Segunda e última parte do texto de uma apresentação que fiz em Pinhel, a convite da respectiva Câmara Municipal, no passado dia 26 de Junho (Dia Internacional contra a Tortura). A primeira parte pode ser lida aqui
Para que serviam as prisões políticas, em Portugal?
A detenção política, em Portugal, combinou três lógicas. Uma primeira lógica de afirmação da autoridade, com carácter dissuasivo, preventivo e de intimidação, era utilizada para a população em geral. Sobre esta, pairava a ameaça do que poderia acontecer, caso se metesse em «política» e, por isso, as detenções e julgamentos eram noticiados oficiosamente na imprensa.
A segunda lógica de carácter correctivo era reservada aos que tinham sido «momentaneamente transviados» e, através do «susto» da prisão preventiva e correccional, ficariam vacinados para nunca mais terem a ousadia de actuar contra o regime. A larga maioria dos presos só permaneceram detidos durante os seis meses da prisão preventiva, apenas 15% foram levados a julgamento e cerca de 23% dos indivíduos julgados foram absolvidos, amnistiados, soltos ou apenas condenados a multas.
Por outro lado, cerca de 20% foram condenados a penas de prisão correccional até um ano e seis meses de prisão.
Finalmente, a terceira lógica, de neutralização, tinha como objectivo retirar do espaço público os dirigentes e funcionários dos partidos subversivos, nomeadamente os comunistas, de extrema-esquerda e de organizações de luta armada, através da prisão maior e das medidas de segurança. Cerca de 5,5% dos presos foram condenados a penas de dois anos de prisão maior e, nesse caso, apenas era contada metade do tempo de detenção preventiva cumprida, além de lhes ser habitualmente acrescida uma medida de segurança. Num universo de 12.385 presos, pouco mais de 4% dos detidos foram condenados a medidas de segurança, mas, entre estes, mais de 90% cumpriram entre um ano e três anos de cadeia a mais do que o tempo a que haviam sido condenados por sentença judicial.
A PIDE/DGS também usou e abusou da prisão preventiva, excedendo o seu prazo legal de seis meses. Num universo estudado de cerca de 1.800 presos, apenas cerca de 15% foram julgados dentro desse prazo e houve mesmo alguns, que esperaram, na cadeia, mais de quatro anos, até serem levados a julgamento. O facto de, em Portugal, as penas não serem de longa duração, como foi sempre apregoado pelo regime, não deve fazer esquecer que muitos detidos políticos acabaram por ficar muito tempo atrás das grades, devido às medidas de segurança.
Uma polícia eficaz?
A eficácia da PIDE resultou sobretudo da luta desigual, a seu favor, que travou contra os seus alvos, possibilitada pelos seus poderes – de prisão preventiva e medida de segurança – e pelos seus métodos de informação e investigação. À semelhança de todas as polícias políticas das ditaduras, a PIDE não necessitava de ser muito aperfeiçoada, pois tinha desde logo a sua vida amplamente facilitada pela utilização de uma ampla rede de informadores, dependentes dos Serviços de Informação dessa polícia.
No entanto, a quantidade destes era exagerada pela própria polícia, para espalhar o medo nos portugueses, convencendo-os que os olhos «panópticos» da PIDE os vigiavam por todo o lado e que meio país denunciava outro meio país. Se evidentemente isso não correspondeu à verdade, não deixou de multiplicar a eficácia do número mais reduzido de denunciantes. Além de utilizar os informadores, a PIDE/DGS também pôde recorrer a outros meios, sem qualquer fiscalização, como a intercepção postal e a escuta telefónica.
A tortura
Quanto aos métodos de «investigação», a PIDE/DGS utilizou processos violentos e os chamados interrogatórios «contínuos» – eufemismo para o «sono» e a «estátua». Nos anos trinta e quarenta, a PVDE utilizou sobretudo as torturas físicas e os espancamentos, acompanhados da tortura da «estátua», em que o detido era obrigado a estar de pé ou voltado para a parede, sem a tocar e de braços estendidos – a posição de «Cristo» – durante longas horas.
No entanto, os espancamentos nunca cessaram, posteriormente, sendo aplicados, pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) – criada em 1945 – em elementos das classes sociais mais baixas, nos funcionários do PCP e não só. Mas o meio de interrogatório eleição da PIDE passou a ser progressivamente a chamada tortura do «sono» – ou seja, a privação de dormir durante dias e noites.
A polícia política portuguesa começou efectivamente a aperfeiçoar «cientificamente» os seus métodos de tortura, a partir do final dos anos cinquenta, em contacto com serviços secretos e polícias de outros países, nomeadamente os norte-americanos. De facto, não terá sido certamente uma coincidência o facto de a PIDE ter utilizado métodos idênticos aos apresentados num Manual da CIA de 1963 intitulado KUBARK, que incluía uma secção detalhada sobre The Coercive Counterintelligence Interrogation of Resistant Sources, (interrogatório de contra-inteligência coercivo a fontes resistentes).
