19.4.10

Biografia de Cerejeira, mostra razões estratégicas por trás da relação com Salazar

Cardeal Cerejeira (Antena 1 e tvi24)



tvi24

O Tribunal Plenário, instrumento de justiça política do Estado Novo*


Terminada a II Guerra Mundial, António de Oliveira Salazar prometeu eleições «livres como na livre Inglaterra» e assegurou que uma série de decretos iriam «suprimir o regime excepcional sobre a segurança do Estado e garantir de modo efectivo a liberdade dos cidadãos contra a eventualidade de prisões arbitrárias». Usando essa mesma lógica, o governo mudou também o nome de algumas das suas instituições mais conotadas com os regimes fascista e nacional-socialista, entre os quais se contaram o das polícias criminal – PIC - e política – PVDE -, e “civilizou” os Tribunais Militares Especiais, que julgavam os “crimes” políticos, até 1945.

A criação dos tribunais plenários, da PJ e da PIDE. 1945.

Entre outros diplomas promulgados nesse ano que se referiam ao processo de Justiça, contou-se o DL nº 35 044 de 20 de Outubro de 1945 extinguiu o Tribunal Militar Especial (artigo 41.º) e transferiu os processos dele pendentes para um Plenário do Tribunal Criminal (artigo 13.º), de composição civil. O diploma instituiu, nas comarcas de Lisboa e Porto, um tribunal criminal, um tribunal correccional e um tribunal de polícia, fixando uma forma especial de funcionamento do tribunal criminal enquanto tribunal plenário (TP).

O TP tinha competência para julgar todos os crimes contra a segurança exterior e interior do Estado e os de responsabilidade ministerial, os crimes de imprensa, bem como os crimes de açambarcamento, especulação e contra a economia nacional. Ocupava-se ainda dos processos de querela quando, «em virtude da sua importância» a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, sob proposta da Procuradoria-Geral da República, mandasse avocar o seu julgamento ao tribunal plenário. Pelos TP, eram também julgados os crimes de imprensa cometidos nas comarcas de Lisboa e do Porto, enquanto no resto do país eram julgados pelos tribunais comuns.

Das decisões do TP cabia recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, mas este só conhecia «questões de Direito, pelo que o recurso perdia, por essa razão, parte do seu alcance». Diga-se porém que, ao longo dos anos, os presos políticos e seus advogados foram desaconselhados a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, composto por cinco juízes também da escolha do Ministro da Justiça, pois que a maior parte das vezes as suas penas foram, por ele, agravadas. Das decisões do juiz instrutor dos juízos criminais sobre liberdade provisória e sobre o despacho de pronúncia ou equivalente cabia reclamação para… o próprio tribunal plenário.

É certo que, em 10 de Outubro de 1945, tinha sido institucionalizado, pelo DL n.º 35 043, o pedido excepcional de habeas corpus, contra o abuso do poder, que a Constituição já previa em 1933, mas a polícia política desrespeitava frequentemente a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Também datado de 20 de Outubro de 1945, o DL n.º 35 042, que criou a PJ em substituição da PIC, atribuiu a este organismo policial, a investigação dos crimes, a instrução preparatória dos respectivos processos e a organização da prevenção da criminalidade.

As funções que a lei atribuía ao juiz durante a instrução preparatória, relativamente à libertação ou manutenção da prisão dos arguidos e à aplicação provisória de medidas de segurança, passaram a ser desempenhadas pelo director e pelos subdirectores da PJ. Esse diploma colocava a PJ na dependência do ministério da Justiça, acrescentando, com uma referência a uma próxima mudança na polícia política, que a futura a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) ficava, por seu lado, sob tutela do ministério do Interior. Esclarecia que incumbia a esta, «quanto ao objecto da sua competência os mesmos poderes e funções» atribuídos à PJ.

Dois dias depois, o DL nº 35 046, de 22 de Outubro, extinguiu a PVDE, criando em seu lugar a PIDE. Subordinada ao governo, por via do ministério do Interior, esta centralizava todos os organismos com funções de prevenção e repressão política dos crimes contra a segurança interna e externa do Estado. A PIDE conservou, da antecessora, Poliícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a instrução preparatória dos processos respeitantes a esses, nas comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra. Ficaria ainda, como se verá, com a capacidade de determinar, com quase total independência, o regime de prisão preventiva e para propor a aplicação de medidas de defesa previstas no art.º 175 do Código Penal e vigiar indivíduos a elas sujeitos, mesmo se estes estivessem entregues à supervisão do ministro da Justiça.

A este ministério, foram entregues, até ao fim do ano de 1945, através do mesmo diploma n.º 35.046, de 22 de Outubro, transferidos, do ministério do Interior, a colónia penal do Tarrafal/Cabo Verde e o forte de Peniche, presídios que passaram a ser dirigidos por intermédio do Conselho Superior dos Serviços Criminais. As cadeias do Aljube e do forte de Caxias, em Lisboa, bem como as prisões das delegações de Coimbra e do Porto continuaram a ser geridas pela PIDE, como já acontecia desde 1934, no tempo da PVDE.

A «policialização» do processo penal

Num livro, intitulado Notas sobre a Instrução Criminal, editado em 1968 - que foi, aliás, apreendido pela polícia política -, o advogado Francisco Salgado Zenha enumerou «os passos sucessivos do regime de excepção» erguidos pelo Estado Novo, em oposição ao Código de Processo Penal de 1929, «em prejuízo manifesto do direito de defesa do arguido». Numa primeira fase – observou -, tinha sido atribuída, à Polícia de Instrução Criminal (PIC, a antecessora da Polícia Judiciária), «competência, paralela à dos juízes, para proceder à investigação pré-acusatória de certos delitos e para julgar certas infracções e categorias».


Depois, numa segunda fase, a partir de 1945, os poderes da Polícia Judiciária (PJ) haviam sido ampliados, «por via da restrição dos poderes instrutórios do juiz e da possibilidade de privação da liberdade atingir 180 dias sem qualquer controle judicial, bem como a atribuição de competências instrutórias ao Ministério Público, “uma agência do Governo, a ele sujeito”. Contra este estado de coisas, qualificado de «policialização ou administrativação da instrução», Zenha defendia a «judicialização de todo o processo penal».

Noutro livro, Justiça e Polícia, de 1969, voltariam a mostrar como, a partir de 1945, tinha sido expulso «o juiz do foro sagrado da instrução criminal e se instalou lá o agente do Ministério Público ou o funcionário policial!» Ora, este era «juiz em causa própria», por constituir uma das partes no processo penal, a parte acusatória, além de ser «um órgão activo da Administração subordinado ao Governo». Por outro lado, enquanto o Ministério Público, para levar a cabo as suas investigações, não podia privar da liberdade física os suspeitos por um período superior a 50 dias e carecia para esse efeito do referendum do Tribunal, tanto a PJ como a PIDE tinham o poder de prenderem, «durante 180 dias para averiguações», com «dispensa de qualquer referendum ou controlo judicial».

Ao fim de 180 dias, «o arguido podia almejar ver um juiz», mas então a «“instrução preparatória” já se encontrava feita pela polícia e valia como se tivesse sido feita por um juiz». «E tanto era assim» - observavam os autores - quanto, «nos processos organizados pela PIDE, remetidos a tribunal em Lisboa, os juízes limitavam-se a lavrar os seus despachos acusatórios com base nos papéis remetidos pela PIDE». Os dois advogados concluíam, assim, de novo pela urgência em restabelecer imediatamente a «judicialidade de todo o processo criminal, quer durante a instrução escrita, quer durante o julgamento oral, reatando-se assim a tradição jurídica nacional quebrada brutalmente em 1945 pela importação de figurinos estrangeiros já então condenados pela história e pela moral».

Outra questão importante que levantaram e será levantada ao longo dos anos pelos defensores dos presos políticos era o facto de, segundo eles, se assegurar ainda, aos arguidos, o direito de serem assistidos por advogado durante os interrogatórios e encarcerar os detidos preventivamente para fins de instrução, em «estabelecimentos prisionais autónomos e independentes de quaisquer polícias». Noutro livro, publicado em 1970, intitulado O Direito de Defesa e a Defesa do Direito, onde afirmaram que a Justiça teria de ser feita pela própria Justiça e não pela polícia, Francisco Salgado Zenha e Abranches Ferrão convidaram o ministério da Justiça a «pugnar por que a administração da Justiça se exerça dentro da estrita legalidade», ou seja, «garantir nomeadamente, neste caso, a regra da instrução contraditória e a livre organização da defesa dos arguidos»

Mudanças aparentes ou reais, na legislação de 1945?

A maioria dos historiadores observaram que as mudanças do sistema de Justiça política de 1945 apenas foram de fachada, contextualizando-as no período do pós-guerra, quando o Estado Novo procurava a todo o transe distinguir-se dos derrotados regimes nazi-fascistas. Para o advogado José António Barreiros, o regime salazarista alcançou, através da criação dos TP, «uma integral co-responsabilização da magistratura judicial comum na aplicação da justiça política». Este autor observou ainda que as deliberações dos TP apenas eram recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que só reconhecia matéria de Direito.

O advogado José Augusto Rocha considerou mesmo que a chave do funcionamento do tribunal plenário esteve no facto de não se poder recorrer da matéria de facto para o STJ. Enquanto este apenas se preocupava com a aplicação e interpretação da lei, era o TP a instância de fixação da matéria de facto, sendo que esta era aceite ipsis verbis tal como vinha instruída pela PIDE. Além disso, o juiz e o delegado do Ministério Pública eram nomeados pelo governo, concluindo esse advogado que o TP não servia para julgar, mas para condenar.

Prisão preventiva e medidas de segurança. 1947 a 1949.

Com os diplomas de 1945, o prazo máximo de duração da prisão sem culpa formada e da instrução preparatória era de três meses. Podia ser prorrogado por dois períodos sucessivos de quarenta e cindo dias, cada, mediante autorização do ministro da Justiça ou do ministro do Interior, conforme se tratasse de causa afecta à PJ ou à PIDE. A proposta à tutela caberia ao director da respectiva polícia, que devia ter em consideração «a gravidade ou multiplicidade dos factos criminosos e a dificuldade do seu completo esclarecimento, havendo fortes indícios da culpabilidade dos arguidos», bem como «a complexidade e carácter excepcionalmente perigoso da organização criminosa» sobre a qual recaía a investigação.

Quanto às medidas de segurança posteriores ao julgamento, o DL n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945 estipulava que, «para evitar grave perigo de repetição de factos criminosos», poderia haver o internamento em manicómio ou anexo psiquiátrico, a interdição do exercício de profissões ou de certos direitos, a liberdade vigiada, a proibição de residência no local da falta e a fixação de residência. Essas medidas só podiam, porém, ser aplicadas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público. Por seu turno, o D. n.º 34 674, de 18 de Junho de 1945, estabelecera a divisão dos estabelecimentos prisionais, separando os destinados ao cumprimento de penas, dos reservados à execução de medidas de segurança.

