(A propósito do «Simpósio Internacional sobre o Tarrafal», 28/4-1/5/2009)
Os primeiros directores do campo
No mesmo navio Luanda, onde viajaram os primeiros prisioneiros do Tarrafal, vinham, além de elementos da Guarda Nacional Republicana (GNR), uma brigada da PVDE, dirigida por Gomes da Silva, que ficou com supervisão da vigilância do campo, confiada a 20 a 30 guardas europeus, reforçados por 8 agentes da PSP, e a uma Companhia Indígena de soldados angolanos. No navio, vinha também o capitão de artilharia Manuel Martins dos Reis, que iria desempenhar a função do primeiro Director do Campo de Concentração, após ser director da Fortaleza de S. João Baptista.
Logo à chegada ao Tarrafal, Manuel dos Reis ou «Manuel dos Arames», devido à vontade de tudo cercar com arame farpado, vociferou aos presos: «Vocês aqui não têm direitos, só têm deveres a cumprir. E não se iludam – quem entra aquele portão é para morrer. Vão todos cair como tordos!». Este director «entretinha-se» a roubar as coisas que os familiares dos presos lhes mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro Vermelho Internacional e chegando mesmo a montar uma cantina onde vendia as coisas roubadas.
O período entre 1937 e final de 1939, em que Manuel dos Reis e, depois, como se verá, João da Silva foram directores, com um ligeiro abrandamento durante a curta vigência de José Júlio da Silva foi apelidado de «período agudo» do Tarrafal. Ocorreu no contexto da consolidação fascizante do novo regime salazarista, perante a iminência do novo «perigo espanhol» desencadeado pela Guerra Civil, e no decurso do início da II Guerra Mundial. Nos «períodos agudos», os livros eram apreendidos, a correspondência era violada e retida, os medicamentos não entravam no campo e o escasso pessoal médico tardava em aparecer para tratar das emergências.
Em 1937, Manuel dos Reis mandou erguer a frigideira, para onde foram enviados, em 2 de Agosto, 17 prisioneiros participantes na primeira tentativa de fuga falhada do Tarrafal, que foram depois enviados para a construção de uma vala e um talude em redor do campo. No total de 200 reclusos que estavam implicados na construção da vala e do Talude, cerca de uma dezena ficou de pé a tratar dos outros que se encontravam acamados. O estado físico de todos era tão débil que, a 14 de Setembro, as obras na vala foram interrompidas. A maior parte dos prisioneiros recolheu à enfermaria, ou mitra, morrendo só nesse mês seis deles.
Os escândalos da actuação de Manuel dos Reis levaram à sua demissão. Foi substituído interinamente pelo capitão José Júlio da Silva, em Dezembro de 1937, que melhorou a alimentação, atenuou a dureza dos trabalhos e regularizou a troca de correspondência com os familiares, começando a chegar com regularidade os medicamentos. Foram então inaugurados, em substituição das tendas degradadas, os pavilhões em pedra, usados como casernas, para quarenta ou cinquenta homens.
Em Outubro de 1938, a direcção do campo passou para o capitão João da Silva («O Faraó»), que, segundo o preso João Faria Borda, tinha feito parte de uma comissão de militares encarregada de estudar, na Alemanha nazi, o funcionamento dos campos de concentração, que Hitler começou a construir. João da Silva vinha acompanhado pelo torcionário Henrique Sá e Seixas da PVDE (que, na PVDE do Porto, espancava os presos políticos com uma porta a que chamava «Arriba Espanha»), o capitão Duarte Osório Fernandes, e pelos guardas Epifânio Mateus, Travessa, e Carlos Silva.
Segundo os presos, à imagem dos campos de concentração nazis, João da Silva tinha a ideia de levar os presos a renegarem as suas convicções e ideias políticas, levá-los a abraçar o Fascismo e a traírem os seus camaradas, transformando-os em «rachados», através de regalias. O pavilhão dos rachados foi inaugurado, a 29 de Abril de 1939, com 32 rachados e passou a ser designado Porta-Aviões. Esta vontade de João da Silva de «reeducar» ou «regenerar» os presos, levando-os para o bom caminho de apoio ao regime assemelhou-se aos propósitos dos nazis em Dachau. Ou seja, de fazer «homens novos» dos prisioneiros, transformando os adversários políticos e os inimigos sociais, em adeptos do nacional-socialismo, mediante medidas de educação positiva (propaganda e correcção) ou negativa (punição e eliminação). No entanto, os rachados foram raros e o desejo de procurar adesões ao regime não foi uma preocupação central desse campo. O Porta-Aviões acabou por ser desmantelado, quando o Capitão Olegário Antunes assumiu a direcção do Campo.