Entre as várias «técnicas coercivas», utilizadas de forma combinada, em correspondência com a personalidade do preso, contavam-se a «Debilitação», a «Dor» e, sobretudo, a «Privação de estímulos sensoriais». Quanto à brutalidade física directa, foi considerada por vezes contra-producente, pois, segundo o manual da CIA, apenas criava ressentimento, hostilidade, e mais desafio da parte dos detidos. Por isso, aconselhava-se a optar por um tipo de sofrimento que parecia ser aplicado pelo próprio preso. Era, por exemplo, o caso da tortura da «estátua», em que o facto de o indivíduo ser obrigado a permanecer de pé dava a ideia que a fonte da dor não era o carrasco, mas a própria vítima.
A privação do sono e sensorial produzia, segundo o manual a «síndrome DDD» de «debilidade, dependência e medo» («debility, dependence, and dread») nos «interrogados». Na secção «Privação de estímulos sensoriais», a CIA aconselhava ainda a submissão do prisioneiro ao «isolamento prolongado».
Segundo o Manual, «a privação de estímulos induz a regressão ao privar o sujeito do contacto com o mundo exterior». Depois, dava-se -lhe «estímulos calculados durante o interrogatório» e o sujeito «regredido» tinha tendência para encarar o interrogador, que vinha quebrar esse isolamento, «como uma figura paternal», resultando daí a quebra da sua resistência.
A incomunicabilidade nas cadeias da PIDE/DGS durava à volta de dois meses, embora pudesse ir até aos seis meses, com proibição de livros, revistas e correspondência. Nessa situação, o silêncio tornava-se insuportável e o detido perdia as suas referências e a sua identidade. Isolado na cela, apenas com os seus pensamentos, ele entrava em desespero, ante a expectativa do futuro suplício, ficando com uma profunda sensação de vazio e desejando voltar a ver qualquer pessoa, mesmo se esta só podia ser o seu carrasco. Quando o iam buscar para uma nova sessão de tortura, o preso quase experimentava uma sensação de «libertação» e era então que entrava em cena o chamado torturador «bom», numa situação onde se tornava fácil ceder.
Mulheres torturadas e o aumento da violência
A partir do início dos anos sessenta, quando deixaram de ser apenas encaradas como mulheres de rebeldes e passaram a ser elas próprias consideradas rebeldes, as mulheres começaram a ser torturadas da mesma forma que os homens.
Em 1961, a operária agrícola do Couço, Maria Rosa Viseu foi esbofeteada e submetida à «estátua», Fernanda Paiva Tomás, dirigente do PCP, esteve 80 horas consecutivas sem dormir e, depois, mais de 94 horas, Albertina Diogo sofreu cinco dias a tortura do sono e espancamentos e Natália David foi alvo da tortura da «estátua», do «sono» e a espancamentos.
No entanto, até então, as torturas de mulheres não se tinham ainda generalizado. O ponto de ruptura, ou de viragem foi de facto o ano de 1962, com a prisão, em 27 de Abril desse ano, de várias mulheres do Couço, todas elas foram submetidas a estas mesmas torturas durante três, quatro e mais dias, além de algumas delas terem sido despidas, numa roda de agentes da PIDE.
O ano de 1965 foi especialmente duro, não só porque foi aquele em que ocorreu o assassinato, pela PIDE, de Humberto Delgado e Arajaryr Campos, como porque se assistiu então a um aumento da violência nos interrogatórios. Os presos da FAP/CMLP foram todos sujeitos a violentas torturas e os do PCP impedidos de dormir por período cada vez maiores: por exemplo, Álvaro Veiga de Oliveira esteve na tortura do sono, durante duas semanas e Maria da Conceição Matos foi espancada, despida e humilhada.
No final do período marcelista, à medida que este enfrentava uma oposição redobrada, por parte dos trabalhadores e estudantes, de organizações de extrema-esquerda e de luta armada, a DGS redobrou a sua violência: voltaram os espancamentos violentos e a estátua e o impedimento de dormir ultrapassou as duas semanas.
Após 25 de Abril de 1974, o psiquiatra Afonso de Albuquerque analisou as consequências clínicas dos interrogatórios realizados pela PIDE/DGS, através de uma amostra de cinquenta pessoas, presas entre 1966 e 1973. Mencionou as seguintes causas das perturbações detectadas nesses ex-detidos: o isolamento e a despersonalização (50%); a privação de sono (96%); os espancamentos (46%); a «estátua» (38%), os insultos e as chantagens (30%), as variações de temperatura (8%); os altifalantes com gravações (8%) e os choques eléctricos (4%).
Quanto às consequências imediatas da tortura, o psiquiatra observou as seguintes: as alucinações e o delírio (76%); as perdas do conhecimento (15%); os edemas dos membros inferiores (10%) e as tentativas de suicídio (6%). Foram ainda observadas sequelas a médio e longo prazo: falhas de memória (16%); depressão (16%); insónias (8%); psicoses esquizofrénicas (8%) e ansiedade, cefaleias, gaguez e dificuldades sexuais, entre outras (30%).
