19.4.10

Lisboa, capital europeia da espionagem (2)

(A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.)
O desmantelamento de redes alemãs e a criminalização da espionagem estrangeira

Em Abril de 1942, Alexander Cadogan, da embaixada inglesa, denunciou, ao governo de Salazar, alguns portugueses e alemães, acusados de espionagem a favor da Alemanha, entre os quais se contavam Cecil Adolf Nassenstein e Vollbrecht, ambos da Gestapo-SD, bem como o português Mário da Conceição Silva, proprietário de uma transportadora marítima. Haveria, por outro lado, uma denominada «organização de Bremen», com agentes em Lisboa, na Madeira, nos Açores (Horta) e em Angola (Luanda e Lobito), alguns dos quais foram presos e outros expulsos do país, da qual faziam parte os alemães Hans Friderick Grimm e Hans Scholz, elementos da Abwehr.

Depois, os britânicos continuaram a informar Salazar, sobre novos casos de espionagem alemã, em Moçambique, Angola, no Estoril, no Porto e em Lisboa. Até no Algarve, o guarda do farol do Cabo de S. Vicente, sargento Francisco Regêncio, foi acusado de transmitir informações sobre os navios aliados. No início de Março de 1943, Salazar recebeu, do embaixador britânico, um organigrama sobre as redes de espionagem do Eixo, em Lisboa, elaborado pelo comandante Austin Walsh, delegado oficial do serviço de Inteligência britânico, com uma lista dos portugueses que trabalhavam para a Alemanha.

Além da estrutura organizativa «Uxis», dirigida por Kurt Mezza Silva Foerster, representante em Portugal dos caminhos-de-ferro alemães, e pelo italiano Arturo Omerti, que contava com a colaboração de Richard Schubert e Kuno Weltzien (representante em Portugal da Krupp), havia ainda a rede de Hans Bendixen, da qual faziam parte Ernst Schmidt, representante da firma AEG no Porto, bem como empregados da Radio Marconi e jornalistas portugueses, entre os quais se contava Carlos da Mota Marques. Em 8 de Outubro de 1943, uma brigada da PVDE fez uma rusga às moradias «Bel Ver», «Gira-Sol» e «Bem-me-Quer», no Estoril, as últimas das quais pertencentes, respectivamente, a Wilhelm Lorenz e a Hans Bendixen. Embora ali tivessem encontrado um receptor e outro «aparelho de marca hallicrafter, tipo Super Defiant», a PVDE afirmou nada ter encontrado de «suspeito».

Nesse período em que estavam a ser detectadas e desmanteladas redes alemãs em Portugal, Salazar resolveu entretanto criminalizar a espionagem de estrangeiros contra «terceiros» em Portugal, em 7 de Junho de 1943. Essa alteração ao Código Penal, que beneficiava então aos britânicos, esteve certamente ligada às sucessivas vitórias aliadas, mas coincidiu também com a condenação à morte, em Londres, em 2 de Abril de 1943, do português Rogério Magalhães Peixoto de Menezes, acusado de espionagem a favor dos alemães. Portugal tinha assim todo o interesse em revelar boa vontade com a Grã-Bretanha, para obter a comutação da pena capital, que efectivamente acabou por ser substituída pela prisão perpétua, em 26 de Maio. Após ter estado seis anos preso, Menezes acabou por ser libertado e deportado para Portugal, em final de 1949.

A PVDE também instruiu um processo de averiguações sobre o caso Menezes, em que foram constituídos diversos arguidos, entre os quais se contavam os já referidos Mezza da Silva Foerster e Arturo Omerti, além do alemão Amadeus Ludwig Kaes e o português Desidério Miranda, antigo membro do Conselho Nacional do Ar, frequentado por Ernst Scmidt. A PVDE concluiu que essa actividade de espionagem, que incluía a procura de informações sobre a aviação comercial inglesa e americana, em Cabo Ruivo, passava ainda pelo delegado da Deutsche Lufthansa em Lisboa, Ulrich Graf von Beroldingen, o qual acabou por ser ilibado da acusação, enquanto Foerster, Omerti e Schmidt foram expulsos de Portugal.

