- No
dia 10 de Maio de 1958, o general Humberto Delgado proferiu, numa conferência
de imprensa, no Café Chave de Ouro, no centro de Lisboa, a célebre frase
segundo a qual demitiria «obviamente» Salazar, se ganhasse as eleições
presidenciais.
- A
frase incendiou o país com uma vaga de esperança que tocou muitos portugueses,
que saíram à rua no apoio ao candidato da Oposição ao regime.
- O governo de Salazar
viu-se ameaçado de cair, mas foi defendido pela PIDE e, em particular, pelo
Exército, a mando do ministro da Defesa Nacional, Fernando Santos Costa.
- A par do PCP, mas
enquanto individualidade, Humberto Delgado tornara-se o inimigo n.º 1 ide
Salazar, o qual havia que
“destruir”.
- Humberto Delgado acabou por pedir asilo político
na embaixada do Brasil e, em 20 de Abril de 1959, partiu para o exílio, onde permaneceu
sempre activo na luta contra o regime salazarista. No final de 1961, entrou
mesmo clandestinamente em Portugal, para chefiar uma tentativa de insurreição, iniciada
com a ocupação do quartel de Beja.
- Como se sabe, Humberto Delgado e a sua secretária
Arajaryr Campos foram assassinados em Los Almerines, em 13 de Fevereiro de 1965,
e o julgamento do crime só viria a ser possível, em Portugal, após 25 de Abril
de 1974, ocorrendo entre 1978 e 1981.
- Segundo o libelo acusatório do Promotor de Justiça,
Fernando da Silva Pais, Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de
Carvalho, director, subdirector e chefe dos serviços de Informação da PIDE,
teriam definido, no ano de 1962, o objectivo central de reduzir Humberto
Delgado «à não actuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto».
- O Promotor de Justiça admitia que a missão da
brigada da PIDE fosse a aniquilação física de Delgado, superiormente sancionada,
mas depois houve um choque entre duas perspectivas, a do Promotor de Justiça e
a dos juízes do 2.º Tribunal Militar Territorial. Ou seja, a do assassinato e a
do rapto.
- O desfecho foi o
acórdão de Julho de 1981, segundo o qual a polícia política apenas teria decidido o rapto e
prisão do general
- Segundo os juízes militares, «o que aconteceu em Los
Almerines teria sido fruto da impulsividade e precipitação de Casimiro Monteiro,
em flagrante desobediência aos objectivos da missão» cit..
- Com a atribuição de todas as culpas apenas a Casimiro
Monteiro, condenado à revelia a dezanove
anos e oito meses de prisão, os juízes ilibaram do crime todos os outros
membros da brigada.
- Álvaro Pereira de Carvalho – director dos serviços
de Informação da PIDE – julgado em presença, viria a ser absolvido dos crimes
relacionados com o «caso Delgado». Outro dos membros da brigada, julgado
presencialmente, Agostinho Tienza foi sentenciado a 14 meses de cadeia, por
crime de identidade falsa.
- Pelo mesmo motivo, Ernesto Lopes Ramos, que atraíra
o general à armadilha espanhola, foi sentenciado, à revelia, a 22 meses de prisão.
- Por seu lado Rosa Casaco, o chefe da brigada, foi
condenado também à revelia por seis crimes de falsificação e dois crimes de
furto de documentos, a oito anos de prisão.
- Quanto a Agostinho Barbieri Cardoso e Fernando da Silva
Pais, envolvidos, segundo os juízes, numa tentativa de raptar e prender Delgado,
ficaram isentos da autoria moral do assassinato. Silva Pais tinha entretanto morrido e
Barbieri Cardoso foi condenado à revelia, por quatro crimes de falsificação, a quatro anos de prisão.
- O tribunal
afirmaria ainda que não se tinha tratado de um crime político, pois os réus
tinham actuado no cumprimento das suas funções policiais, e considerou amnistiados
ou prescritos vários crimes.
- O ministro do Interior,
Alfredo Santos Júnior, e Salazar também ficaram isentos de qualquer autoria do
crime.
