10.10.11

«Sangue do meu Sangue», de João Canijo | Obra-prima, cinema, cinema, carapaus e gente. E actores.


Façam o favor de não perderem este filme
Maravilha. Maravilhada, foi como saí da sala de cinema, depois de ter assistido ao magnífico filme de João Canijo, «Sangue do meu sangue». Não, nunca é dita essa frase, e tem tudo a ver com isso. O amor, incondicional. Mas também tem a ver com, finalmente, vermos um almoço com salada de alface, tomate, e cebola e carapaus, porque as sardinhas… Almoço que corre mal, como muito corre mal, no seio de um quotidiano que nem sempre é mau. É quotidiano. Claro que ninguém comeu os carapaus, embrulhados em «glad-paper», de forma arrumada por Márcia. O filme está aliás recheado de arrumação, de vida na cozinha, sopas várias, de gente à volta da mesa, de mulheres a cortar cebola, sempre a trabalhar, a perguntar se havia chocos na praça.
Da sala de cinema cheia, os espectadores saíram calados, num silêncio admirativo, concordante, assertivo, maravilhado. Depois, deve acontecer-lhes como a mim me aconteceu. Não parei de falar do filme, das cenas, da linguagem do que cada um viu, intuiu ou ouviu. Nunca se sabe o que se deve seguir: a cena principal ou aquele que se ouve, vê de relance, se intui. Sim, porque há escolhas a fazer pelo espectador. Entre ouvir a televisão (que poucos vêem, curiosamente, a não ser o jovem João Carlos, porque a vida dos outros é absorvente), sempre aberta – a transmitir futebol ou telenovela ou pornografia, ou o noticiário, em casa do Senhor Dr. Mas o espectador também tem à escolha entre ver o que o filme mostra, em primeiro plano (?), ou nos vários planos laterais, superiores ou inferiores.
O filme mostra a pluralidade de Lisboa, duas das várias Lisboas, com uma incursão por um café, do centro. Uma Lisboa, onde, no café, e fora dele, há diversas cenas, todas lisboetas. Lisboa privilegiada, estragada, separada e cada vez mais pobre e selvática. Sim, porque o bairro Padre Cruz é tão melhor do que o outro bairro, africano, labiríntico de onde não se sai, mas também do hip hop e do gaffitti talentosos. Uma Lisboa, onde há alguma mobilidade social - o Senhor Dr. veio do Padre Cruz, mas já não fala como os outros, mas também Cláudia (na faculdade) e a Márcia não falam como o João Carlos e a Ivete. O que será a visualização deste filme no Bairro Padre Cruz, ou noutro bairro periférico?
Numa breve passagem pela «net», vi que o Expresso “contava” a história” desta forma: «Rita Blanco surge como a mãe de uma rapariga que se envolve com um homem casado de uma classe superior». Ok. Está bem. A história é telenevolesca, da vida trata, porque a telenovela vai buscar à vida. Porque a Fedra, a Oresteia, Édipo Rei tratam da vida. A história é uma tragédia grega, queirosiana, neo-realista
E os actores, que maravilhosos, todos sem excepção? E a direcção de actores (não por acaso, o argumento e os diálogos são assinados por actores no genérico final). O filme é um autêntico festival de cinema, com influências do «método», de John Cassavetes ou Mike Leigh (de que o realizador tanto gosta), mas também de outros. Eu lembrei-me de Ettore Scola. Por falta de espaço não refiro nenhuma personagem em particular, pois todos são maravilhosos, de uma densidade e de uma maturidade que eu achava que o cinema português não conseguia atingir. Enganei-me e que contente estou por me ter enganado.
A mãe Márcia (la mamma, a estrutura vertebral daquela gente toda, disposta a tudo fazer pela filha), a filha Cláudia (linda sardenta, apaixonada, desiludida, precoce e adulta à força), o filho João Carlos (com olheiras, que nada faz a não ser criticar o modo como os carapaus estão assados, vocacionado para ser um pequeno bandido com a prisão como futuro, mas justiceiro), a tia Ivete (que personagem, linda, preocupada com a beleza a definhar, ouvindo as vizinhas, dando e sacrificando-se,mas revoltando-se na cena mais terrível do filme, o cancro mama), o namorado da filha César (digno, segurança no supermercado, talentoso (?), o amante da filha, o Senhor Dr. (na realidade, Beto), o namorado da mãe Hélder (Nini, chega aqui!), e o traficante (o único totalmente sinistro), será que tinha nome? O Sr. Dr. também só tinha nome quando vivia no bairro Padre Cruz.
Pois tudo parte desse bairro e de um zoom da casa da família ou dos que lá entram porque são da “família” enquanto são da família. Fala-se, grita-se, pouco se chora, a não ser o espectador, naquela cena extraordinária da mãe com a filha. A mim aconteceu-me. Há muito não me tinha emocionado tanto. O filme mostra o amor incondicional (lembrei-me do controverso, mas também maravilhoso filme de Mike Leigh) da mãe pela filha, da tua pelo sobrinho, mas também do «Nini». Aquele que no fim só traz uma pequena embalagem de leite, porque a Márcia nada mais pediu.
Muito haveria a dizer, mas um filme é para ser visto e é de cada um, quando é um grande filme como este é. Cinema puro, de grande planos, que convoca permanentemente o nosso voyeurismo sobre a vida de gente que sofre, que está indefesa perante a adversidade, mas sistematicamente a e continua. E o filme convoca também a emoção, pura. Que saudades daquelas pessoas todas. Quero vê-las de novo. Quero ver o filme de novo. Trata-se de uma obra-prima. Não tenho dúvida que vai ficar na história do cinema, e não só do cinema português.
Ficha Técnica: Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo
Produtor: Pedro Borges
Ano: 2011
Género: Drama Duração: 140′
Elenco: Rita Blanco (Márcia Fialho)
Anabela Moreira (Ivete Fialho)
Cleia Almeida (Claúdia Filipa Fialho)
Rafael Morais (Joca Fialho)
Marcello Urgeghe (Alberto Vieira)
Nuno Lopes (Telmo Sobral)
Beatriz Batarda (Maria da Luz)
Fernando Luís (Hélder/Nini)
Teresa Madruga (Dona Judite)
Teresa Tavares (Sandra Vanessa)
Francisco Tavares (César Chaves)
Wilma de Brito (Érica)