Por sua vez, Vollbrecht e Nassenstein, funcionários da Legação alemã em Lisboa, foram enviados em residência fixa para Almeida, os alemães presos da organização «Grimm» foram trocados por agentes ingleses, enquanto os portugueses foram encarcerados em Peniche. A repressão policial só se abateu, assim, sobre os portugueses, facto que motivou protestos dos ingleses, que continuaram a denunciar agentes da Alemanha, mas, sem sucesso, pois que a lei sobre «espionagem em solo estranho», instituída em 7 de Junho de 1943, não tinha efeitos retroactivos. No início de 1945, foi ainda preso, no Porto, juntamente com um português e três germano-brasileiros, o alemão Dietrich Peter, instrutor de aparelhos TSF, através dos quais transmitia informações para um posto em Stuttgart. Aproximava-se, porém, o fim da guerra, com a derrota dos nazi-fascistas e, em troca dos últimos “favores” de Salazar aos Aliados, o ditador conseguiria a manutenção do regime e do Império colonial.

Os hotéis dos espiões

O historiador norte-americano Douglas Wheeler descreveu Portugal, durante a guerra como «spyland» (pais de espiões). Por seu turno, Ruth Arons, uma judia berlinense que chegou a Portugal em 1936, recorda que muitos agentes secretos se encontravam no bar do Hotel Tivoli, em Lisboa. Os ingleses consideraram que era ali que os espiões alemães se alojavam, durante a II Guerra Mundial, tal como nos hotéis Vitória, Suíço-Atântico, Duas Nações, gerido por um alemão, e o Avenida Palace. Este hotel de luxo, situado na Praça dos Restauradores tinha mesmo, no 4.º andar, um corredor que ligava directamente o cais dos comboios da estação do Rossio, para possibilitar a chegada incógnita e sem controlo policial de personalidades importantes e espiões.

Pelo contrário, o Hotel Metrópole era considerado pró-britânico assim como o parece ter sido o luxuoso hotel Aviz, inaugurado em 22 de Novembro de 1933. Terá sido ali que, num jantar, realizado em 31 de Julho de 1940, o Duque de Windsor rejeitou a oferta alemã de o repor no trono inglês como rei fantoche. Outro conhecido agente triplo, mas na realidade a trabalhar para o MI5 britânico, Dusko Popov («Triciclo»), esteve instalado no Aviz.

Embora constasse que era um hotel dos Aliados, Popov contou ter tomado conhecimento, através dos serviços secretos britânicos, que o Aviz era controlado pelos alemães. O mais certo é que se tivessem hospedado nesse hotel espiões dos dois lados beligerantes. Foi também nesse hotel que viveu, entre 1942 e o dia da sua morte, em 1955 o magnata do petróleo arménio, Calouste Sarkis Gulbenkian, e que estiveram alojados, durante a guerra, os ex-reis Carol da Roménia, D. Juan de Espanha e Humberto da Itália.

Mas não foi só Lisboa a alojar espiões. Muitos deles, que se escondiam sob a capa de adidos diplomáticos, também se instalaram na estância turística do Estoril e na estrada para Cascais, onde se alojavam os refugiados ricos, muitos dos quais gastaram fortunas no Casino do Estoril, antes de partirem para a terra de exílio definitivo do outro lado do Atlântico. O jugoslavo, Miloch Tsrhanski, que esteve alojado no Hotel da Inglaterra, no Estoril, relatou que os aliadófilos viviam nos hotéis elegantes da Avenida da Liberdade em Lisboa, enquanto os germanófilos ficavam em Sintra, de onde desciam ao Estoril, para jogarem as suas fortunas no Casino.

No Estoril, os alemães escolheram o Hotel Atlântico, o Grande Hotel do Monte Estoril, onde esteve alojado em 1941 o espião jugoslavo Bocko Christitch, e o Hotel do Parque, enquanto o Grande Hotel da Itália, no Monte Estoril, e o Hotel Palácio eram os preferidos dos Aliados. Neste último, estiveram alojados, além do já referido Dusko Popov, o agente duplo Juan Pujol («Garbo») e Nubar Gulbenkian, filho de Calouste, também frequentador do Aviz, que trabalhou para os serviços secretos britânicos, MI6, em ligação com Donald Darling («Didi»).

Passaram ainda pelos hotéis da Costa do Sol, «Kim» Philby, do desk ibérico do MI6, e Ian Lancaster Fleming, (em Maio de 1941), criador da figura James Bond que trabalhou ele próprio para o Naval Intelligence Department, bem como o escritor Graham Greene, que também colaborou com os serviços secretos britânicos (SOE). Outros agentes secretos dos dois campos beligerantes também se cruzaram nos lobbies dos hotéis Inglaterra, Paris e Miramar. Em Cascais, viveu ainda, entre outros, o conde Iwan Schouwaloff, um russo branco naturalizado holandês que acabou por ser denunciado como espião nazi, por Dusko Popov («Triciclo»).

(Publicado no nº 6 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)