15.2.15

Intervenção oral na sessão do cinema S.Jorge em 13 de fevereiro de 2015 (50 anos do assassinato de Humberto Delgado)


- No dia 10 de Maio de 1958, o general Humberto Delgado proferiu, numa conferência de imprensa, no Café Chave de Ouro, no centro de Lisboa, a célebre frase segundo a qual demitiria «obviamente» Salazar, se ganhasse as eleições presidenciais.
- A frase incendiou o país com uma vaga de esperança que tocou muitos portugueses, que saíram à rua no apoio ao candidato da Oposição ao regime.
- O governo de Salazar viu-se ameaçado de cair, mas foi defendido pela PIDE e, em particular, pelo Exército, a mando do ministro da Defesa Nacional, Fernando Santos Costa.
- A par do PCP, mas enquanto individualidade, Humberto Delgado tornara-se o inimigo n.º 1 ide Salazar, o qual havia que “destruir”.
- Humberto Delgado acabou por pedir asilo político na embaixada do Brasil e, em 20 de Abril de 1959, partiu para o exílio, onde permaneceu sempre activo na luta contra o regime salazarista. No final de 1961, entrou mesmo clandestinamente em Portugal, para chefiar uma tentativa de insurreição, iniciada com a ocupação do quartel de Beja.
- Como se sabe, Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos foram assassinados em Los Almerines, em 13 de Fevereiro de 1965, e o julgamento do crime só viria a ser possível, em Portugal, após 25 de Abril de 1974, ocorrendo entre 1978 e 1981.
- Segundo o libelo acusatório do Promotor de Justiça, Fernando da Silva Pais, Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, director, subdirector e chefe dos serviços de Informação da PIDE, teriam definido, no ano de 1962, o objectivo central de reduzir Humberto Delgado «à não actuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto».
- O Promotor de Justiça admitia que a missão da brigada da PIDE fosse a aniquilação física de Delgado, superiormente sancionada, mas depois houve um choque entre duas perspectivas, a do Promotor de Justiça e a dos juízes do 2.º Tribunal Militar Territorial. Ou seja, a do assassinato e a do rapto.
- O desfecho foi o acórdão de Julho de 1981, segundo o qual a polícia política apenas teria decidido o rapto e prisão do general
- Segundo os juízes militares, «o que aconteceu em Los Almerines teria sido fruto da impulsividade e precipitação de Casimiro Monteiro, em flagrante desobediência aos objectivos da missão» cit..
- Com a atribuição de todas as culpas apenas a Casimiro Monteiro, condenado à revelia a dezanove anos e oito meses de prisão, os juízes ilibaram do crime todos os outros membros da brigada.
- Álvaro Pereira de Carvalho – director dos serviços de Informação da PIDE – julgado em presença, viria a ser absolvido dos crimes relacionados com o «caso Delgado». Outro dos membros da brigada, julgado presencialmente, Agostinho Tienza foi sentenciado a 14 meses de cadeia, por crime de identidade falsa.
- Pelo mesmo motivo, Ernesto Lopes Ramos, que atraíra o general à armadilha espanhola, foi sentenciado, à revelia, a 22 meses de prisão.
- Por seu lado Rosa Casaco, o chefe da brigada, foi condenado também à revelia por seis crimes de falsificação e dois crimes de furto de documentos, a oito anos de prisão.
- Quanto a Agostinho Barbieri Cardoso e Fernando da Silva Pais, envolvidos, segundo os juízes, numa tentativa de raptar e prender Delgado, ficaram isentos da autoria moral do assassinato. Silva Pais tinha entretanto morrido e Barbieri Cardoso foi condenado à revelia, por quatro crimes de falsificação, a quatro anos de prisão.
- O tribunal afirmaria ainda que não se tinha tratado de um crime político, pois os réus tinham actuado no cumprimento das suas funções policiais, e considerou amnistiados ou prescritos vários crimes.
- O ministro do Interior, Alfredo Santos Júnior, e Salazar também ficaram isentos de qualquer autoria do crime.