Lembre-se que a Constituição portuguesa de 1933 declarara que, para prevenir os delitos, seriam instituídas penas e medidas de segurança «com o objectivo de defender a sociedade e a readaptação social do delinquente». O Decreto-Lei n.º 23 203, de 6 de Novembro de 1933 consagrara posteriormente duas formas de tratamento dos condenados por «crimes políticos», cujo conceito legal tinha sido aliás fixado pelo Código de Processo Civil (CPP) de 1929, reservando aos “mais perigosos” - terrorismo e imprensa clandestina -, uma medida de segurança. Ou seja, o tribunal ordenava a colocação do condenado depois do cumprimento da pena à disposição do governo, no local e pelo período que este entendesse. Em 1936, a Reforma Prisional diminuíra depois a disparidade prevista no Direito português, entre os acusados de terrorismo e imprensa clandestina e os restantes “criminosos políticos”. Ficava claro que os mais perigosos politicamente eram aqueles, para os quais se poderia tornar necessário um internamento prorrogável, por ser insuficiente a aplicação de uma pena ou a expulsão.

Dois anos depois dos diplomas de 1945, num contexto de tentativa de golpe de Estado e de agitação estudantil e laboral, o DL n.º 36 387, de 1 de Julho de 1947, atribuiu à PIDE um novo poder. Efectivamente alargou o âmbito de aplicação das «medidas de segurança, previstas na Constituição para a defesa da sociedade e reabilitação dos delinquentes» a todos os «demais condenados por crimes contra a segurança exterior ou interior do Estado». Através desse diploma de 1947, o governo também passou a poder administrativamente fixar residência ou proibir a residência no território nacional – ou seja, sem processo judicial nem julgamento – a «indivíduos cuja actividade» fizesse «recear a perpetração de crimes contra a segurança do Estado».

A reforma da organização judiciária política iniciada em 1945 e continuada em 1947 prolongou-se com a publicação do DL n.º 37.047, de 7 de Setembro de 1948, segundo o qual os juízes presidentes dos círculos judiciais e os juízes dos juízos criminais de Lisboa e do Porto eram nomeados em comissão de serviço de três anos de entre os juízes de primeira classe designados pelo Conselho Superior Judiciário. Quer os juízes presidentes dos círculos, quer os juízes desembargadores presidentes dos plenários criminais tinham amplos poderes disciplinares e de inspecção sobre os juízes das comarcas, o que tinha um efeito conjugado fortemente prejudicial para a independência do tribunal.

Em Julho de 1948, realizou-se no 3.º Juízo Criminal de Lisboa, um importante julgamento, que ficou conhecido como o do «processo dos 108», tal era o número dos acusados de pertencer ao PCP e MUD, em vários pontos do país. Foi no contexto desse «julgamento dos 108», que surgiu o DL n.º 37 447, de 13 de Junho de 1949, que criou o Conselho de Segurança Pública (CSP), com o qual as «medidas de segurança» foram transformadas em medidas de prisão, a serem cumpridas «em estabelecimento adequado», de um a três anos, após o cumprimento da pena sentenciada pelo tribunal. Aos condenados por «actividades subversivas» de associações de carácter comunista, ou crimes contra a segurança interior e exterior do Estado, ou da prática de terrorismo como meio de actuação, a PIDE passou assim a ter a faculdade, através do seu director, de propor a aplicação e prorrogação dessas medidas, cumpridas nas prisões privativas dessa polícia.

Os diplomas de 1949, 1954 e 1956

Com o diploma de 1949, o Estado Novo realizou a «desjudiciarização» completa do controlo cautelar das actividades subversivas, nomeadamente através da criação da figura de «vigilância especial», aplicável pelo Conselho de Segurança Pública (CSP). Ou seja, um órgão administrativo de coordenação das actividades de segurança pública tinha competência para impor a indivíduos condenados por crimes contra a segurança Estado um regime de limitações da liberdade de deslocação. Substituía-se assim, ao tribunal, na aplicação de uma medida substancialmente idêntica à medida de liberdade vigiada, sendo o desrespeito destas limitações equiparado ao crime de desobediência, devendo o arguido aguardar o julgamento em prisão preventiva.

A legislação de 1947 e 1949 correspondeu a uma fase de contra-ataque do regime sobre as oposições, depois do susto do pós-II Guerra Mundial e visou legalizar o que, na realidade, nunca deixara de ser uma prática constante – e ilegal, dado que nos anos trinta, a preocupação com a legalidade era nenhuma - da PVDE, relativamente à detenção por tempo indeterminado e sem pena, ou para além desta. A partir de então, a política criminal do Estado Novo passou a assentar em dois pilares: na prisão preventiva e nas medidas de segurança. Além de poder propor a aplicação e prorrogação de uma medida segurança de internamento, após o cumprimento da pena a que os tribunais condenavam os detidos políticos, o director da PIDE tinha ainda competência para aplicar «provisoriamente» uma medida de segurança, durante o período de instrução do processo, antes de o preso ser julgado.

A resistência do ministro da Justiça aos diplomas de 1954 e 1956

Em 1953, o ministro da Justiça Cavaleiro Ferreira fez publicar o DL n.º 39.351, de 7 de Setembro, nos termos do qual a PJ foi convertida em «organismo auxiliar do Ministério Público, dependente do Ministro da Justiça e sujeito à orientação e fiscalização directas da Procuradoria-Geral da República». No entanto, essa subordinação hierárquica da PJ ao Ministério Público, que reforçou a posição processual deste no controlo da instrução preparatória dos processos instruídos por aquela polícia, regulamentada por esse diploma, não se estendeu à PIDE.

Efectivamente o DL n.º 39 749, de 9 de Agosto de 1954, atribuiu atribuído funções de juiz, ao director, subdirector, inspector responsável e eventualmente a inspectores-adjuntos, sub-inspectores e chefes de brigada da PIDE, na instrução preparatória dos processos, relativamente à manutenção da prisão dos arguidos e à aplicação provisória das medidas de segurança. Através do DL n.º 39 749, a PIDE ficou ainda com a possibilidade de propor a aplicação de medidas de segurança privativas da liberdade – posterior ao cumprimento da pena -, e vigiar os indivíduos a elas sujeitos. Cabia ao ministro da Justiça, por intermédio do Conselho Superior dos Serviços Criminais, a superintendência da execução das penas e dessas medidas de segurança.

O ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira opôs-se a essa diferenciação da prerrogativa da PIDE, relativamente à PJ, consagrada no DL n.º 39 749 e defendida, claro está, pelo ministério do Interior. Criticou não só a ausência de relação funcional da polícia política com o Ministério Público, propondo que ficasse expressa, no diploma, a subordinação hierárquica daquela a esta magistratura. Além disso, Cavaleiro Ferreira afirmou que a competência para determinar a prisão preventiva fora de flagrante delito era concedida com tal magnanimidade às autoridades administrativas que mais «fácil» seria «fazer a enumeração dos que não são autoridade».

Quanto à nova competência dos sub-inspectores e dos chefes de brigada da PIDE, Cavaleiro Ferreira entendeu que era «mais do que duvidosa a sua inclusão nesse conceito de “autoridade”». Além disso, o ministro da Justiça discordou da ampliação dos poderes «detentivos» da PIDE, de 180 para 360 dias. Sobre este assunto, Francisco Salgado Zenha e Duarte Vidal, observaram, porém, que a diferença entre um arbítrio por 180 dias, ou por 360 dias era um pormenor meramente quantitativo. É que, quando a PIDE precisava de prender alguém por mais de 180 dias nem necessitava «tão pouco de recorrer ao “bónus” de 1954»: soltava ao fim de 180 dias e acto contínuo tornava a prender por mais 180 dias.

Seja como for, Cavaleiro Ferreira recusou-se a assinar o DL n.º 39 749 e pediu a sua exoneração, em 7 de Agosto de 1954. O diploma contestado, que levou a chancela do próprio Salazar, enquanto assumiu a pasta da Justiça interinamente de 7 a 14 de Agosto, antes de ser substituído por Antunes Varela. Em 5 de Junho, dois meses antes de sair do governo, ainda fez publicar, pelo DL n.º 39 688, uma reforma do Código Penal (CP), que possibilitou ainda o desconto de metade da prisão preventiva já cumprida, nas condenações a penas de prisão maior.

Em 1956, o DL n.º 40 550, de 12 de Março piorou a situação dos presos políticos, ao ampliar «a todos os processos de segurança a faculdade de aplicação provisória da medida de segurança de internamento» e agravar «o regime da medida de segurança aplicável aos suspeitos da prática de actividades subversivas. O DL n.º 40 550 foi criticado por muitos juristas. Por exemplo, Adelino da Palma Carlos denunciou o «agravamento da desjurisdicionalização» das medidas de segurança e a possibilidade da sua eternização, bem como a sua aplicação mesmo quando não fosse provada a culpa.


Numerosos advogados de Defesa de presos políticos defenderam, ao longo dos anos, a inconstitucionalidade dessas medidas, embora a maioria dos juízes dos TP e do próprio STJ as tivessem considerado constitucionais, com o argumento de que se justificavam como meio de luta contra o PCP, «fora de dúvida, “uma associação secreta”». Da mesma forma, diversos estudiosos consideraram que as medidas de segurança, ordenadas por períodos indeterminados de seis meses a três anos, foram transformadas em verdadeiras penas de prisão perpétua, mesmo aos absolvidos dos crimes que justificariam a sua aplicação. Por outro lado, a medida de segurança aplicada em Portugal assemelhava-se ao raciocínio por «analogia» em matéria de penalidade, tal como o permitia a lei nazi de 1935.

O funcionamento dos TP, até aos anos 60

Para Macaísta Malheiros, advogado de Defesa de inúmeros presos políticos, os tribunais plenários eram «apenas um simulacro, caracterizando-se por assentarem unicamente nas provas apresentadas pela PIDE, obtidas por coacção e tortura, limitando-se no fundo ao depoimento de dois agentes da PIDE que aí jurava que os réus não tinham sido torturados». Por seu turno, o advogado Mário Brochado Coelho também disse que o regime de Salazar e de Caetano se serviu «de muitos magistrados que, voluntariamente ou por receio de represálias profissionais, acabaram por se transformar num pilar essencial do sistema de repressão». Lembre-se, além disso, que, nas cadeias da PIDE/DGS, os advogados de defesa só podiam falar com os seus clientes na presença de um agente dessa polícia ou de um guarda prisional. Por outro lado, no tribunal plenário, muitos deles foram alvo de processos e alguns mesmo de agressão e prisão, por terem pretensamente desrespeitado o tribunal.

