantar, porque se respondeu “assim” ou “assado”, porque se escreveu uma carta a protestar e por aí fora». Em Abril de 1956, o seu pai protestou por a filha, presa havia três anos sem julgamento, ter sido castigada com a privação de visitas, de correspondência e de receber lanche durante sessenta dias. A PIDE respondeu a essas instâncias, argumentando que ela era mal comportada, tendo já sido punida sete vezes e que estava então a cumprir dois meses de prisão em cela disciplinar, por ter arrombado a porta da sala e provocado alarido, juntamente com duas detidas.

Em 1959, com febres altas, uma colite, perturbações das vias biliares, do coração e do fígado, bem como com uma descalcificação e uma depressão, a própria Ângela queixou-se ao tribunal plenário, de que lhe eram negados dieta e tratamento, dando conta que, segundo a Junta médica que a havia observado, ela deveria ser libertada ou ser hospitalizada. Nada aconteceu e, em Novembro de 1960, foi a vez de sete advogados do Porto, Armando Bacelar, Mário e Carlos Cal Brandão, António Macedo, Taveira da Costa, Araújo Correia e Sousa e Castro, requereram ao Tribunal Plenário a documentação necessária para apresentar à ONU o caso de Maria Ângela Vidal, gravemente doente, presa havia mais de sete anos, embora tivesse sido condenada a três anos e meio de prisão. A resposta do Plenário foi a prisão desses sete juristas, pela PIDE.

Depois, devido à fuga de Carlos Costa, com o qual se tinha entretanto casado, a sua situação, como a de qualquer companheira ou mulher de fugitivo, piorou, pois a PIDE passou a alegar que, se fosse solta, juntar-se-lhe-ia, ingressando novamente na vida clandestina, ao serviço do PCP. Perante novo pedido de liberdade condicional, em 12 de Fevereiro de 1962, embora afirmasse que Carlos Costa tinha entretanto sido capturado e que a sua saúde precária não lhe possibilitaria o regresso à vida clandestina, a PIDE continuou a considerá-la uma reclusa indomável. Além deste, outro argumento, para que não fosse libertada, prendia-se com o facto de a sua família estar sempre a solicitar a sua libertação condicional, revelador, segundo essa polícia, de que estava a cumprir «ordens do PCP». Foi apenas libertada condicionalmente (ficando durante três anos com residência fixa), em Março de 1962, nove anos após a sua detenção.

Em 1964, Ângela Vidal e Campos rompeu com o PCP, devido a uma acumulação de factos que já vinham desde o XX Congresso do PCUS (1956) e da insurreição de Budapeste, em Outubro desse ano. Segundo disse Ângela, numa entrevista, teve de sair desse partido, revoltada com os métodos e a prática política do PCP, bem como com o afastamento de militantes, acusados dos piores crimes só porque discordavam desse partido. «Também e fundamentalmente» – disse - porque o PCP «permaneceu estalinista». Ela própria sofreria com esse rompimento, vindo a ser ostracizada por muitos dos seus antigos camaradas.

Um toque pessoal

Conheci Ângela Vidal e Campos pouco antes do 25 de Abril de 1974 e compartilhei com ela, e outros, jantaradas e mesmo idas ao Fado vadio.
Após o 25 de Abril, creio que pertenceu à comissão de trabalhadores da Clínica de Santa Cruz, onde trabalhava e era muito activa social e politicamente.
Admirei-a e gostei muito da sua personalidade firme, fraterna e solidária, e sobretudo do seu sentido de liberdade. Tinha opiniões próprias sem necessidade de cartilhas, em tempos de estalinismo, maoismo e outros dogmas. Depois, não a vi durante anos, até que a reencontrei várias vezes, a passear o seu cão, na Rua da Escola Politécnica, onde vivia, com dificuldades económicas e problemas graves de saúde, muitos deles devido à longa estadia na prisão. Em conversa sobre a indemnização legal que deveria, segundo eu, solicitar ao Estado português pelo tempo que esteve presa e clandestina, disse-me que nada tinha feito nesse sentido, mas que se o fizesse apenas pediria relativamente aos anos de prisão, dado que a ida para a clandestinidade tinha sido uma opção sua, voluntária e livre.
Assim era Ângela Vidal e Campos, cuja voz ouvi pela última vez ao telefone, quando me contactou para dizer que estava totalmente de acordo comigo relativamente a um artigo que eu tinha escrito dias antes a condenar a invasão do Iraque, por Georges W. Bush. Pouco tempo depois, em 14 de Março de 2004, tive a tristeza de saber que ela tinha falecido. No funeral e cremação no Cemitério do Alto de S. João, estavam alguns amigos e ninguém do PCP.
Dediquei-lhe, assim como a Fernanda Paiva Tomás, a minha tese de doutoramento, sobre a PIDE/DGS, que ela já não pôde ler, com muita pena minha, pois era uma das pessoas cuja opinião eu mais desejava ter tido.


Fontes e Bibliografia:
Arquivo da PIDE/DGS - pr. 89/53, Rolando dos Santos Verdial, Carlos Campos Rodrigues da Costa e Maria Ângela Vidal e Campos; pr. pr. 232 GT, Ângela Vidal e Campos.
Conversas de Inverno, coord. António Melo, Isabel do Carmo, Lisboa, Biblioteca-Museu República e Resistência, Público, Ler Devagar, Dezembro 2001.
09.Set.2008