Ao «fazer falar» o preso, a PIDE/DGS pretendia não só obter informações, destruir as suas convicções, isolá-lo do seu grupo de pertença, bem como obrigá-lo a agir contra si próprio e contra os seus valores, mostrar que era o poder e que o detido estava nas suas mãos. Mas a tortura também serve para «fazer calar», ao constituir um aviso para silenciar toda a oposição, e uma ameaça para aterrorizar e desmobilizar a população, com o simples rumor da existência da violência.
O que interessava à PIDE/DGS era a destruição da personalidade do preso e a criação de um clima de terror em todo o país. Ou seja, o aparelho torcionário pretende «não só fazer falar a vítima, mas fazer calar toda a oposição», instalando a submissão total e a paralisia em todos os que são governados, bem como desactivando todos os que ele acusa de colocar em perigo a ordem estabelecida.
Por outro lado, o argumento, utilizado por Salazar, em 1932, para justificar a utilização de «meia dúzia de safanões a tempo» é recorrentemente usado nos regimes ditatoriais, mas não só, que justificam habitualmente o recurso à tortura policial como possibilitando o salvamento de vítimas inocentes. Ora, ao ser detido, em 30 de Junho de 1971, sob suspeita de fazer parte da organização de luta armada, ARA, o jovem Júlio Lopes Freire só foi interrogado – i.é., torturado – dezanove dias após a sua detenção, pormenor que é muito importante, pois deita por terra a justificação de governantes e da própria polícia segundo a qual ela seria obrigada a torturar, para obter informações sobre atentados, que possibilitariam os «inocentes» de serem atingidos.
«Primavera caetanista», na repressão?
No quarto período da vida da polícia política, correspondente ao período em que Marcelo Caetano foi presidente do Conselho, a PIDE foi substituída, em 1969, pela Direcção Geral de Segurança (DGS), depois reorganizada, em 1972. Continuou, porém, com os mesmos poderes da sua antecessora, embora o prazo da prisão preventiva passasse a ser mais curto, ficando esta polícia com três meses para instruir os processos.
Na chamada metrópole, a prisão preventiva começou a contar por inteiro nas penas de prisão e a grande novidade, nesse ano de 1972, foi a abolição das medidas de segurança de internamento para os «delinquentes políticos».
No entanto, algo que nunca foi conseguido, mesmo durante a chamada «primavera marcelista», foi a reivindicação, amplamente apresentada, por uma parte da opinião pública, de uma norma que, a ser aplicada, teria modificado completamente os poderes da DGS: a assistência dos advogados aos interrogatórios, que, no final do regime, passou a acontecer nos casos instruídos pela PJ. Como muito bem percebeu a DGS, se isso acontecesse, ficava sem a sua principal arma – a utilização da tortura na «investigação» – e, por isso, pressionou, com eficácia, Marcelo Caetano, no sentido de não atender a esses apelos.
Terá o regime ditatorial perdurado, graças à sua polícia política?
Sim e não. A PIDE/DGS ajudou o regime a manter-se, assim como outros dos seus grandes pilares – a Igreja e sobretudo as Forças Armadas, que asseguraram a continuidade do regime, em 1958, durante o «terramoto delgadista» e, depois, em todo o período da guerra colonial. Mas o regime ditatorial também perdurou, porque conseguiu uma «organização do consenso», através de aparelhos de desmobilização cívica e de inculcação ideológica, bem como instrumentos como o aparelho corporativo e as organizações de enquadramento de estratos da população.
Por outro lado, a ditadura salazarista e caetanista contou com outras polícias e com o aparelho administrativo central e local, mas também com o eficaz aparelho de Censura e com o sistemático «saneamento» da função pública. Censura e sistema de «saneamento» política, com a qual a PIDE/DGS sempre colaborou e foi um importante instrumento.
A PIDE/DGS foi o último factor desses meios de intimidação, desmobilização e repressão. Reprimia e neutralizava selectivamente os poucos que lutavam contra o Estado Novo e espalhava o medo, com a ameaça do que podia acontecer aos que entravam em dissidência. Difundiu também, com alguma eficácia, a ideia de que era omnipotente e omnipresente, que via e ouvia tudo, através de uma enorme rede de informadores e uma cultura de denúncia.
Em suma, pode-se dizer que a durabilidade do regime se deveu a uma combinação de dois factores decisivos: por um lado, o sucesso da prevenção / desmobilização / intimidação cívica / repressão, através de vários instrumentos, entre os quais a importante PIDE/DGS e, por outro lado, o facto de o regime ditatorial, nos momentos de crise – 1945 e 1958-1961 – ter conseguido manter a coesão das Forças Armadas em seu redor.
Quando uma parte destas Forças Armadas, com as quais a DGS colaborava nos teatros de guerra, se rebelou contra o regime ditatorial, este foi derrubada.