Acusado pela PIDE, em carta ao ministério do Interior, de ter fornecido as informações constantes numa brochura sobre a presa política Piedade Gomes dos Santos, divulgada em França e noutros países de exílio de portugueses, o seu advogado de defesa, Arnaldo Mesquita, foi detido por aquela polícia. Por seu lado, o advogado Manuel João da Palma Carlos, foi preso em pleno tribunal, em 23 de Abril de 1957, e condenado por desrespeito ao tribunal a sete meses de prisão, um ano de privação de direitos políticos e um ano de suspensão de exercício de advocacia. Isto, por ter respondido ao juiz: «julgue como quiser, Sua Ex.ª, com ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar na acta tudo quando na audiência se passar».

Muitos presos políticos também foram novamente detidos em plena sala do tribunal plenário e levados para o calabouço da Boa-Hora, após espancamentos, enquanto o julgamento prosseguia. Enviados para o calabouço do Tribunal da Boa-Hora pelos juízes foram-no, entre outros os presos políticos Jaime Serra e Georgette Ferreira, em 1955, Carlos Costa, em 1957, Rogério de Carvalho, António Santo e Sofia Ferreira, em 1959, Fernanda Paiva Tomás e António Gervásio, em 1961, Fernando Blanqui Teixeira, José Bernardino, Octávio Pato e Joaquim Pires Jorge, em 1962, bem como Joaquim Jorge Alves Araújo, no ano seguinte.

Francisco Salgado Zenha, advogado deste último, relatou ter informador então o tribunal de que tinha ido visitar o preso, ao calabouço, onde verificara «com infinita tristeza», que «o réu tinha sido barbaramente seviciado» e se «encontrava visivelmente em estado de choque, referiu-lhe que tinha sido espancado a cavalo-marinho e casse-tête».

Modificações no “marcelismo”?

Em Abril de 1962, o DL n.º 44 278, que integrou o novo Estatuto Judiciário, alargou a competência do TP aos crimes anti-económicos e aos crimes de imprensa cometidos fora da comarca de Lisboa e Porto. Esse diploma continuou a possibilitar a intrusão do poder executivo, através do ministro da Justiça, no campo judicial, infringindo a separação de poderes. Na vigência de Salazar, nada se modificou no sistema de Justiça política.

Quando este foi substituído, na presidência do Conselho de Ministros por Marcello Caetano, em 1968, este quis inicialmente dar mostras de que estaria a liberalizar o regime. Dessa forma, repetiu o que Salazar havia feito em 1945, ao mudar o nome da PIDE para Direcção Geral de Segurança (DGS), pelo decreto-lei n.º 49 401 de 19 de Novembro de 1969. No entanto, tudo continuou quase na mesma e endureceu mesmo, devido à prossecução da guerra colonial. Efectivamente, o governo passou a ter o poder de declarar o «estado de sítio, adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais que se mostrar indispensável».

A DGS foi reorganizada, em 30 de Setembro de 1972, pelo DL n.º 368/72, segundo o qual essa polícia continuava com os mesmos poderes quanto às infracções que eram objecto da sua competência, que a lei conferia à PJ. As funções que a lei atribuía ao juiz durante a instrução preparatória, relativamente ao interrogatório de arguidos presos, a validação da manutenção de capturas e a decisão sobre liberdade provisória, eram, segundo o diploma, desempenhadas pelo director-geral, pelos inspectores superiores, directores de serviço e inspectores-adjuntos.

Quanto às funções do Ministério Público, durante a instrução preparatória, ficavam a cargo dos inspectores, por conseguinte, à revelia do controlo judicial. A assistência do defensor aos interrogatórios podia ser interdita nos processos instruídos por essa polícia, quando houvesse inconveniência para a investigação ou o justificasse a natureza do crime. Nesse caso, o advogado seria substituído por um defensor ad hoc ou duas testemunhas qualificadas e obrigadas ao segredo de justiça. Claro está, que a DGS aproveitou ininterruptamente essa norma, interditando a presença de advogado nesses interrogatórios e constituindo como «testemunhas qualificadas» os próprios agentes dessa polícia.

Relativamente às modificações proporcionadas pelo DL n.º 368/72, de 30 de Setembro, a maioria dos autores consideraram que, tal como em 1945, elas apenas tiveram «natureza meramente semântica». Isso foi aliás então salientado pelo deputado da Ala Liberal da Assembleia Nacional, Francisco Sá Carneiro, ao criticar o facto de a PJ e a DGS instruírem processos. No caso da PJ, segundo observou, os seus elementos não eram juízes, pois o «juiz é o membro dum tribunal» e «as polícias não são tribunais». Mais grave ainda, segundo ele, era o caso da DGS, cujos inspectores e funcionários superiores da PIDE, ao contrário dos da PJ, nem tinham formação jurídica nem eram da carreira judicial.

Relativamente à prisão preventiva até à pronúncia provisória, o seu prazo, nos processos cuja investigação fosse da competência da PJ ou da DGS, passou a ser mais curto, diminuindo de seis para três meses, a instrução preparatória, com o arguido preso. Quanto à liberdade condicional, com a reforma de 1972, deixou de poder exceder a duração da pena imposta e passou a ser considerada uma última fase da execução da pena de prisão, perdendo a natureza de «gravame» para os reclusos. Mantinha-se, porém, a situação de controlo político sobre a fase da execução da pena.

Mais tarde, já no exílio, Marcelo Caetano justificou a manutenção desse regime processual da instrução dirigida pela DGS, com as reservas colocadas pela polícia. A DGS, segundo ele, teria levantado «objecções a que se aplicasse, certos preceitos, como o da faculdade de assistência do advogado», fundamentando-se, na prática em todo o mundo (!), quanto a crimes de traição e contra a segurança do Estado. Além disso, a DGS afirmara que «os advogados convocados pelos terroristas ou comunistas detidos» eram, «por via da regra, correligionários dos arguidos, militantes ou simpatizantes, do partido», de tal modo que, se estes pudessem assistir aos interrogatórios, «nunca mais» os presos abririam «a boca para dizer fosse o que fosse». O certo é que Caetano aceitou essa argumentação e a presença do advogado permaneceu, assim, facultativa, ou seja, na prática, proibida.

Uma das poucas mudanças então ocorridas, foi a extinção das medidas de segurança de internamento para os «delinquentes políticos», mas só na metrópole, através do DL n.º 450/72, de 14 de Novembro. A prorrogação ilimitada da pena de prisão foi abolida, tal como o foram as medidas aplicáveis a políticos, desaparecendo, assim, a «categoria de presos indisciplinados e a possibilidade de aplicação de numa pena indeterminada a qualquer condenado em pena de prisão». No entanto, manteve-se a prorrogação da pena, limitada a dois períodos sucessivos de três anos, aplicável apenas «aos delinquentes habituais ou por tendência e aos imputáveis perigosos, em razão anomalia mental». Por outro lado, o governo manteve as «medidas administrativas de segurança aplicáveis ao ultramar».

Francisco Sá Carneiro defendeu na Assembleia Nacional, em 8 de Dezembro de 1972, a urgência de estender ao Ultramar, quer a abolição de tais medidas, quer «a também justa e tardia providência legislativa que mandou contar por inteiro o tempo de prisão preventiva». O facto de isso não acontecer, originou que, entre os presos políticos libertados em virtude dessas recentes disposições legais, não figurasse, segundo Sá Carneiro, «o único advogado português preso por razões políticas, o Dr. Domingos Arouca», apesar de se encontrar na metrópole em cumprimento de pena de medida de segurança. Sá Carneiro alertou também para a indispensabilidade de as medidas de segurança não serem substituídas por prorrogação da pena, uma medida introduzida na redacção do art.º 67.º do Código Penal. E o certo é que, como denunciou a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP), quatro presos políticos foram sujeitos a essa prorrogação da pena, em Novembro de 1972 e 1 de Fevereiro de 1973.

Nos últimos meses do regime ditatorial, o TP já agia, porém, com algum cuidado, como se tivesse consciência de que os seus dias estavam contados. Em 22 de Janeiro de 1974, dando como provadas as acusações de ligação ao MRPP e condenando dois estudantes a quinze meses de prisão correccional, o TP de Lisboa suspendeu-lhes as penas por quatro anos. Diga-se que tinha entretanto havido uma modificação de monta na composição do tribunal, com a nomeação, no início desse ano, de um novo representante do Ministério Público no TP, que substituiu o anterior representante do MP, Carlos da Costa Saraiva.

Tratou-se de António Luís de Oliveira Magalhães, que, na sua primeira intervenção de fundo em tribunal plenário, afirmou não gostar de ser apelidado de «acusador público».
Denunciou em particular a confusão que frequentemente se observava entre a acusação oriunda da instrução preparatória das polícias e o papel processual do que deveria ser promotor de Justiça. Entrando depois na matéria jurídica da causa em apreciação no Plenário, qualificou genericamente como delitos de opinião as opções políticas imputadas aos dois estudantes e, recordando as atenuantes invocadas pela defesa, pediu a absolvição dos mesmos.

Quem se manteve no seu cargo até ao fim, foi o juiz-presidente do TP, Fernando Morgado Florindo, que
presidiu ao julgamento que envolveu diversos elementos da Acção Revolucionária Armada (ARA), ligada ao PCP. Iniciado, em 8 de Janeiro de 1974, o julgamento teve ainda uma sessão, em 21 de Março desse ano, mas estava-se à beira de os tribunais plenários serem extintos, o que aconteceu em 25 de Abril. Na manhã desse dia, em que se deveria realizar outra audiência desse julgamento, o desembargador Morgado Florindo exarou, na sequência de um telefonema directo que fez à DGS, um despacho com o seguinte texto:

«Tendo a Direcção-Geral de Segurança comunicado telefonicamente a impossibilidade de assegurar a condução dos réus a este tribunal, devido ao Movimento das Forças Armadas, adio “sine-die” o julgamento».

* Intervenção proferida no Colóquio Internacional “Administração e Justiças na Res Publica”, Universidade do Minho, Braga, 15-16 Março 2010, organização CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória), Grupo Paisagens, Fronteiras e Poderes. Câmara Municipal de Braga, com o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, do Fundo de Apoio à Comunidade Científica da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Departamento de História da Universidade do Minho.
Foto: Tribunal da Boa Hora, Armando Serôdio, 1968, Arquivo Municipal de Lisboa, AFML – A64149

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Nos 45 anos do assassinato de Humberto Delgado e Arajaryr Campos

Campanha Presidencial de 1958 © ESFC
Em 13 de Fevereiro de 1965, a PIDE assassinou o general Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos. O crime ainda hoje está envolto em algum mistério, nomeadamente relativamente ao papel de Salazar e do director da PIDE na decisão da morte. Frederico Delgado Rosa, neto do general, deu à estampa o livro Humberto Delgado - Biografia do General sem Medo, que trouxe nova luz sobre a forma como decorreu realmente o assassinato. Muito há a dizer sobre esse assassinato, que “eliminou” um dos principais adversários do ditador Salazar e do seu regime. Na impossibilidade de dar aqui as várias versões sobre o assassinato bem como de reproduzir toda a complexidade do caso «Delgado», limitar-me-ei aqui a apresentar, no fim, alguma bibliografia incontornável sobre o tema. Deixo também alguns dados sobre a forma como ocorreu o crime, retirados do libelo acusatório do julgamento do caso Delgado, que apenas realizado três anos após 25 de Abril de 1974.

