19.4.10

Como Hermínio da Palma Inácio escapou à PIDE

Mário Soares, num livro escrito no exílio no início dos anos setenta do século XX, assinalou as tremendas derrotas para a PIDE que constituíram as dificílimas fugas da cadeia de diversos dirigentes do PCP e, em 1969, do «dirigente revolucionário do L.U.A.R., Hermínio da Palma Inácio, que nesse momento era concerteza (sic) o homem mais vigiado e bem guardado do País». Antes dessa fuga, que foi aliás a última de um estabelecimento prisional gerido pela polícia política de Salazar e Caetano, já Hermínio da Palma Inácio tinha conseguido escapar da prisão do Aljube, em 1949, após ter sido detido em 6 de Setembro de 1947, na sequência da sabotagem de avionetas, na tentativa falhada de golpe da «Mealhada» contra o regime ditatorial. No Aljube, frente à Sé de Lisboa, todas as janelas eram então «gradeadas, menos uma, pequenina, numa arrecadação à altura de um 5.º andar, a caminho do gabinete de inspecção médica». Palma Inácio enrolou lençóis nas pernas, debaixo das calças, e meteu-se na fila para aí ser atendido, às 8 horas da manhã. Aproveitando um momento de ausência do guarda, utilizou os panos como corda e escapou-se para o pátio, 15 metros abaixo. Já na rua, um guarda fez frente a Palma Inácio, que o derrubou e desapareceu.

Rigorosamente vinte anos depois dessa fuga, Hermínio da Palma Inácio voltou a escapar, em 8 de Maio de 1969, da prisão da delegação da PIDE do Porto. Tinha sido novamente detido, em 20 de Agosto de 1968, na falhada tentativa de ocupação da Covilhã por brigadas da LUAR, começando por ficar no forte de Caxias, antes da de ser transferido para o Porto, para ser julgado. No princípio de 1969, um inspector superior da DGS dera conhecimento a José Barreto Sacchetti, director dos serviços e Investigação, de uma futura tentativa de introdução, por Helena Palma, irmã de Hermínio da Palma Inácio, na prisão de Caxias, de umas serras, dissimuladas nas capas de uma agenda. No entanto, dias depois da data prevista para a visita de Helena Palma ao irmão, o responsável pelo forte de Caxias, inspector da PIDE Gomes da Silva, assegurou, numa carta à direcção dessa polícia que nada tinha sido entregue àquele recluso. Sacchetti seria porém posteriormente informado por Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, respectivamente subdirector e chefe dos serviços de Informação da polícia política, de que a agenda já se encontrava em poder de Palma Inácio.

Veja-se como tudo se passou. Para protegerem um informador da polícia infiltrado na LUAR, Ernesto Castelo Branco («Canário»), a quem a irmã de Palma Inácio tinha dado conta da vontade de fuga deste, Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso entregaram uma serras ao “colaborador” da PIDE. Ernesto Castelo Branco remetera as serras à irmã de Palma Inácio, que, por seu turno as entregara a este, escondidas na capa almofadada de uma agenda. Partindo para Londres, onde residia, a irmã apurara que a encomenda só tinha chegado às mãos de Palma Inácio, quatro semanas depois. Mal sabia a irmã de Palma Inácio que «a sua artimanha era já do conhecimento da PIDE», mas que esta «foi impotente para desfazer o engenho do processo utilizado» (Diário de Lisboa, 3/5/1974), pois nada conseguira encontrar na revista ao embrulho com a agenda. Foi, assim, que a fuga de Palma Inácio contou com a ajuda, embora involuntária da… própria PIDE/DGS, apesar de alguns dos seus elementos o negarem mais tarde.

O inspector da PIDE/DGS, Abílio Pires, garantiria, após 25 de Abril de 1974, ter sido ele próprio a comprar as serras, para proteger o infiltrado no seio da LUAR, afirmando que a fuga de Palma Inácio valia bem a protecção de um informador. Após ser preso, depois de 1974, o informador infiltrado na LUAR, Ernesto Castelo Branco, confirmaria ter sido ele a entregar as serras à irmã de Palma Inácio e a avisar Pereira de Carvalho da introdução das mesmas no forte de Caxias. Castelo Branco acrescentaria que, após a fuga de Palma Inácio, utilizando as serras, Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso se tinham zangado com ele e que as relações entre o informador e a PIDE haviam esfriado.

Fernando Pereira Marques, outro membro da LUAR que estava detido na mesma cela da delegação da PIDE do Porto, para onde Hermínio da Palma Inácio fora transferido de Caxias, com o objectivo de ambos serem julgados naquela cidade nortenha, também descreveu mais tarde a «fuga que deixou a PIDE verdadeiramente desesperada pela sua ineficácia». Lembrando que, «devido a traição de um tipo chamado Castelo Branco, a PIDE soube que iam ser introduzidas serras, na prisão, para Palma se poder evadir, sabendo a polícia como se processaria a passagem das serras trazidas de Londres por uma irmã deste», Pereira Marques relatou que a própria polícia não descobrira porém onde o utensílio para a fuga estava escondido. Ao ser transferido para o Porto, Palma Inácio conseguira levar as serras, com as quais serrara as grades durante as noites de chuva, disfarçando cada corte com uma massa de pão e cinza.

Pelo testemunho de Mário Soares, ao qual a irmã de Palma Inácio recorrera como advogado, sabe-se que era vontade do irmão que o julgamento fosse adiado até chover. À beira de ser novamente transferido para Caxias ou para o forte de Peniche, Palma Inácio iniciou a fuga, precisamente numa noite de chuva, ajudado por Pereira Marques. Ambos tiraram os parafusos da bandeira da janela, que este último voltou a colocar, após o fugitivo atravessar o patamar, deslizar sobre um telhado de zinco, visível da janela do piquete da PIDE/DGS, o que demorou quase uma hora. Saltou, em seguida, para a rua, caindo por trás da guarita do guarda, que, devido à chuva, estava dentro do seu abrigo, e passou assim diante deste. Pereira Marques conseguiu depois que o alerta fosse dado o mais tarde possível, pelo que os guardas prisionais só se aperceberam da fuga, pelas 9 horas da manhã. Refira-se ainda que, na sequência de um inquérito relativo à fuga de Palma Inácio, conduzido no seio da PIDE/DGS pelo inspector Fernando Gouveia, foram suspensos do serviço um chefe de brigada e um agente de 2.ª classe dessa polícia, respectivamente António de Matos Pais e Rogério Guimarães Lages, bem como o guarda prisional Fernando Martins de Lemos.

Fontes e bibliografia

- Arquivo do Ministério da Administração Interna (MAI) no IANTT, Gabinete do ministro, caixas 011 («Ministério das Comunicações») e 359 («Pessoal»)
- Arquivo da PIDE/DGS no IANTT, proc. 457 GT, Hermínio da Palma Inácio, fls. 45, 50 e segs. e 54
- Arquivo do Tribunal Militar, Ernesto Castelo Branco, proc. 14/80 do TMT de Lisboa, fls. 187-199
- A Capital, 25/2/1975, pp. 12-13
- «O aventureiro da liberdade perdida», Visão, 16/6/1994, pp. 40 e 42
- Bruno de Oliveira Santos, Histórias Secretas da PIDE/DGS, Lisboa, Nova Arrancada, 2000, p. 121
- Mário Soares, Portugal Amordaçado, Depoimento sobre os Anos do Fascismo, Lisboa, Arcádia, 1974, pp. 260-262

Como complemento, ler:
24.Jul.2009