5.10.12

John Locke: o direito de resistir à tirania




John Locke: o direito de resistir à tirania

A citação de Thomas Jefferson (Declaração de Independência dos EUA, 1776), feita por
José Gomes André, no blogue «Delito de Opinião» (08.09.12), levou-me a reler parte dos Dois Tratados sobre o Governo (1689), de John Locke (1632-1704), filósofo que os actuais neo-liberais tanto gostam de citar (está em inglês, porque não encontrei uma boa tradução portuguesa).

«Whenever the power that is put in any hands for the government of the people, and the protection of our properties, is applied to other ends, and made use of to impoverish, harass or subdue them to the arbitrary and irregular commands of those that have it; there it presently becomes tyranny, whether those that thus use it are one or many». (Second Treatise, Chapter 18).

«But if a long train of abuses, prevarications and artifices, all tending the same way, make the design visible to the people, and they cannot but feel, what they lie under, and whither they are going, 'tis not to be wondered, that they should then rouse themselves, and endeavour to put the rule into such hands, which may secure to them the ends for which government was at first enacted».
(Second Treatise, Chapter 19).

Para Locke, o governo civil legítimo é instituído pelo consentimento explícito dos governados, que decidem transferir para ele, por acordo, o seu direito de executar a lei de natureza e de julgar seu próprio caso. Estes são os poderes que são dados ao governo central e que legitimam a função do sistema da justiça dos governos. Todavia, a transferência dos direitos naturais para o Estado, representada pelo pacto originário, é parcial. Ao ingressar no estado civil, os indivíduos renunciam a um único direito: o de fazer justiça pelas suas próprias mãos. Conservam todos os outros, principalmente o direito à propriedade, que já nasceria perfeita no estado de natureza, fruto de uma acção natural - o trabalho -, que não dependeria do reconhecimento alheio.
Dado que, no estabelecimento do governo civil, o consentimento universal é necessário para dar forma a uma comunidade política e que uma vez concedido não pode ser retirado, alguns fazem uma leitura da comunidade política lockeana enquanto uma entidade estável. No entanto, outros observam que existe, em Locke, o direito a resistir ao governo ilegítimo. Nas circunstâncias de um governo ilegítimo, que viole a vida, a liberdade e a propriedade do povo, a rebelião é legítima. Para Locke, todo o poder político legítimo deriva somente do consentimento dos governados que confiam as suas «vidas, liberdades, e posses» à comunidade como um todo, expressa esta maioritariamente pelo seu corpo legislativo. Mas a comunidade política como um todo pode ser dissolvida (e uma nova pode ser formada) sempre que haja uma mudança fundamental nos membros da legislatura ou uma violação das leis. O soberano que, contrariando o poder supremo por ele representado, desrespeita a lei, perde o direito à obediência, «pois que não devem os membros [do corpo político] obediência senão à vontade pública da sociedade».
Locke admite assim o direito de insurreição em determinadas circunstâncias: «Se um governo subverte os fins para os quais foi criado e se ofende a lei natural, então pode ser deposto». Na visão de Locke, a possibilidade de revolução é uma das características de qualquer sociedade civil bem formada. A causa mais provável da revolução é o abuso do poder pelo próprio governo: quando a sociedade interfere erradamente nos interesses de propriedade dos cidadãos, estes têm de se proteger retirando-lhe o consentimento (Segundo Tratado, § 222). Ocorre uma usurpação quando alguém se apodera pela força daquilo a que outro tem direito ou prejudica o bem público. Quando são cometidos grandes erros na governação de uma comunidade, só a rebelião mantém uma promessa de restauração dos direitos fundamentais (Segundo Tratado, § 225).
Quem é o juiz disso quando tal ocorre? Só o povo pode decidir, segundo Locke, pois que a existência mesmo da ordem civil depende do seu consentimento (Segundo Tratado, § 240). Locke conclui que, «se em alguns casos é permitido resistir, nem toda resistência aos príncipes é rebelião», sendo por isso muito importante saber quando é lícito desobedecer. O direito de resistência não constitui perigo para os governantes justos e numa sociedade civil política justa, não é possível que um ou mais homens perturbem um governo se o interesse colectivo não estiver em risco. Só quando os malefícios da tirania atingem a maioria da sociedade, então existe o direito à resistência contra a força ilegal. São os tiranos que são os verdadeiros rebeldes e, dessa forma, os malefícios que resultarem da resistência aos verdadeiros rebeldes não podem ser creditados aos defensores da própria liberdade. Se o fim do governo é o bem da humanidade, não pode haver tolerância à tirania. 

Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu



Emergência nacional, dizem eles, emergência nacional, digo eu

Ainda emocionada com a histórica manifestação de 15 de Setembro, com aquele dia maravilhoso e «límpido» em que centenas de milhares de portugueses se reencontraram uns com os outros, em que centenas de milhares em todo país saíram da solidão, tristeza e depressão, para, em conjunto, expressarem a palavra livre, sinto que também a quero expressar. Ainda comovida com a imagem de centenas de milhares de portugueses, que saíram do seu mundo individual(ista), para expressarem colectivamente a solidariedade entre gerações, entre trabalhadores da Administração Pública e do sector privado, entre empregadas e desempregados e participarem, sem divisões, num protesto comum, onde se encontravam as mais variadas opções políticas, sociais, económicas e ideológicas, tenho de novo encontrado – como muito – a palavra política. No prazo de uma semana, de dia 7 a 15 de Setembro, Portugal de certa forma mudou e, por isso, gostava de realçar alguns aspectos, entre muitos que o acontecimento histórico e a situação política actual sugerem, através de um mini-glossário que envolve, quanto a mim, palavras, algumas das quais estão ligadas:

- Alternativa(s)
- Europa
- Contrato social
- Contra-revolução ou revolução (da direita radical)

- Alternativa(s) e Europa.
Tem sido o papão do pensamento único que está no poder o facto propagandeado de que não haveria alternativas. Ora a política e a democracia são precisamente os terrenos da discussão de alternativas. Esta pseudo-ausência de alternativas acompanha-se de um total silêncio relativamente à Europa. Por isso, acho necessário que pessoas dos mais variados sectores da sociedade civil, credíveis, intervenham. Por exemplo Maria João Rodrigues, hoje, no Público, alerta: «Não acreditemos na ameaça de que se Portugal não introduzir a TSU no próximo orçamento, perderá a credibilidade internacional alcançada e o acesso à próxima fatia de financiamento externo. Há outras soluções! E no fim faz o balanço: «O que nos falta? Não o povo, que tem sido notável de bom senso e sentido de dignidade» – e digo eu, a dignidade ontem saiu à rua -. «Apenas um governo que saiba estar na Europa como parceiro responsável em vez de aluno acrítico e bem comportado». Eu diria que, para já, a alternativa é lutar contra as leis iníquas anunciadas em 7 de Setembro – foi há tão pouco tempo e tanta água já correu sob as pontes....

- Contrato social.
Este contrato social foi quebrado, porque o governo atingiu a propriedade – curioso como um governo de Direita que é visto como neo-liberal é tão estatal, para tirar aos pobres e dar aos ricos, e agride assim a propriedade individual e – que é intocável pois provém do trabalho e, portanto atingiu o que os seres humanos têm de mais precioso - a vida, a justiça e a(s) liberdade(s). Por isso, ontem a sociedade civil e política, através da manifestação de ontem está à beira de rasgar esse contrato com quem detém actualmente o poder

- Contra-revolução ou revolução da direita radical?
Ultimamente, penso que se está finalmente a perceber qual o verdadeiro plano e a real agenda política e ideológica do governo actual, do seu primeiro-ministro e ministro das Finanças, escondidos sob o guarda-chuva da Troika. Como o governo e os seus ideólogos não o expressam – e compreende-se porquê – tem sido difícil descortinar esse plano, muitas vezes escondido sob a capa da Troika, por um lado, ou sob a capa da irresponsabilidade, do erro político e de uma incapacidade de passar a mensagem, por outro lado. Se penso que todas essas características existem nos muitos novatos elementos educados na Academia e na juventude partidária que estão hoje no governo, com os quais se misturam ideólogos distantemente vindos da extrema-esquerda e mais recentemente do neo-liberalismo e do conservadorismo, também considero que já há hoje muitos indícios de que há um plano político em curso, mais vasto e global. Aproveitando, muitos deles após terem provocado a crise financeira, económica, social e política actual, trata-se de uma linha ideológica e económica que se baseia no chamado Consenso de Washington  e pretende fazer uma revolução ou contra-revolução mundial. Curiosamente, esta direita radical actual de novo tipo difere da tradicional direita radical: por exemplo, não recorre à repressão directa, não defende no imediato valores conservadores – por isso, não se preocupou em remover a legislação sobre a despenalização do IVG e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é isso que lhe interessa (para já?): curiosamente seguindo o marxismo, preocupam-se primeiro por mudar a infra-estrutura económica, e só depois se vão preocupar – sem deixarem de ter esse objectivo – com a mudança das mentalidades e a mudança do regime. A primeira etapa tem por objectivo embaratecer ao mínimo os salários, aprofundar as desigualdades sociais já existentes e proceder a uma redistribuição de riqueza, retirando-a dos trabalhadores e do Estado social, e colocando-o nas mega-empresas. Pelo caminho, o objectivo de fabricar um «homem novo» e mudar a «mentalidade» - regenerar? – dos portugueses já está a ser iniciado, tentando amedrontar e instilar uma passividade política e social.