Segundo esse libelo, Fernando da Silva Pais, Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, respectivamente director, subdirector e chefe dos serviços de Informação da PIDE «definiram, em data não averiguada - seguramente localizada no ano de 1962», o objectivo central de reduzir Humberto Delgado «à não actuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto». A PIDE teria então aliciado, para trabalhar estreitamente com ela, o português Mário de Carvalho e o italiano Ernesto Bisogno, ambos a residir em Roma, que se haviam insinuado junto do general, para informarem aquela polícia dos seus movimentos.

Na sequência desta actividade, Mário de Carvalho fora contactado, várias vezes, em 1963 e 1964, por Pereira de Carvalho, bem como pelos inspectores Rosa Casaco e Ernesto Lopes Ramos, «que o dirigiram, aconselharam e ordenaram actuação conducente aos propósitos definidos na política da direcção da PIDE contra» Delgado. Refira-se, a propósito, uma carta dirigida de Roma, datada 14 de Maio de 1963, a Barbieri Cardoso, assinada por «Oliveira» (nome de código de Mário de Carvalho), onde este assegurava estar «em cima desta gente» e que agiria «d´acordo» com os desejos da PIDE. No julgamento do caso Delgado, o antigo elemento da PIDE/DGS, Alfredo Robalo, confirmou que Mário de Carvalho era o informador, com residência em Itália, que assinava por «Oliveira» e recebera, dessa polícia, pelos seus serviços, entre 1967 e 1974, a quantia de 1.383.660$60. O próprio álvaro Pereira de Carvalho admitiu, também no julgamento, que os cheques para «Oliveira» (Mário de Carvalho) eram passados pela Casa Piano, uma instituição bancária, de que nascera o Banco Viseense, de Jorge Farinha Piano.

Os antecedentes do crime

Lembre-se que Humberto Delgado tinha chegado a Argel, vindo do Brasil, onde estava exilado, em 27 de Junho de 1964, tendo lá aparecido, para espiar o general à conta de Barbieri Cardoso, um «exportador de carneiros, que era, na realidade, o comandante de batalhão da Brigada Naval da LP, Soares de Oliveira». Depois, isolado e no desespero do exílio, Delgado aproximara-se de dois elementos suspeitos, Henrique Cerqueira, em Tânger, e Mário de Carvalho, em Roma, informador da PIDE.Em final de Setembro, o general encontrou-se, em Pompeia, com «o major Sá Borges de Carvalho» e «o capitão Agostinho Mota», muito provavelmente elementos da PIDE, que lhe asseguraram que ele poderia contar com 4.600 elementos efectivos e 500 potencialmente recrutáveis para uma revolução em Portugal. Em conversa com «Eduardo Castro e Sousa» (na realidade, Ernesto Lopes Ramos, inspector da PIDE), Humberto Delgado decidiu a constituição de uma Junta que dirigiria politicamente a revolta.

Entretanto, Delgado foi operado, em Roma, por um médico arranjado por Ernesto Bisogno e, ao ter alta, em 25 de Outubro, teria sido seguido por Roberto Vurita Barral, que era, nada mais, nada menos, que o inspector da PIDE António Rosa Casaco.Este deslocou-se, depois, a Paris, de onde telefonou a Pereira de Carvalho, para Lisboa, a dar conta que a reunião com Delgado tinha corrido bem. Rosa Casaco estava-se a referir a uma reunião, realizada em 27 de Dezembro de 1964, no Hotel Caumartin, em Paris, entre Delgado e o elemento da PIDE, Ernesto Lopes Ramos, em que havia sido combinada realização de novo encontro entre nos dois, em Badajoz.

Segundo o auto das acusações do julgamento de Delgado, «sabedores da desunião política do general com os correligionários, no exílio, que terão fomentado pela acção dos informadores Mário de Carvalho e Ernesto Bisogno - os arguidos Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho e Rosa Casaco, com os (sic) conhecimento de Silva Pais, ordenaram a Ernesto Ramos que, avistando-se com o ofendido, com o falso nome de “Eduardo de Castro Sousa”». Este convencera o general a dirigir-se a Badajoz, «com o objectivo de efectuar uma reunião política com elementos adversos ao regime de Salazar, entre os quais estaria um oficial do Exército português (um falso coronel)».

Em Portugal, terá havido uma reunião, na PIDE, presidida por Silva Pais, com a presença de Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho e Rosa Casaco, onde se terá tomado a decisão de efectuar a detenção de Delgado, que se deveria realizar em território português, após o rapto do general, em Espanha. Mais tarde, Silva Pais disse que a inclusão de Ernesto Lopes Ramos, na brigada, tinha o objectivo de fazer vingar a ideia do rapto e travar Rosa Casaco, do qual se suspeitava ter outras ideias (provavelmente morte do general). Seja como for, Barbieri Cardoso determinou que Rosa Casaco chefiaria a brigada, composta ainda por Casimiro Monteiro, Ernesto Lopes Ramos e Agostinho Tienza, para o encontro, aprazado em Badajoz para 13 de Fevereiro de 1965.

Em Paris, Emídio Guerreiro teria tentado demover Delgado da ida a Badajoz, cujo encontro foi confirmado, numa carta de Mário de Carvalho, de 4 de Fevereiro. Em Argel, o general despediu-se do seu amigo Ayala, dizendo-lhe que ia a Espanha, mas que «o homem de Roma» não se encontraria com ele. Mário de Carvalho justificar-s-ia, mais tarde, que havia sido impedido de apanhar o avião para Espanha, devido a fortes nevões que haviam levado ao fecho do aeroporto de Fiumicino, de Roma. No dia 9, Delgado chegou a Marrocos, para se avistar com Henrique Cerqueira, e, no dia seguinte, ele, a sua secretária Arajaryr Campos, Helena Cabral e Henrique Cerqueira deslocaram-se a Tetuan, onde o general e a sua secretária tomaram o barco para Algeciras. Delgado enviou, daí, um telegrama a Cerqueira, confirmando que chegara bem, e, depois o general e a sua secretária deslocaram-se para Sevilha, onde passaram a noite. No dia 11, tomaram um táxi para Badajoz, chegando ao Hotel Simancas.

O crime

Sexta-feira, dia 12 de Fevereiro, os elementos da brigada da PIDE rumaram a Espanha, em duas viaturas, atravessando a fronteira, na manhã de 13 de Fevereiro, e dirigiram-se a Badajoz, acompanhados do chefe do posto fronteiriço dessa polícia, António Semedo. Convencido de que iria reunir com os seus correligionários políticos, Delgado encontrou-se, ao meio-dia, na zona da Estação dos Caminhos-de-Ferro de Badajoz, com «Eduardo de Castro Sousa» (o inspector Lopes Ramos), que o levou a ele e a Arajaryr Campos, para um local, onde a pretensa reunião estaria aprazada.

Chegados junto à ribeira de Olivença, em Los Almerines, cerca das 15 horas, Ernesto Lopes Ramos terá parado o seu automóvel, a cerca de dez metros da outra viatura, onde estava António Rosa Casaco, indicado como um coronel que seria pretensamente correligionário político de Delgado. Na sequência desta falsa indicação, este terá saído do veículo e, ao mesmo tempo que Rosa Casaco se dirigia ao encontro do general, o chefe de brigada Casimiro Monteiro ganhou a dianteira, junto de Delgado, que se terá apercebido de que se tratava de uma armadilha da PIDE. Monteiro terá empunhado a pistola, disparando várias vezes contra Delgado e, ao assistir à cena, Arajaryr Campos terá acorrido em auxílio do general, «sendo então atingida por agressões violentas que lhe causaram a morte por parte dos elementos da brigada».

Segundo o libelo acusatório, «Casimiro Monteiro agiu com intenção de matar o ofendido general Humberto Delgado» e o mesmo, Tienza, Rosa Casaco e Ernesto Ramos «agiram com intenção de matar Arajaryr de Campos». Em seguida, Casaco, Ramos, Monteiro e Tienza colocaram os dois cadáveres na mala dos automóveis e deixaram o local, dirigindo-se para Vila Nueva del Fresno (lugar de Los Malos Pasos). Nos arredores dessa povoação, abandonaram os corpos, «regando-os com ácido sulfúrico e cal viva, desfeitando-lhes a figura e depositando-os em cima da terra, sem formalidades, cobertos de pedras e ramos de árvores». Depois, os elementos da PIDE dirigiram-se para Aracena, onde se hospedaram, e, na manhã do dia imediato, entraram em Portugal pelo posto espanhol de El Rosal, Huelva.

Na noite de domingo, dia 14 de Fevereiro, Rosa Casaco e Ernesto Ramos deram conhecimento dos acontecimentos, a Álvaro Pereira de Carvalho, e, no dia seguinte, este último e Rosa Casaco relataram o sucedido, ao inspector superior Barbieri Cardoso, que recomendou que «se pusesse uma pedra sobre o caso» e se mantivesse a negação sobre a interferência da PIDE no caso. A ocorrência foi depois comunicada a Silva Pais, que, após 25 de Abril de 1974, diria ter ficado «varado, perguntando se era deste modo que tinham tido cuidado, ao mesmo tempo que sentia toda a extensão do problema». Disse também Silva Pais que, ao informar Salazar, da morte de Delgado, aquele havia dito que lhe cheirava a armadilha em que a polícia teria caído, e recomendara-lhe o silêncio sobre os factos, em ordem a «salvar o país de uma gravíssima situação». Isto mesmo foi repetido pelo advogado de Silva Pais, Manuel Anselmo, no julgamento do caso Delgado, segundo o qual Salazar teria encoberto o assassinato do general e ordenado ao director da PIDE: «sobre isso nem uma palavra».

Silva Pais afirmou ainda ter ficado convencido que tinha sido Casimiro Monteiro a matar e foi isso que ele confidenciou ao seu médico cardiologista, Eduardo Macieira Coelho, acrescentando que, ao ser informado do crime, Salazar lhe teria observado: «Neste momento nada de pior nos podia acontecer».Sobre Casimiro Monteiro, o ex-director da PIDE/DGS afirmou que «era um homem seguríssimo», «muito inteligente» e «tinha uma ligação qualquer com a Argélia». O próprio Casimiro Monteira teria relatado, mais tarde, a um agente da PIDE, em Tete, numa ocasião em que se encontrava embriagado, a sua participação na operação contra Delgado, em colaboração com Tienza e um espanhol.