Na direcção de João da Silva, o abastecimento da água passou a ser feito pelos presos, a alimentação piorou, as encomendas dos familiares foram reduzidas e a Frigideira funcionou sistematicamente – entre 1938 e 1940, os castigos na Frigideira contabilizam um total de 2000 dias, o que corresponde a quase metade dos castigos aplicados entre os anos de 1936 e 1945. Foi também criada a Brigada Brava, constituída principalmente pelos reclusos castigados, que eram obrigados a trabalhar de manhã e à tarde, sem interrupção, apenas com permissão para beber água duas vezes de manhã e duas vezes à tarde.
Foi durante a direcção de João da Silva, que também os trabalhos forçados, à semelhança de Dachau, foram encarados como instrumento de controlo social num contexto, à vez, de embrutecimento, punição, humilhação e também de enfraquecimento a resistência física dos prisioneiros a fim de melhor quebrar a sua força moral. Segundo esse director, não havia horas para começar nem para terminar o trabalho, que decorria das 6 horas e 15m da manhã até ao pôr-do-sol, tendo pelo meio um pequeno intervalo para almoçar.
Assistência Médica: doenças e mortes
A assistência médica é um factor que pode aquilatar o que se pretendia ao encarcerar os presos no Tarrafal. Ou seja, não os carcereiros não pretendiam matar com as suas mãos os prisioneiros, mas deixar que a «natureza» fizesse o seu trabalho Durante um ano, o Campo funcionou sem nenhum acompanhamento médico, contrariamente ao DL n.º 26 643, existindo apenas havia um posto médico, usado também como casa mortuária, onde os presos eram assistidos por um enfermeiro do Centro de Saúde do Tarrafal.
Em Abril de 1937, chegou um médico, Esmeraldo Pais Prata, que desde logo disse: «Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito». Com a alcunha de «O Tralheira», este primo de Mário Pais de Sousa, então Ministro do Interior e natural de Santa Comba Dão, de onde era também natural Oliveira Salazar, era um admirador da Alemanha nazi e sentia um ódio muito grande pelos comunistas. «O termómetro e os clisteres eram os únicos medicamentos» e o certo é que até à chegada do «milagroso» médico-preso, Dr. Manuel dos Reis, que começou a auxiliar o «Tralheira», as chamadas «biliosas» já tinham morto vinte reclusos.
As doenças mais frequentes no Tarrafal foram o paludismo e a tuberculose. Segundo Cândido de Oliveira, numa população de 220 reclusos, houve, até, 1943, 42 (52 em 1944) casos de tuberculose e 65 doentes com «biliosas», entre os quais 14 morreram, até 1944. Só em 4 dias de Setembro de 1937, morreram 6 presos com essa doença, e, entre 1936 e 1954, faleceram 32 ou 33 reclusos, a maioria deles com biliosas ou perniciosas, por insuficiência de tratamento anti-palúdico e condições de higiene e alimentação deficientes. Em 1948, ainda morreram Artur Oliveira, de paludismo em 22/8, João da Graça Tarujo, a tiro, em 28/9, Joaquim Marreiros, de ulcerado estômago em 3/11 e António Guerra, de tuberculose em 28/12.
Mudanças no final da guerra
À medida que a II Guerra Mundial estava a correr de feição aos aliados, o exemplo alemão, nomeadamente dos seus campos de concentração, foi sendo abandonado. Não por acaso, José Olegário Antunes (O Arreda), director do Campo entre 1940 e 1943, apesar de ser agressivo, autorizou o regresso ao estudo e à biblioteca, permitiu a entrada de livros e papel, bem como a prática de jogos de bola. A actuação dos guardas diminuiu de violência e os castigos na Frigideira tornaram-se menos frequentes. O trabalho tornou-se menos pesado, sendo posto fim à Brigada Brava, e a alimentação e os cuidados médicos melhoraram ligeiramente a partir de 1941.