O contributo da História
Penso de facto que, tal como Daniel Oliveira e Pedro Marques Lopes aventaram, poderá estar em curso uma (contra-)revolução da direita radical com o objectivo de criar revolucionariamente um «Homem Novo» português. Claro que este projecto é uma utopia e pouco importa se esse «homem novo» almejado seja na realidade aquele homem muito «velho» – de espinha dobrada, com chapéu na mão a pedir pão, silenciado e silencioso -, a obedecer porque deve ao «homem novo», que manda porque pode (Salazar: «Manda em pode, obedece quem deve!). 
Tentando não cair em comparações simplistas e abusivas ou em anacronismo vou-me socorrer da História do Século XX. Ora, como todos sabem, nos anos 20 e 30 desse século houve uma tremenda crise financeira (1929), que se transformou em crise económica, social e política. Dessa chamada «crise política do demo-liberalismo» surgiram respostas diferentes no espectro político europeu – por um lado, as soluções social-democrata/socialista ou marxista-leninista da ditadura do proletariado e, por outro lado, a solução do recurso a ditaduras de extrema-direita de terceira via. Apesar das diferenças existentes entre elas - por exemplo, entre o nacional-socialismo alemão, o fascismo italiano e o autoritarismo salazarista - todas elas foram ditaduras de partido único que proibiram a greve e os sindicatos livres, os partidos políticos, recorreram à censura e à repressão violenta para eliminar os adversários – à cabeça dos quais se contavam os comunistas - e, com o objectivo de eliminarem a tão odiada luta de classes, aspiravam a um corporativismo de patrões e assalariados que colaborariam entre si a favor do «Bem comum». No caso do Portugal salazarista, a formação da ditadura, ou do chamado Estado «Novo», iniciou-se, como diziam os ideólogos do regime, pela «revolução legal» - promulgação de uma nova Constituição (1933) c criação de novas instituições de repressão, censura e propaganda, bem como lançamento de uma legislação corporativa. Depois da «revolução legal», como diziam os ideólogos salazaristas, faltava criar a «revolução mental» - aquela que modificasse a mentalidade dos portugueses, criando «homens novos e «mulheres novas» adaptados aos propósitos do novo regime. E foi então que entrou em actuação, em 1936, o ministro da Educação Nacional, que «regenerou» a educação «nacional» e criou a Mocidade Portuguesa