Segundo o libelo acusatório, depois de meditar durante três dias no assunto, o director da PIDE combinou, com Barbieri Cardoso, não dar conhecimento dos factos e «actuar de forma necessária e suficiente para que se eliminassem quaisquer vestígios, dando aval a todas as iniciativas em tal sentido». O certo é que ordenaram, ao inspector Carlos Veloso e a Eduardo Miguel da Silva, a «eliminação» ou «ocultação de vestígios», tendo este último alugado, em nome suposto, uma casa, em Rio de Mouro, onde destruiu as viaturas, com a ajuda de Ernesto Ramos, Tienza, João Nobre e outro elemento.

Entretanto, de Badajoz, o co-proprietário do hotel Simancas, de Badajoz, afirmou, em 28 de Fevereiro, à polícia espanhola, ter visto pela última vez Delgado e Arajaryr Campos, no dia 13. Do lado da oposição portuguesa ao regime, em final de Fevereiro de 1965, Mário Soares, que viria mais tarde a ser constituído advogado da família Delgado, recebeu um telefonema de Emídio Guerreiro, de Paris, a dizer-lhe que se propunha mandar a Lisboa três juristas da Federação Internacional dos Direitos do Homem para averiguarem o caso: o britânico Ian MacDonald; o italiano Luigi Cavalieri e o francês Henri Leclerc. Ainda de Paris,Emídio Guerreiro escrevera entretanto, em 25 de Março, a Alcina Bastos, afirmando que Delgado teria provavelmente sido assassinado pela PIDE.

Os cadáveres do general e da sua secretária teriam sido encontrados, por um camponês espanhol, em 24 de Abril de 1965, data sobre a qual se voltará a falar, pois que os corpos terão sido encontrados antes. Três dias depois, os juristas Leclerc, Cavalieri e MacDonald concluíram, em Paris, o seu relatório, concluindo, na «hipótese muito pouco verosímil de a polícia espanhola ter descoberto os cadáveres ignorando quem fossem os autores do crime», esta descoberta teria ocorrido em Fevereiro, e, por isso, os juristas não viam «por que razão o governo espanhol a escondeu até à data» da investigação.

Em 6 de Maio de 1965, o MNE português enviou ao ministério do Interior uma carta confidencial e urgente, em que se transcrevia a comunicação do Julgado de 1.ª instância de Badajoz, segundo a qual um dos dois corpos encontrados em Vila Nueva-del-Fresno era do general Humberto Delgado. No dia 20, o director da PIDE enviou, aos seus postos fronteiriços, uma ordem, vinda da Interpol, para prender quatro nacionais, um dos quais, o advogado «Eduardo Castro e Sousa», que como se sabe, era o falso nome de Ernesto Lopes Ramos, enquanto os outros três não eram mais que António Rosa Casaco, Casimiro Monteiro e Agostinho Tienza. Em Espanha, a descoberta dos dois cadáveres levou à abertura de um processo de averiguações, mas, depois, numa espécie de manto cúmplice, as «ditaduras ibéricas» acabariam, através do silenciamento e obstrução, por ocultar a verdadeira identidade dos assassinos.

Em Portugal, a PIDE deu andamento à campanha de contra-informação e, em 10 de Setembro de 1965, Silva Pais, Barbieri Cardoso e Pereira de Carvalho «ordenaram, fraudulentamente, a instrução do processo n.º 2638/65 de averiguações, por morte do general Humberto Delgado, fazendo recair a suspeita de comparticipação, na forma de encobrimento, sobre o Dr. Jaime Vilhena de Andrade, advogado do foro portuense, e ainda sobre o arquitecto Artur Andrade, conhecido dirigente da Oposição ao regime político» A nível do governo, em Fevereiro de 1966, a imprensa portuguesa publicou uma nota do ministro do Interior, Santos Júnior, onde se dizia que nenhum dos indivíduos referidos em telegramas de agências noticiosas tinha sido ou era «agente de autoridade portuguesa».

O advogado Joaquim Pires de Lima forçou a investigação judicial, participando o caso à PJ, mas a abertura do processo, antes do 25 de Abril de 1974, foi sempre impedida, assim como foram dificultadas as idas dos advogados da família Delgado a Espanha. Foi apenas, após o golpe militar que derrubou o regime ditatorial, que o crime começou a ser investigado em Portugal, no âmbito da Comissão de Extinção da PIDE-DGS, embora apenas, em 1978, se tenha iniciado o processo judicial e identificado mandantes e assassinos.

A sentença do caso Delgado foi lida, em Agosto de 1981. O chefe de brigada da PIDE, Casimiro Monteiro, foi condenado à revelia a dezanove anos e oito meses de prisão, por ter sido considerado o autor do crime. O tribunal, presidido pelo juiz presidente coronel Emanuel Coelho, com o coronel Manuel António Dantas e o juiz auditor Gonçalves Pereira, afirmou porém que não se tinha tratado de um crime político, pois os réus tinham actuado no cumprimento das suas funções policiais. Considerou amnistiados e prescritos os crimes de encobrimento de cadáver, falsificação de documentos, abuso de poder e destruição de provas. Silva Pais tinha entretanto morrido, Barbieri Cardoso foi condenado à revelia, por quatro crimes de falsificação, a quatro anos de prisão, e Pereira de Carvalho, absolvido de todos os crimes relacionados com o “caso Delgado”, sentenciado a vinte e oito meses. Rosa Casaco também foi sentenciado, à revelia, por seis crimes de falsificação e dois crimes de furto de documentos, em oito anos e nove meses de prisão e Ernesto Lopes Ramos, bem como Tienza, por um crime de uso de identidade falsa, sendo respectivamente, condenados a vinte e dois meses e a catorze meses de prisão.

Bibliografia
- Frederico Delgado Rosa, Humberto Delgado - Biografia do General sem Medo, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008
- Humberto Delgado, A Tirania Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995
- Juán Carlos Jiménez Redondo (Edição a cargo de), El caso Humberto Delgado. Sumario del proceso penal español, Junta de Extremadura, Mérida, 2001.
- Manuel Garcia, e Lourdes Maurício, O Caso Delgado. Autópsia da «Operação Outono», Lisboa, ed. Jornal Expresso, 1977
- Manuel Beça Múrias, Obviamente, Demito-o, Lisboa, Intervoz, s. d
- «Como a PIDE forjou a chamada operação Outono». Diário Popular, 21/7/1979.
- «Dossier Delgado», O Jornal, 28/10/1977, pp. 14-17
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"Filhos de Hitler"

Filme impressionante. Trata-se de um projecto que ensaia um diálogo entre filhos de perpetradores de crimes nazis e filhos de sobreviventes do Holocausto
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Auschwitz

Em 27 de Janeiro, decorrem sessenta e cinco anos da libertação, pelos soviéticos, do campo de concentração e de extermínio nazi de Auschwitz, na Polónia. Além de se ter tratado de um campo de extermínio, onde foram massacrados, pelos nazis, mais de um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, na sua maioria judeus, e também, ciganos, prisioneiros de guerra russos, polacos e presos políticos, o nome de Auschwitz é hoje um símbolo de uma dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. É um nome que acaba por recobrir, não só, como se verá, Auschwitz-Birkenau, como todos os outros cinco campos de extermínio, de Majdanek, Chelmno, Belzec, Sobibor e Treblinka, todos situados na Polónia ocupada pela Alemanha nazi.

Só neste último campo, um imenso cemitério escondido no meio de belíssimas árvores, depois de os nazis reflorestarem a zona para esconder o crime, estes e os seus cúmplices assassinaram mais de 800.000 judeus, entre Junho de 1942 e Agosto de 1943. Este massacre incluiu-se no âmbito da «operação Reinhard», nome de código do plano alemão para assassinar os judeus que residiam na parte da Polónia ocupada mas não directamente anexada pela Alemanha. No âmbito dessa «operação», os nazis mataram, entre Março de 1942 e Novembro de 1943, mais de 1 milhão e meio de judeus só nos últimos quatro campos de extermínio. No total, estima-se que foram assassinados na Polónia cerca de 2.9 milhões de judeus; ou seja, cerca de metade do número do total judeus mortos no Holocausto. O crime foi de tal envergadura que Auschwitz ficou como paradigma e símbolo do horror, do que seres humanos são capazes de fazer a outros seres humanos.

Para dar conta da crueldade e da violência inútil que vigorava em Auschwitz, Primo Levi referiu a pergunta que Gitta Sereny fez ao ex-comandante SS de Treblinka, Franz Stangl. Esta perguntara-lhe qual o sentido que tinham as humilhações e crueldades infligidas aos prisioneiros dos campos de extermínio, quando, à partida, o objectivo era exterminá-los. A resposta de Stangl foi: «Para condicionar os que deviam executar materialmente as operações, para lhes tornar possível fazer o que faziam». Ou seja, era necessário, primeiro, transformar o prisioneiro num dejecto humano e degradar totalmente a vítima, afim de que o carrasco sentisse menos o peso do seu crime; foi a isso que Primo Levi chamou a «única utilidade da violência inútil».

Por seu turno, Primo Levi observou que, onde se faz violência ao homem, faz-se também violência à língua e à cultura, mencionando o silêncio imposto pelo próprio isolamento das vítimas, o desvio perverso da linguagem dos campos e os seus efeitos de terror, bem como a perpétua mentira, pronunciada pelos nazis, através de uma linguagem cifrada: por exemplo, Sonderbehandlung (tratamento especial) significava, na realidade, a morte pelo gás. Hannah Arendt lembrou que os nazis estavam completamente convencidos que uma das maiores possibilidades de sucesso do seu empreendimento criminoso residia no facto de ninguém no exterior poder acreditar no que realmente se passava em Auschwitz. Em 1942, um SS expressou-se assim com um prisioneiro:

«haverá talvez suspeitas, discussões, pesquisas feitas pelos historiadores, mas não haverá certezas, porque nós destruiremos as provas ao destruir-vos. Mas mesmo que subsistam algumas provas e que alguém de entre vós pudesse sobreviver, as pessoas dirão que os factos que vocês descreverão são demasiado monstruosos para neles se acreditar».

E a verdade é que muitos sobreviventes contaram que, ao regressarem ao mundo, depois de ultrapassarem o seu próprio silêncio acerca do que tinham vivido, sentiram que os outros não queriam acreditar neles ou preferiam mesmo não tomar conhecimento do horror dos campos. Na certeza de que nunca se poderá explicar totalmente Auschwitz, veja-se o que foi esse campo de extermínio e o caminho longo, desde a sua libertação, pelos soviéticos, até surgir à luz do dia.

O que foi o complexo concentracionário e de extermínio de Auschwitz?

Auschwitz foi o maior campo de concentração e de extermínio erguido pelos alemães. Era um complexo de vários campos que incluía um campo de concentração, um campo de extermínio e um campo de trabalhos forçados, situado na Alta Silésia, a cerca de 40 quilómetros de Cracóvia, perto da fronteira germano-polaca anterior à guerra, numa área anexada, em 1939,m pela Alemanha nazi à Polónia, em 1939. Os três campos, Auschwitz I, Auschwitz II (Birkenau) e Auschwitz III (Monowitz), foram construídos perto da cidade polaca de Oswiecim (Auschwitz, em alemão).