- Ainda hoje o que se passou realmente em Los Almerines é motivo de debate, mas certo é que foram ali assassinados Humberto Delgado e Arajaryr Campos, por uma brigada da PIDE.
- Colocam-se algumas perguntas:
- Que papel tiveram os vários elementos da PIDE, Silva Pais, Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho, e os elementos da brigada assassina, na decisão sobre o tipo de opção tomada e foi esta de que haveria rapto ou assassinato? E, muito importante, que papel teve Salazar?
- Na versão já apresentada em tribunal pela acusação privada, o próprio facto de Casimiro Monteiro, um “homem de mão” assassino, ter sido incorporado na brigada dirigida por António Rosa Casaco, demonstraria que o objectivo era o assassinato.
- E Salazar conhecia o seu passado criminoso
- E já nem falo do cal transportados numa das viaturas da brigada.
- Por outro lado, Ernesto Lopes Ramos, um dos elementos da brigada, revelou que Humberto Delgado ia armado e procurou defender-se, ao ser fisicamente manietado por Casimiro Monteiro.
- Numa entrevista, dada no Brasil, onde se exilou, em 1998, reafirmou que o general estava sempre armado, assim acontecendo em Los Almerines.
- Ora, seria por isso expectável para a PIDE, que, ao saber ter caído numa armadilha, o general reagiria possivelmente a tiro.