Ora, apesar de ter em conta que passaram cem anos, neste início dos anos dez do século XXI, considero que há um propósito que se assemelha a este em Portugal e que poderá estar ligado a uma vontade de criar um novo regime, em que somente as etapas se inverteram. Penso que, aproveitando, como nos anos vinte, a crise, o actual governo optou por modificar economicamente as condições de vida dos portugueses, empobrecendo-os e começando a criar uma nova mentalidade, para depois, com a cumplicidade silenciosa e obediente, proceder então à revolução «legal», eliminando a incomodativa Constituição de 1976, e erguendo um novo regime. Em democracia, este propósito de empobrecimento generalizado e destruição da classe média – sustentáculo da mesma democracia – não é possível. Por isso, a prazo, esse regime política e as suas instituições teriam a prazo de ser eliminados.
 Para isso, em democracia – com a que apesar de tudo existe, em termos de instituições, e de opinião pública não amordaçada mas conveniente e assinaladamente controlada – há que ter cumplicidades fortes, uma das quais é a desmobilização cívica e política dos cidadãos. Por isso, a estratégia tem sido e é, de forma simplista e populista:
- arranjar de forma expedita culpados – os governos desde 25 de Abril, os portugueses por terem gasto mais do que tinham, etc… - e surgir como a única alternativa, qual vanguarda impoluta que vai colocar tudo nos eixos, cortando no património, liberdade de pensar e na própria dignidade dos portugueses
- mostrar que o actual estado das coisas é de emergência nacional, não há dinheiro, os credores e a Europa estão fartos de nos aturar como gastadores preguiçosos, e por isso temos de passar a trabalhar mais horas e de forma mais barata, para que as empresas investam, exportem e milagrosamente haja mais trabalho. Azar, e passageiro, acreditam, que haja diminuição do consumo, fecho de empresas, desemprego e maior empobrecimento. E não venham o chefe do governo passos coelho e os seus ministros que dizerem que estão muito surpreendidos com a quebra do consumo e o aumento exponencial do desemprego. Claro que sabiam e que fizerem para que isso acontecesse. Está nos livros que para embaratecer a força do trabalho convém ter uma bolsa razoável de desempregados e empregados no fio da navalha, empobrecidos e aterrados por também caírem no desemprego.
- Com uma opinião pública aterrada, culpabilizada e responsabilizada por ter vivido acima das suas posses, silenciada, evitar-se-ia para já os meios repressivos e a ditadura aberta. Por isso, como diz o Arquitecto Siza Vieira, numa frase aparentemente paradoxal para quem vive em democracia, ter a sensação por vezes que se está a viver em ditadura.
Vou contar um episódio que me alertou já há algum tempo para o que se estava a passar. Por acaso, ouvi um jovem governante português actual dizer entre estrangeiros: o que é preciso e vamos fazê-lo é mudar a mentalidade dos portugueses.



Ora, eu penso que o plano deste governo é um plano revolucionário (no sentido filosófico de revolução, religare, aliás etimologicamente vem também a palavra religião da Direita radical destinado a (re)fazer de Portugal o que ele já foi - um país de salários miseráveis, de gente pobre, temendo o desemprego e a fome e disposto, reverente, a trabalhar por qualquer salário.
Isso foi feito, é verdade, num período completamente diferente do que se vive hoje, nos anos 20 e 30 do século XX e sei bem que há perigo de se cair em anacronismo histórico, no qual não quero cair. À época o regime escolhido foi a ditadura e o certo é que nos anos trinta esse tipo de regime, contra o que se chamava a decadência e falência do regime democrático liberal do pós-Grande Guerra (1914/18). Para cumprir esse objectivo, havia que proibir a greve e acabar com os sindicatos livres, os partidos, através de um aparelho de repressão política e um aparelho de Censura. Em Portugal, como na Itália fascista e noutros países, a ideologia era a corporativa, que, ao mesmo tempo que combatia a «plutocracia» liberal, combatia também a luta de classes e o comunismo, pretendendo substituir essas duas alternativas, por uma terceira, em que corporativamente patrões e trabalhadores se juntassem à mesma mesa em prol do que se chamava «bem comum». Não ouviram ontem Vítor Gaspar referir que uma empresa era um local de colaboração?
Uma a categoria que se prende com a caracterização dos regimes antiliberais e antidemocráticos que assolaram a Europa no período entre guerras é a do mito da criação do «homem novo», que faz parte do conceito de «fascismo» mas também do dos vários «totalitarismoa», na medida em que implica uma invasão e interferência «totais» da esfera política na privada para cumprir um pretenso objectivo de «engenharia social».
Segundo a definição ideal-típica de fascismo elaborada pelo historiador Roger Griffin, há mais de vinte anos, a ideologia fascista seria um «ultranacionalismo populista palingenético», cujo mínimo denominador comum seria precisamente o mito da criação do «homem novo». Diga-se, porém, que, segundo este autor, a realidade esteve longe do ideal-tipo e que, no caso concreto de Portugal, o regime salazarista teria sido apenas «parafascista» . Prometo voltar a esse tema do homem (velho) novo

P.S. Como estive na manifestação, não vi as reportagens e várias pessoas me disseram que a RTP e os seus trabalhadores foram os que melhor cobriram a jornada, independentemente de os outros canais também terem dado o devido destaque a cobertura ao evento, mostrando como a sociedade civil e política está em todo o lado.