Após uma ordem do Reichsführer SS, Heinrich Himmler, Auschwitz I, ou campo principal (Stammlager), em cujo portão de entrada está escrito «O trabalho liberta», começou a ser construído, em Maio de 1940, em casernas militares usadas pelo Exército polaco. Os primeiros prisioneiros a lá chegarem eram detidos de delito comum alemães, deportados do campo de concentração de Sachsenhausen, aos quais se juntou um primeiro transporte de 728 prisioneiros políticos alemães e polacos, vindos da prisão de Tarnów, chegado em 14 de Junho de 1940. Apesar de ter sido inicialmente concebido como um campo de concentração, que servia para punir prisioneiros políticos, Auschwitz I já tinha uma câmara de gás improvisada, na cave da prisão do Bloco 11, sendo depois construída uma maior e um crematório.

No Bloco 10, a caserna-hospital, “médicos” das SS faziam experiências “clínicas” em crianças, gémeos e anões, bem como testes de hipotermia em adultos. Entre o crematório e a caserna de experiências médicas, estava localizado o "muro negro”, onde os SS executaram milhares de prisioneiros. Inicialmente, os SS gazeavam os prisioneiros em duas quintas próximas, mas, em Setembro de 1941, testaram, em Auschwitz I, o gás Zyklon B, como instrumento de massacre em massa. O “sucesso” dessa experiência levou depois à adopção de câmaras de gás, a primeira das quais começou a operar em Janeiro de 1942, sendo depois desmantelada, operando a segunda câmara, entre Junho de 1942 e o Outono de 1944.

Auschwitz III- Buna ou Monowitz, foi erguido perto de Monowice, para providenciar força de trabalho escravo, para as fábricas de borracha sintética de Buna, da firma alemã I.G. Farben. Agregados a Auschwitz III, estavam inúmeros sub-campos, entre os quais se contaram os de Althammer, Blechhammer, Budy, Fuerstengrube, Gleiwitz, Rajsko e Tschechowit, num perímetro à volta de Oswiecim,de onde os alemães tinham expulsado os habitantes polacos. Periodicamente, os prisioneiros eram seleccionados e os que eram considerados, pelos SS, como demasiado fracos para contionuarem a trabalhar, eram transportados para Auschwitz-Birkenau e assassinados nas câmaras de gás

O campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau

Em Outubro de 1941, iniciara-se, junto a Auschwitz I, a construção de um complexo muito maior, feito de barracas de madeira, que viria a ser conhecido por Auschwitz II- Birkenau. Este campo de extermínio alojou inicialmente os prisioneiros de guerra russos, que morreram quase todos pouco tempo depois de chegarem, devido às terríveis condições de vida. Auschwitz-Birkenau teve um papel central no plano nazi de extermínio dos judeus da Europa. O aparelho de extermínio desse campo incluía Badeanstalten – instalações de banho, cujos chuveiros eram na realidade usados para gazear os deportados, através do Zyklon B -, Leichenkeller – caves utilizadas para arrumar os corpos das vítimas -, e Einäscherungsöfen – quatro grandes crematórios usados para queimar os corpos, construídos entre Março e Junho de 1943. Em 10 de Outubro de 1944, o sonderkommando e algumas centenas de prisioneiros que estavam a ser encaminhados para o crematório IV revoltaram-se, incendiando-o, bem como as câmaras de gás adjacentes.

Mesmo assim as operações de gazeamento, em particular de milhares de judeus húngaros, continuaram até Novembro de 1944, quando, com a aproximação das forças soviéticas, Heinrich Himmler deu a ordem para desactivar o sistema de extermínio e destruir as câmaras de gás. Em Birkenau, foram assassinados, até esse mês de Novembro, em quatro câmaras de gás, quase um milhão e meio de judeus dos países ocupados pela Alemanha. Estes representaram 90% das vítimas de Auschwitz, incluindo-se, entre as restantes, cerca de 75.000 polacos não-judeus, 20.000 ciganos Sinti e Roma, bem como 15.000 prisioneiros de guerra soviéticos, além de diversos grupos de outras categorias, entre as quais homossexuais.

Em 17 de Janeiro de 1945, devido à aproximação das forças soviéticas, iniciou-se a evacuação de Auschwitz e de todos os sub-campos, sendo todos os cerca de 60.000 prisioneiros que podiam deslocar-se enviados em direcção a Oeste, em «marchas da morte». Mais de 15.000 prisioneiros morreram, até chegarem à cidade de Wodzislaw, onde os sobreviventes foram colocados em comboios de carga e transportados para campos de concentração na Alemanha. Na viagem muitos outros milhares de prisioneiros morreram. Entretanto, no dia 27 de Janeiro de 1945, as tropas soviéticas que chegaram e libertaram Auschwitz encontraram 5.000 prisioneiros, doentes ou agonizantes.

Bibliografia
- Arendt, Hannah, Le système totalitaire, Paris, Seuil, 1972
- Arendt, Hannah, Sur l´antisémitisme, Paris, Seuil, 1973, 1.ª, 1951
- Browning, Christopher R., Ordinary Men, Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland, Penguin, 1998 (2.ª ed.)
- Browning, Christopher R., The Path to Genocide, Canto editions, 1995 (1.ª ed. 1992)
- Friedländer, Saul, «Some Reflections on the Historicisation of National Socialism, in Tel Aviv Jahrbuch fur Deutsche Geschichte, 1987
- Gellately, Robert, Backing Hitler. Consent & Coercion in Nazi Germany, , oxford University Press, 2001
- Goldhagen, Daniel Jonah, Hitler´s Willing Executioners, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, Inc., 1996
- Hilberg, Raul, Exécuteurs, victimes, témoins, Paris, Seuil (Folio Histoire), 1994
- Husson Édouard, Comprendre Hitler et la Shoah. Les Historiens de la République Fédérale Allemande depuis 1949, Paris, 2000
- Ingrao, Christian, «Conquérir, aménager, exterminer. Recherches récentes sur la Shoah», Annales, 58e. année, n.º 2, Mars-Avril, 2003
- Kershaw Ian, Qu´est-ce que le Nazisme. Problèmes et Perspectives d´Interprétation, Paris, 1992
- Levi, Primo, Les naufragés et les rescapés. Quarante ans après Auschwitz, Paris, Arcades Gallimard, 2003
- Levi, Primo, Se Isto É um Homem, trad. Simonetta Cabrita Neto, Lisboa Público, colecção Mil Folhas, 2002
- Mayer, Arno J., La «solution finale» dans l´histoire, Paris, La Découverte, 2002
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Nos 65 annos da libertação de Auschwitz, etapas que conduziram ao Holocausto

A historiografia mais recente sobre o Holocausto nazi considera que o mecanismo desse terrível acontecimento, enraizado num anti-semitismo biológico, procedeu por etapas, num processo em espiral de radicalização imparável. Ou seja, o regime hitleriano terá começado por definir a figura dos judeus e proceder ao boicote ao comércio judeu, em 1 de Abril de 1933, prosseguindo depois com a criação de legislação de exclusão dos judeus das profissões liberais e da função pública. Posteriormente, o regime nacional-socialista atribuiu um estatuto diferente aos judeus, através das leis de Nuremberga, em 1935, e veio então a expropriação e a «arianização» do património dos judeus, iniciada na «Noite de Cristal» de Novembro de 1938. Paralela ou posteriormente à “emigração”/expulsão do território alemão dos judeus, consoantes os territórios, os judeus foram sendo concentrados, enclausurados e isolados em guetos.

O historiador Robert Browning mostrou que o processo pelo qual, num período de 25 meses, entre Setembro de 1939 e Outubro de 1941, o regime nazi chegou ao extermínio de todos os judeus europeus sob domínio alemão, passou por duas políticas distintas: a reinstalação e a guetização. A chamada «questão judaica» deveria ser solucionada, segundo os dirigentes nazis e em particular Himmler, reinstalando os judeus a leste da Europa, através de expulsões forçadas e, concomitantemente, da dizimação dessas populações. Primeiro, Himmler encarou expulsar essas populações judaicas para o distrito de Lublin na Polónia e depois para a ilha de Madagáscar. O segundo processo foi a guetização dos judeus, “solução” essa que emergiu como resposta improvisada da parte das autoridades alemãs ocupantes locais, até que tivesse lugar a reinstalação final, planificada a nível dos mais altos escalões do governo nazi. Depois da «guetaziação», ocorreu a deportação dos judeus para os campos da morte e o assassínio em massa dos judeus. A política anti-semita teve, assim, um carácter cumulativo, por etapas, progredindo desde a discriminação profissional até ao extermínio.

Ou seja, se é certo que Hitler tinha um ódio visceral aos judeus e que essa obsessão patológica contribuiu para a radicalização da política anti-semita, ele não teve mais do que comunicar o seu objectivo último – expulsar os judeus do solo alemão – e depois ir dando o seu aval a medidas dispersas, mas cada vez mais radicais, tomadas pelos diferentes organismos no seio do Estado nacional-socialista. Ao competirem uns com os outros pelos favores de Hitler, os apaniguados nazis foram pondo em prática a sua retórica racial, através de iniciativas criminosas improvisadas, depois crescentemente dinamizadas até chegarem à «solução final da questão judaica». É certo que Hitler não deixou de ter um papel central e foi um participante activo e continuado no processo de tomada de decisão do Holocausto. No entanto, a sua participação foi quase sempre indirecta: de forma relativamente vaga, foi dando sinais, estabelecendo prioridades, objectivos, profecias e até «desejos.

Respondendo a esses sinais com extraordinário zelo, outros elementos da elite nazi foram depois definindo as linhas de actuação mais específicas, levadas à aprovação do Führer. Saber o que Hitler pensava, entre 1939 e 1941, implica ver o que Himmler fazia. A verdade é que, desde o burocrata do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim, ao chefe da administração militar da Sérbia, ao administrador do gueto de Lodz, passando pelos médicos da saúde pública do Governo-Geral da Polónia e pelos os “vulgares” polícias na reserva e esquadrões da morte (Einsatzgruppen) alemães, todos tiveram um papel no Holocausto.

Oficialmente, até 1938, as “únicas” discriminações relativamente aos judeus consistiam na expulsão da função pública, na expoliação/arianização dos seus bens e na emigração forçada. Na Alemanha, havia, em 1933, cerca de 525.000 judeus, dos quais perto de 37.000 fugiram logo depois da subida ao poder de Adolf Hitler. Depois, apesar das diversas medidas anti-semitas nos quatro anos seguintes, a “emigração” de judeus da Alemanha baixou para uma média de 25.000 pessoas por ano. A partir de 1938, devido a diversos acontecimentos, nomeadamente ao «pogrom» da «Noite de Cristal», em Novembro, a emigração-expulsão dos judeus alemães, aos quais se acrescentaram os austríacos, foi incentivada, pelo regime nazi, através do aumento da repressão. Nesse ano, fugira assim, da Alemanha e da Áustria “anexada”, 102.200 judeus.