- Ainda hoje o que
se passou realmente em Los Almerines é motivo de debate, mas certo é que foram
ali assassinados Humberto Delgado e Arajaryr Campos, por uma brigada da PIDE.
- Colocam-se
algumas perguntas:
- Que papel tiveram os vários elementos da PIDE, Silva
Pais, Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho, e os elementos da brigada assassina,
na decisão sobre o tipo de opção tomada e foi esta de que haveria rapto ou
assassinato? E, muito importante, que papel teve Salazar?
- Na
versão já apresentada em tribunal pela acusação privada, o próprio facto de Casimiro
Monteiro, um “homem de mão” assassino, ter sido incorporado na brigada dirigida
por António Rosa Casaco, demonstraria que o objectivo era o assassinato.
- E
Salazar conhecia o seu passado criminoso
- E já
nem falo do cal transportados numa das viaturas da brigada.
- Por
outro lado, Ernesto Lopes Ramos, um dos elementos da brigada, revelou que
Humberto Delgado ia armado e procurou defender-se, ao ser fisicamente manietado
por Casimiro Monteiro.
- Numa
entrevista, dada no Brasil, onde se exilou, em 1998, reafirmou que o general
estava sempre armado, assim acontecendo em Los Almerines.
- Ora,
seria por isso expectável para a PIDE, que, ao saber ter caído numa armadilha, o
general reagiria possivelmente a tiro.
- Quanto
ao papel de Salazar no assassinato de Humberto Delgado, há interpretações
diferentes, na ausência de documentação que o poderia esclarecer
- Em
tribunal e fora dele, os elementos da PIDE e os seus defensores,
bem como do ditador aventaram a hipótese de que Salazar não teria interesse na
morte de Delgado, o qual já não constituiria para ele uma ameaça política, pois
estaria isolado no seio da
oposição ao regime salazarista.
-
Pergunto: e o rapto com detenção do general e seu posterior julgamento em
Portugal não representaria um perigo ainda maior, pelo seu impacto nacional e
internacional?
- Parece aliás que essa escolha foi feita pela
própria PIDE.
- Após o 25 de Abril, foram
descobertos por elementos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, Alfredo Caldeira
e Fernando Oneto, relatórios dessa polícia política, acerca da Operação Outono,
onde se dava conta do perigo real da organização revolucionária, chefiada por
Delgado, que juntava portugueses e espanhóis. Num deles, datado de 1962,
podia-se ler:
«Só uma saída
se vê para que ele (o movimento revolucionário) não nos traga dissabores – ou a
eliminação científica dos responsáveis, como processo de intimidação, ou então
a repressão que nunca é uma maneira eficaz de evitar que no futuro eles voltem
à acção». Assassinato, e não rapto com prisão.
- Pode-se
também alegar que, pelo menos, a PIDE continuava a
encarar o general como um adversário perigoso, que devia ser “neutralizado”.
- Mas, quanto a mim, também era esse o caso
do ditador, que nunca esqueceu as eleições de 1958 e sabia, pela tentativa de
Beja, que Humberto Delgado não deixaria de actuar, pelas armas, contra o
regime.
- A “neutralização” do general – signifique
isso o que significava – era portanto um objectivo também expectável da parte
de Salazar.
- É provável que não tivesse sido este a lançar a
«operação Outono», e que terá sabido da mesma quase na véspera do crime.
- O
próprio Silva Pais diria que, inteirado por este da ida de uma brigada a
Espanha, teria então aprovado tacitamente essa actuação, limitando-se a dizer:
«Tenham muito cuidado.»
xxxxx
- Na
caracterização histórica de um regime, quando faltam documentos e se tem de
preencher as lacunas, deve-se analisar o que este fazia habitualmente, sem
descartar porém a possibilidade de ter havido acções excepcionais.
- E, exceptuando
nos teatros de guerra colonial, a partir de 1961, que são verdadeiramente outros
casos e outra história, é um facto que, a partir de 1945, houve uma diminuição das mortes
às mãos da polícia política.
- Mesmo assim, a PIDE foi responsável pelas mortes, nos anos 50, de pelo
menos 9 presos políticos comunistas e, já na fase “marcelista”, pelas de um elemento da LUAR e outro do MRPP.