- Quanto ao papel de Salazar no assassinato de Humberto Delgado, há interpretações diferentes, na ausência de documentação que o poderia esclarecer
- Em tribunal e fora dele, os elementos da PIDE e os seus defensores, bem como do ditador aventaram a hipótese de que Salazar não teria interesse na morte de Delgado, o qual já não constituiria para ele uma ameaça política, pois estaria isolado no seio da oposição ao regime salazarista.
- Pergunto: e o rapto com detenção do general e seu posterior julgamento em Portugal não representaria um perigo ainda maior, pelo seu impacto nacional e internacional?
- Parece aliás que essa escolha foi feita pela própria PIDE.
 - Após o 25 de Abril, foram descobertos por elementos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, Alfredo Caldeira e Fernando Oneto, relatórios dessa polícia política, acerca da Operação Outono, onde se dava conta do perigo real da organização revolucionária, chefiada por Delgado, que juntava portugueses e espanhóis. Num deles, datado de 1962, podia-se ler:
«Só uma saída se vê para que ele (o movimento revolucionário) não nos traga dissabores – ou a eliminação científica dos responsáveis, como processo de intimidação, ou então a repressão que nunca é uma maneira eficaz de evitar que no futuro eles voltem à acção». Assassinato, e não rapto com prisão.
- Pode-se também alegar que, pelo menos, a PIDE continuava a encarar o general como um adversário perigoso, que devia ser “neutralizado”.
- Mas, quanto a mim, também era esse o caso do ditador, que nunca esqueceu as eleições de 1958 e sabia, pela tentativa de Beja, que Humberto Delgado não deixaria de actuar, pelas armas, contra o regime.
- A “neutralização” do general – signifique isso o que significava – era portanto um objectivo também expectável da parte de Salazar.
- É provável que não tivesse sido este a lançar a «operação Outono», e que terá sabido da mesma quase na véspera do crime.
- O próprio Silva Pais diria que, inteirado por este da ida de uma brigada a Espanha, teria então aprovado tacitamente essa actuação, limitando-se a dizer: «Tenham muito cuidado.»
xxxxx
- Na caracterização histórica de um regime, quando faltam documentos e se tem de preencher as lacunas, deve-se analisar o que este fazia habitualmente, sem descartar porém a possibilidade de ter havido acções excepcionais.
- E, exceptuando nos teatros de guerra colonial, a partir de 1961, que são verdadeiramente outros casos e outra história, é um facto que, a partir de 1945, houve uma diminuição das mortes às mãos da polícia política.
- Mesmo assim, a PIDE foi responsável pelas mortes, nos anos 50, de pelo menos 9 presos políticos comunistas e, já na fase “marcelista”, pelas de um elemento da LUAR e outro do MRPP.
- Também não pretendo aqui desenvolver a eventual ligação internacional do «caso Delgado», mas deve-se lembrar que se vivia então em plena guerra fria e que governos e serviços secretos ocidentais também poderiam ter interesse na “neutralização” do general, como aconteceu com outros adversários políticos de regimes ditatoriais ou até democráticos.
- Recorde-se, por exemplo, o “desaparecimento” em Paris, em 29 de Outubro do mesmo ano de 1965, de Mehdi Ben Barka, opositor marroquino a Hassan II.
- Esta pista internacional está por explocar, como aliás diz num dossier hoje mesmo publicado da Visão História, o juiz conselheiro António Santos Carvalho, que investigou o caso Delgado.
- No entanto, é verdade que, em Portugal, a regra não era matar adversários políticos, para não provocar ondas no mundo ocidental, onde o País estava perfeitamente inserido internacionalmente, no âmbito da NATO e até da ONU.
- Além disso, tinha outras formas de neutralizar opositores, como, por exemplo, através das medidas de segurança.
- Ou seja, o assassinato de Humberto Delgado parecia não ter precedentes.
- Mas já a deslocação a Espanha, para raptar (ou matar) adversários políticos foi ensaiada pela PIDE, e sempre com a presença de Rosa Casaco.
- Germano Pedro, um dos participantes do “golpe de Beja”, que conseguiu fugir para Marrocos, foi atraído Algeciras, onde foi preso pela Seguridad espanhola, que o entregou a António Rosa Casaco.
- De novo, em Abril de 1964, este último, acompanhado por José Gonçalves, tentou raptar (ou matar), em Espanha, Manuel Tito de Morais, exilado na Argélia, que um informador (Ferreira da Silva) tentou atrair para Sevilha.
- O rapto acabou por falhar, porque Tito de Morais não apareceu e os raptores tiveram um acidente de automóvel à saída de Zafra, ficando José Gonçalves e Rosa Casaco gravemente feridos. Este contaria ter sido Barbieri Cardoso a ordenar essa operação.
- Não sei o que pensaram Salazar e a PIDE, nem se a «operação Outono» foi pensada como um rapto ou como um assassinato – o que objectivamente foi.
- Agora, o que me parece muito pouco provável, devido à caracterização que faço do regime salazarista e o que se conhece do relacionamento entre o ditador e a PIDE, é, que esta polícia não tivesse submetido o seu plano, a Salazar e que este nada tivesse ordenado.
- É que, contrariamente ao que se possa pensar, a PIDE não actuava de forma autónoma, nem era «um Estado dentro do Estado».
- Era, sim, um dos principais instrumentos do próprio ditador, que aliás  ia a “despacho” individualmente com os directores da PIDE.

- Para tentar interpretar o papel de Salazar na «operação Outono», recorre-se aqui, com as devidas precauções, à interpretação de Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler, onde o historiador mostra que, no Estado nazi, com múltiplas instâncias de decisão, o Führer estava longe de controlar tudo o que acontecia, embora fosse ele que tomava as decisões-chave em momentos cruciais.
- Mas não necessitava de delinear, do princípio ao fim, todas as suas decisões políticas, já que, rivalizando até entre si, os seus apaniguados ansiavam por concretizar a sua vontade.
- Interpretando os desejos de Hitler, levavam-nos à prática, «trabalhando no sentido que o Führer desejava» (working towards the Führer).
- Com as devidas distâncias e diferenças entre os regimes, português e alemão, até porque o Estado Novo era mais centralizado nas mãos de Salazar, que o regime nacional-socialista, pode-se afirmar que, para “solucionar” o caso Delgado, a direcção da PIDE terá «trabalhado no sentido dos desejos de Salazar».
- Isto é, terá interpretado a vontade do ditador, ao querer «neutralizar» o seu adversário político, tomando uma decisão sobre o que fazer relativamente a Humberto Delgado, assassinando-o, bem como a Arajaryr Campos.