De qualquer forma, em 25 de Janeiro de 1939, um memorando do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão especificou que o principal objectivo da sua política relativamente aos judeus consistia na emigração e, nesse ano, fugiram da Alemanha cerca de 144.000 judeus. Isto é, antes do início da II Guerra Mundial, quase metade dos judeus já tinham então «emigrado» dos territórios sob domínio alemão. No entanto, o começo da guerra com a invasão da Polónia, em 1 de Setembro de 1939, passou a dificultar a «emigração» dos judeus: por exemplo, enquanto que, em 1940, 15.000 judeus ainda puderam escapar dos territórios ocupados pelos alemães, já entre 1941 e 1944, isso apenas sucedeu relativamente a 17.000 judeus.

Por outro lado, apesar do desejo de tornar os territórios alemães Judenfrei («livres de judeus»), o Reich alemão ficou com mais três milhões de judeus da Áustria, da Checoslováquia e da Polónia, após o Anschluss, a ocupação dos Sudetas e o início da guerra. Em 21 de Setembro de 1939, pouco tempo depois da invasão da Polónia, Reynhard Heydrich, chefe da Gestapo-Sicherheit Dienst (SD), realizou uma reunião em Berlim, da qual resultou uma circular, dirigida aos Einsatzgruppen – esquadrões da morte que seguiam as tropas regulares da Wehrmacht, com o objectivo de matar civis -, acerca das operações que respeitavam aos judeus dos territórios ocupados. O objectivo de Heydrich era, no prazo de um ano, a deportação para uma província da Polónia dos mais de dois milhões de judeus sob controlo alemão, incluindo os que permaneciam no antigo território do Reich.

Em 30 de Outubro de 1939, Henrich Himmler, dirigente supremo das SS, emitiu a ordem de deportação de todos os judeus da Polónia para o Governo-Geral, sob a autoridade de Hans Frank. Este “recebeu” assim mais alguns milhares de judeus polacos evacuados dos territórios anexados pela Alemanha e protestou junto das autoridades Em Berlim. Em resposta ao protesto, Hermann Göring acabou por anular a transferência para o Governo-Geral, em Dezembro, e iniciou-se então a criação de guetos, o primeiro dos quais foi erguido na cidade polaca de Lodz, nesse mesmo mês.

Em Janeiro de 1940, a chefia das SS decidiu que os judeus incapazes de trabalhar seriam encarcerados em guetos, enquanto os outros seriam enviados para campos de concentração. O fecho dos guetos e o trabalho compulsivo dos judeus foram dessa forma dois elementos essenciais de um processo que culminou no Holocausto. Mesmo assim, ao surgir, em 22 de Maio de 1940, num memorando secreto de Himmler sobre o tratamento a ser dado aos diversos grupos étnicos de leste, a terminologia da «solução final» do problema judaica, esta ainda passava pela «emigração» dos judeus, ligada a uma solução territorial.

Efectivamente o chefe das SS esclareceu então que «o conceito de judeu» deveria ser totalmente «extirpado através da emigração de grande amplitude» de todos «em direcção a África ou outra colónia». No entanto, a solução encarada posteriormente viria a ser outra. Em 20 de Maio de 1941, o dirigente das SS, Walter Schellenberg, responsável pela direcção geral das polícias - RSHA -, em Berlin, enviou a todos os departamentos policiais, na Alemanha e em França, uma ordem de Göring, para travar a «emigração» de judeus deste país e da Bélgica. Como motivo, deu o da escassez de transportes, que estava a retardar e impedir a partida dos judeus da Alemanha, num momento em que estava a ser encarada a «solução final da questão judaica». Muitos historiadores assinalaram que, ao tornar-se impossível a «emigração» dos judeus, com o alastramento da guerra, começou a deportação para leste; ora, como os transportes estavam cheios, os nazis começaram a executar judeus no local.

É hoje em geral aceite a ideia de que o salto qualitativo e o último passo que separou a emigração forçada, o enclausuramento em guetos e os massacres locais, da destruição sistemática de judeus em campos de extermínio, foram atingidos no decurso da invasão da URSS, iniciada em 22 de Junho de 1941. Para os historiadores que, na sua maioria, não consideram que o chamado Holocausto – ou a Shoah – já estava decidido desde a subida de Hitler ao poder, o extermínio dos judeus teria surgido como um solução circunstancial, em resposta às dificuldades do regime, nomeadamente devido aos fracassos da Alemanha na URSS, invadida em Junho de 1941. Outros observam porém que o genocídio já tinha sido decidido mais cedo, nesse ano, e que, pelo contrário, foi posto em movimento ainda em plena euforia dos nazis, no período das primeiras vitórias obtidas na Frente Leste.

De qualquer forma, a operação «Barbarossa» - invasão da URSS - foi descrita desde logo, por Hitler como uma «guerra de aniquilação». Ainda em Março de 1941, quando já estava decidida a campanha da Rússia, o próprio Führer deu o tom, ao estabelecer, em Março de 1941, cinco medidas para a campanha da Rússia: dar plenos poderes aos Einsatzgruppen; flexibilizar o código de justiça militar; autorizar os oficiais e os soldados alemães a infligirem sevícias aos chamados «comissários do povo»; permitir-lhes cometerem excessos e difundir uma feroz propaganda anti-bolchevique. Por outro lado, para evitar fricções entre a Wehrmacht e as SS, representantes das duas instituições entenderam-se, em 5 de Março desse ano, sobre a divisão de competências.

Enquanto as Forças Armadas se ocupariam da frente de batalha, os homens de Himmler teriam a seu cargo «missões especiais» na retaguarda, com o fim de aniquilar o sistema soviético. Depois, na preparação da invasão da Rússia, foram emitidas duas importantes directivas de extermínio de civis apanhados na URSS. Por um lado, foram dadas instruções nesse sentido, em 10 de Maio, aos Einsatzgruppen, responsáveis pelo assassinato de cerca de dois milhões de pessoas nesses territórios. Por outro lado, em 6 de Junho, foi emitida a «ordem dos comissários» políticos soviéticos (Komissar Befehl), segundo a qual, «quando aprisionados em combate ou em resistência», estes deveriam ser «em princípio, imediatamente abatidos».

Esta «directiva para o tratamento a aplicar aos comissários políticos», deixou claro que, no «quadro da luta conta o bolchevismo», o «tratamento reservado aos prisioneiros», pelas forças alemãs, revelar-se-ia «odioso» e as instruções dadas aos Einsatzgruppen representaram uma etapa decisiva do genocídio dos judeus. É certo que a missão inicial destes batalhões da morte não consistiu em massacrar indistintamente os judeus, mas, sim, em «matar judeus – sobretudo homens adultos – bem como não judeus, suspeitos de serem quadros do aparelho político, militar e económico do regime bolchevique». Mas, desde o início e ao diferentemente do que ocorrera na frente ocidental, a campanha da Rússia foi particularmente atroz, não só porque foi uma guerra total, como porque os nazis consideravam as populações russas como sendo de «raça inferior» e compostas, na sua maioria, por judeus e por comunistas.

A guerra total contra a URSS foi o contexto em que as circunstâncias se fundiram com a ideologia anti-semita para levar a Alemanha nazi a precipitar-se na «solução final». Circunstâncias que, segundo alguns historiadores, se prenderam com os erros e revezes militares imprevistos sofridos pelos alemães nos campos de batalha da Rússia, e possibilitaram a escalada fatal da guerra contra os judeus. O fracasso da ofensiva alemã na URSS, no Outono de 1941, criou dificuldades aos oficiais SS nos territórios ocupados, especialmente na Polónia, e eles começaram a tomar a iniciativa do assassinato em massa. A travagem dos avanços da Wehrmacht, devido à resistência encontrada na URSS coincidiu com os massacres, perpetrados pelos exércitos regulares alemães e as forças SS, de 34.000 judeus - mulheres, crianças e velhos -, em Babi Yar e Odessa, em 29 de Setembro de 1941.

Há porém quem assinale que, em 19 de Setembro, dez dias antes do massacre de Babi Yar, o Einsatzgruppe A relatou ter morto 85.000 judeus e quem considere que foi logo em meados de Junho de 1941 que a máquina de extermínio nazi se pôs em marcha, ou seja, ainda num período em que as tropas alemãs estavam a sair vitoriosas na URSS. Foi logo em Junho que os Einsatzgruppen tomaram o controlo das unidades anticomunistas, encorajando e incitando aos «pogroms» “espontâneos” de judeus, praticados, nas primeiras semanas da invasão da URSS, por milícias, compostas por nacionais dos países bálticos e da Europa oriental, simpatizantes do nazismo.

Nesse mês, Himmler colocou brigadas SS junto dos Einsatzgruppen, para ajudá-los nos massacres, e estes, só no mês de Agosto, chacinaram 44.000 judeus. Neste mês, o chefe supremo das SS empreendeu uma digressão pela frente leste, para encorajar os seus homens. Confrontado com as queixas dos terríveis custos psicológicos que o massacre de mulheres e crianças estavam a causar entre os SS, ordenou aos seus cientistas experiências para encontrarem métodos de morte «mais humanos». Foi assim que começou a ser utilizado o Ziklon B, nas câmaras de gás.

No prazo de três meses a partir da invasão da Rússia, Heydrich informou Eichmann da decisão do extermínio de todos os judeus europeus. O uso da estrela pelos judeus foi imposto em 1 de Setembro de 1941 em todo o território alemão, e, em 14 de Outubro, foi ordenada a deportação dos judeus do território do Reich para os guetos de leste. Em Chelmno, iniciou-se o assassinato de muitos deles, pelo gás (ainda dos tubos de escape), em camiões e, no final do Outono, a «Solução Final» já estava em completo andamento. Durante o cerco nazi vitorioso de Vyasma e Bryansk, chegaram, em 1 de Novembro, oficiais SS a Belzec, para aqui instalarem um campo de extermínio.

Em 20 de Janeiro de 1942, Heydrich convocou a conferência de Wannsee, perto de Berlim, na qual foi programada, por diversos dignitários nazis, a «solução final». Embora, 3.000 portugueses constassem na lista dos judeus existentes na Europa, estabelecida na conferência de Wannsee, que determinou a «solução final», houve, anteriormente, entre os dirigentes e burocratas nazis, um debate acerca da aplicação das medidas anti-semitas, questionando se deviam ser aplicadas aos judeus de outras nacionalidades, ou se eram de admitir excepções relativamente aos de determinados países.

Em Wannsee, ficou então decidida a «evacuação dos judeus em direcção a leste, com a autorização do Führer, em substituição da «emigração», sendo afirmado que, embora provisório, aquela opção já constituía «uma experiência prática muito significativa para a próxima solução final da questão judaica» europeia. Esta abrangeria «mais ou menos 11 milhões de judeus de diversos países». Em Março, iniciaram-se, em toda a Europa ocupada pela Alemanha, as operações genocidas e, no Verão, a terrível máquina de extermínio foi posta em marcha.