Olegário Antunes foi substituído na direcção do Campo, pelo Capitão Filipe de Barros, em Janeiro de 1943. Os livros enviados pelas famílias, que haviam sido apreendidos, foram devolvidos aos destinatários e foi organizada a biblioteca.
Os deportados organizaram «jogos florais», uma sessão de «fado e guitarradas», num Natal, e até encenaram uma peça de teatro escrita por um preso, que era uma paródia a Hitler e Mussolini. Em 1944, passou a ser autorizado que os reclusos recebessem alguns jornais e ouvissem a rádio, se bem que só as emissoras nacionais. Por outro lado, notaram-se melhorias na assistência médica, na alimentação, bem como no fornecimento e tratamento da água. Em Janeiro de 1945, Filipe de Barros foi substituído na direcção do campo por David Prates da Silva.
Terminada a guerra com a derrota dos nazi-fascistas e o desmantelamento dos campos de concentração e de extermínio nazis, descobertos pela opinião pública, e sob o efeito de fortes pressões internacionais, o governo promulgou uma amnistia, que levou à libertação de 110 presos no Tarrafal, onde permaneceram cerca de 52 detidos políticos, entre os quais se contavam os ex-marinheiros da Revolta de 1936. Entretanto, nas mudanças de cosméticas feitas por Salazar, no final da II Guerra, para dar a entender que o regime se diferenciava dos que tinham sido derrotados, contou-se a entrega do Tarrafal, bem como do forte do Peniche, ao Ministério da Justiça, pelo Decreto-Lei n. 35.046, de 22.10.1945.
No entanto, a esperada liberalização ou mesmo o fim do regime salazarista não aconteceu e, a partir de 1947, Salazar recompôs as suas forças e endureceu a repressão. Na sequência do chamado «julgamento dos 108», Francisco Miguel, um dos comunistas amnistiados em 1945, voltou ao Tarrafal, onde permaneceu, entre 1951 e Janeiro de 1954. Aí reencontrou aliás o grupo de marinheiros da revolta de 1936, chegados na primeira leva ao Tarrafal, onde ficaram ininterruptamente presos até final de 1953.
O campo deixou de funcionar para presos políticos a partir de 1.1.1954, por despacho do ministro da Justiça Manuel Cavaleiro de Ferreira, mas continuou aberto para delinquentes comuns de difícil correcção até à abertura da colónia penal de Angola. Foi legalmente encerrado, pelo D-L n.º 40. 675, de 7 de Julho de 1956, que criou a colónia penal do Bié, para onde foi transferido o corpo de funcionários. Como se sabe, a história do Tarrafal enquanto campo de concentração não acaba aqui. Depois dos acontecimentos em Angola, em 1961, o DL n.º 43.600, de 14 de Abril desse ano previu a criação de um estabelecimento penal na ilha de Santo Antão, também em Cabo Verde, destinado ao cumprimento de medidas de segurança de internamento dos condenados pelos tribunais das colónias africanas.
O diploma previu ainda a possibilidade da criação, por portaria, «em cada província ultramarina de estabelecimentos prisionais provisórios». Foi assim que foi instituído, pela portaria n.º 18.539, de 17.6.1961, assinada por Adriano Moreira, um «campo de trabalho» em «Chão Bom» – nomes diferentes dados ao mesmo campo de concentração do Tarrafal. Seguindo dessa feita o governo francês, que, durante a guerra da Argélia, tinha emitido, em Outubro de 1958, uma ordonnance consagrando uma medida de internamento administrativo de «toda a pessoa perigosa para a segurança pública, em razão da ajuda que dê aos rebeldes argelinos», o governo português passou a enviar para o Tarrafal «condenados em penas de prisão nas províncias ultramarinas ou sancionados com a medida de segurança de fixação de residência fora dessas províncias».
Bibliografia
- José Manuel Soares Tavares, O Campo de Concentração do Tarrafal (1936-1954). A Origem e o Quotidiano, Lisboa, Edições Colibri, 2006.
- «Homenagem aos sobreviventes», por António Melo e Edmundo Pedro, Público, 25/1/2004.
- Memória do Campo de Concentração do Tarrafal, Fundação Mário Soares/Fundação Amílcar Cabral, 2009.
- Paulo Pinto de Albuquerque, A Reforma da Justiça Criminal em Portugal e na Europa, Almedina (colecção teses), Outubro de 2003.
21.Mai.2009