- Também
não pretendo aqui desenvolver a eventual ligação
internacional do «caso Delgado», mas deve-se lembrar que se vivia então em
plena guerra fria e que governos e serviços secretos ocidentais também poderiam
ter interesse na “neutralização” do general, como aconteceu com outros
adversários políticos de regimes ditatoriais ou até democráticos.
- Recorde-se, por exemplo, o “desaparecimento” em Paris, em 29 de
Outubro do mesmo ano de 1965, de Mehdi
Ben Barka, opositor marroquino a Hassan II.
- Esta pista internacional
está por explocar, como aliás diz num dossier
hoje mesmo publicado da Visão História,
o juiz conselheiro António Santos Carvalho, que investigou o caso Delgado.
- No entanto, é verdade que, em Portugal, a regra não era matar adversários políticos, para não provocar ondas no
mundo ocidental,
onde o País estava perfeitamente inserido internacionalmente, no âmbito da NATO e até da ONU.
- Além
disso, tinha outras formas de neutralizar opositores, como, por exemplo,
através das medidas de segurança.
- Ou
seja, o assassinato de Humberto Delgado parecia não ter precedentes.
- Mas já
a deslocação a Espanha, para raptar (ou matar) adversários políticos foi
ensaiada pela PIDE, e sempre com a presença de Rosa Casaco.
- Germano
Pedro, um dos participantes do “golpe de Beja”, que conseguiu fugir para
Marrocos, foi atraído Algeciras, onde foi preso pela Seguridad espanhola,
que o entregou a António Rosa Casaco.
- De
novo, em Abril de 1964, este último, acompanhado por José Gonçalves, tentou
raptar (ou matar), em Espanha, Manuel Tito de Morais, exilado na Argélia, que um
informador (Ferreira da Silva) tentou atrair para Sevilha.
- O rapto
acabou por falhar, porque Tito de Morais não apareceu e os raptores tiveram um
acidente de automóvel à saída de Zafra, ficando José Gonçalves e Rosa Casaco gravemente
feridos. Este contaria ter sido Barbieri Cardoso a ordenar essa operação.
- Não sei
o que pensaram Salazar e a PIDE, nem se a «operação Outono»
foi pensada como um rapto ou como um assassinato – o que objectivamente foi.
- Agora, o que me parece muito pouco
provável, devido à caracterização que faço do regime salazarista e o que se
conhece do relacionamento entre o ditador e a PIDE, é, que esta polícia não
tivesse submetido o seu plano, a Salazar e que este nada tivesse ordenado.
- É que, contrariamente ao que se possa
pensar, a PIDE não actuava de forma autónoma, nem era «um Estado dentro do
Estado».
- Era, sim, um dos principais instrumentos
do próprio ditador, que aliás ia a
“despacho” individualmente com os directores da PIDE.
- Para tentar interpretar o papel de
Salazar na «operação Outono», recorre-se aqui, com as devidas precauções, à
interpretação de Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler, onde o historiador mostra
que, no Estado nazi, com múltiplas instâncias de decisão, o Führer estava longe de controlar
tudo o que acontecia, embora fosse ele que tomava as decisões-chave em momentos
cruciais.
- Mas não necessitava de delinear, do
princípio ao fim, todas as suas decisões políticas, já que, rivalizando até
entre si, os seus apaniguados ansiavam por concretizar a sua vontade.
- Interpretando os desejos de Hitler,
levavam-nos à prática, «trabalhando no sentido que o Führer desejava» (working
towards the Führer).
- Com as devidas distâncias e diferenças
entre os regimes, português e alemão, até porque o Estado Novo era mais
centralizado nas mãos de Salazar, que o regime nacional-socialista, pode-se afirmar
que, para “solucionar” o caso Delgado, a direcção da PIDE terá «trabalhado no
sentido dos desejos de Salazar».
- Isto é, terá interpretado a vontade do
ditador, ao querer «neutralizar» o seu adversário político, tomando uma decisão
sobre o que fazer relativamente a Humberto Delgado, assassinando-o, bem como a
Arajaryr Campos.