Na Polónia, os guetos foram dissolvidos e os seus ocupantes, tal como os judeus, de França – tanto a ocupada como a «livre» de Vichy -, da Bélgica e da Holanda, começaram a ser deportados para os campos de extermínio da Polónia. Em Chelmno e Maidanek, os motores «a diesel» dos camiões, que haviam servido para assassinar milhares de judeus, foram substituídos pelo gás Zyklon B, que permitiu a «industrialização» da morte, levada a cabo nos campos de extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka.

Com o início do funcionamento das câmaras de gás do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em Junho de 1942, os nazis passaram à fase aberta do genocídio planificado e sistemático. Em 5 de Outubro, Himmler ordenou a deportação de todos os judeus nos territórios sob ocupação alemã para Auschwitz. Em Dezembro desse ano, cerca de 75% das vítimas do Holocausto já tinham sido mortas. Raul Hillberg chamou a atenção para o facto de, entre a tomada do poder, em 1933, e o final de 1940, os nazis terem assassinado cerca de 100.000 judeus. No ano seguinte, foram mortos 1.100.000 judeus, em resultado da guetização, dos massacres periódicos na Polónia e dos assassinatos perpetrados pelos Einsatzgruppen e por outras unidades alemãs, no leste.

Em 1942, foram assassinados mais judeus - 2.700.000 - do que em todos o período anterior da vigência do nacional-socialismo no poder. No Verão desse ano, foram assassinados os judeus da Sérbia capturados pelos alemães e iniciou-se a deportação dos judeus que ainda permaneciam no «Grande Reich» alemão, no Protectorado da Boémia e Morávia, nos Países Baixos, na Bélgica e em França. No Outono, começaram, por seu turno, as deportações para os campos de extermínio dos judeus da Noruega ocupada. Em 19 de Março de 1944, a Alemanha ocupou Hungria e forçou à formação de um governo germanófilo, encabeçado por Dome Sztojay, que colaborou em toda a linha com os mandatários de Eichmann. Este foi enviado a Budapeste para dirigir as deportações de cerca de meio milhão de judeus húngaros destinados a Auschwitz, onde foram exterminados, entre 2 de Maio e 21 de Setembro de 1944. Só no mês de Agosto de 1944, 10.000 da Hungria foram diariamente massacrados nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau.
(também aqui)

A situação das mulheres no século XX Português (2 )

Marina Abramović performing Gina Pane's 1973 piece,The Conditioning, 2005. Photo:Tony Cenicola

A mulher no trabalho

Como se viu, o regime salazarista pretendeu o retorno da mulher ao lar. Em 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional estipulou que o trabalho feminino «fora do domicílio» seria regulado por «disposições especiais conforme as exigências da moral, da defesa física, da maternidade, da vida doméstica, da educação e do bem social».

No ano seguinte um diploma decretou que, enquanto houvesse homens desempregados, não seria permitida «em muitas indústrias, o recurso abusivo à mão-de-obra mais barata fornecida pelas mulheres e pelos menores».

Em muitas empresas, as mulheres foram substituídas por homens e remetidas para tarefas não diferenciadas e mal pagas. Não só as mulheres ocupavam postos laborais na situação de «auxiliares» e «aprendizes», o que fazia delas realmente a mão-de-obra mais barata, como auferiam salários «mínimos» menores que os dos homens para o mesmo trabalho.

No entanto, o propósito do regresso das mulheres ao lar não se tornou uma realidade. Em 1950, 22,7% da população activa total era do sexo feminino. Na indústria, onde a presença feminina foi sempre maioritária nos têxteis, no tabaco e no vestuário, bem como nos sectores de trabalho intensivo, precário e não especializado, a percentagem da população feminina aumentou de forma imparável dos anos cinquenta.

Maria Lamas descreveu então a situação do trabalho feminino:

«No povo não há, praticamente, mulheres domésticas. Todas trabalham, mais ou menos fora do lar. Quando não são operárias, são trabalhadoras rurais, vendedeiras, criadas de servir ou “mulheres-a-dias”. (….) Seria quase impossível mencionar todas as suas ocupações que vão do roçar mato aos mais delicados bordados, sem contar com as grandes industrias em que ela ocupa lugar predominante».

Depois a década de 60 foi aquela em que as mulheres acedem, maciçamente, ao trabalho industrial e dos serviços, em muitos casos, para substituir a mão-de-obra masculina, que se ausenta para o estrangeiro e para África.

O Estado Novo proibiu ainda o trabalho das mulheres na administração local, na carreira diplomática, na magistratura judicial e em postos de trabalho no Ministério das Obras Públicas, até 1962. Por outro lado impôs também restrições de vária ordem a certas profissionais: as professoras primárias tinham de pedir autorização ao Ministério da Educação para se casarem, enquanto outras profissionais eram impedidas de contrair matrimónio: foram os casos das telefonistas da Anglo Portuguese Telephone, até 1939, das enfermeiras dos Hospitais Civis, até 1962, do pessoal feminino do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e das hospedeiras de ar da TAP, até 1974.

Apenas em 1967, por outro lado, o novo Código Civil eliminou a necessidade de a mulher pedir o consentimento do marido para exercer profissões liberais ou funções públicas, publicar obras ou ter actividades lucrativas.

As mulheres no ensino

No ensino, como no mercado de trabalho, também se assistiu a uma tensão desencontrada entre, por um lado, o desejo estatal de uma educação mínima para as raparigas e, por outro lado, o desejo privado que elas e as suas famílias tiveram de se inserir cada vez mais nos vários graus de ensino.

Se a escolaridade feminina era muito inferior à masculina, nos anos trinta, em 1960, ela já era quase idêntica à masculina e no ensino secundário, já havia mesmo mais raparigas do que rapazes. A crescente feminização do ensino liceal não deixou de preocupar o regime, no seio do qual houve a veleidade – porém não sucedida – de instituir programas especificamente femininos e de canalizar as jovens para as Escolas do Magistério Primário e para o ensino técnico.

Ligada ao propósito de incentivar uma educação especificamente feminina esteve também o regime de separação de sexos que culminou em 1949, com a proibição da co-educação, que porém nunca se efectivou totalmente, por ausência de condições logísticas.

No ensino superior, as jovens só constituíam 16,5% em 1940, mas já eram 29,1% em 1960/61, embora elas só fossem então maioritárias nas Faculdades de Letras e de Farmácia e muitas não concluíssem os seus cursos.

A feminização também sempre se fez sentir no seio do professorado primário e das regentes escolares e, embora menos no professorado do ensino secundário, este também se feminizou progressivamente, constituindo as mulheres, em 1960, 56% dos professores liceais.

O período «marcelista»

Durante o período «marcelista», uma das primeiras leis, em Dezembro de 1968, declarou a igualdade de direitos políticos do homem e da mulher. Permaneciam porém as desigualdades nas eleições locais onde só os chefes de família podiam ser eleitores das juntas de freguesia e as mulheres tinham de saber ler e escrever, o que não era exigido aos homens.

Em 1969, a mulher casada passou a poder atravessar as fronteiras sem licença do marido e foi adoptada, embora sem ser aplicada, a norma «para trabalho igual, salário igual». Em 1971, o artigo 5ª da constituição portuguesa que mantinha a expressão «salvas quanto às mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família» foi alterado, caindo a expressão «bem da família».

O 25 de Abril e o período democrático

Com o 25 de Abril de 1974, iniciou-se um período em que a vida dos portugueses e, nomeadamente das portuguesas, mudou muito. Muitas mulheres tomaram consciência da opressão e das discriminações em que viviam e passaram a intervir na luta pela cidadania no trabalho e na sociedade, reivindicando mudanças e saindo à rua, com reclamações igualitárias. Surgiram também novas organizações de mulheres, assim como associações relacionadas com a despenalização do aborto e pela difusão da contracepção.

No entanto, as mudanças originadas pelo 25 de Abril não foram acompanhadas na vida política. Na Assembleia Constituinte (1975) e na primeira Assembleia da República (1976), só 19 dos 274 constituintes e 13 dos 263 primeiros deputados eram mulheres. Também as mudanças legislativas carecem ainda de total aplicação.

Numerosas foram, porém, as alterações a nível jurídico que abriram o caminho à transformação da situação das mulheres portuguesas. Logo em 1974, em que pela primeira vez o direito de voto se tornou universal e em que Maria de Lourdes Pintassilgo se tornou na primeira mulher a ter um cargo ministerial em Portugal – na pasta dos Assuntos Sociais -, três diplomas possibilitaram às mulheres cargos da administração local, a carreira diplomática e a magistratura judicial.

Nos dois anos seguintes, foi alterado o artigo da Concordata que impedia os casados pela Igreja católica de se divorciarem, foi abolido o direito de o marido abrir a correspondência da mulher e foi introduzida a licença de maternidade de noventa dias, mais tarde prolongada para noventa e oito dias dias.

Em 25 de Abril de 1976, entrou finalmente em vigor a nova Constituição que estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios e, em 1978, desapareceu, no novo Código Civil, a figura de «chefe de família». No direito de família, mulheres e homens passaram a ter um estatuto pleno de igualdade, no direito de família.

Em 1979 e 1980, a lei declarou a igualdade em oportunidades e tratamento no trabalho a homens e mulheres e Portugal ratificou a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres

Em 1983, entrou em vigor o novo Código Penal que introduziu inovações no que dizia respeito aos maus-tratos entre cônjuges e à falta de assistência à família e despenalizou a prostituição, punindo mais severamente o proxenetismo. Os crimes de violação e de maus-tratos a cônjuges foram depois agravados no Código Penal, em 1995.

A partir de 1991 e 1992, as mulheres passaram a poder candidatar-se voluntariamente em condições de igualdade com os homens à prestação de serviço militar nas Forças Armadas na Força Aérea e, a partir de 1993, na Marinha.

Em 1997, na 4.ª revisão constitucional, a Lei considerou tarefa fundamental do Estado a promoção da igualdade entre homens e mulheres e o princípio de não discriminação em função do sexo no acesso aos cargos políticos. Dois anos depois, foi porém rejeitada na AR uma proposta de lei do governo para garantir maior igualdade de oportunidades na participação de cidadão de cada sexo nas listas de candidatura apresentadas nas eleições para a AR e Parlamento Europeu.

Em Fevereiro de 2007, após um referendo, foi finalmente despenalizada a IVG até determinado número de semanas.

Muito foi conseguido desde o início do século XX, mas as mulheres ainda têm de continuar a lutar, como todas as feministas que nos antecederam, pela mudança social para acabar com a injustiça contra as mulheres enquanto mulheres, para que as leis sejam aplicadas, para não perderem o que já conquistaram, pela igualdade plena, pela paridade e pela liberdade.

Vozes Insubmissas
Camara Clara, 22 junho 2008

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