Foto do Holocaust Memorial Museum
Portugal, a viver sob um regime
ditatorial, foi, durante a II Guerra Mundial, um país neutral por onde passaram
alguns refugiados judeus e políticos, fugidos a Hitler e ao Holocausto. Ironicamente, foi numa ditadura nacionalista com
simpatias pelo anticomunismo e antiliberalismo do regime nazi alemão que
refugiados encontraram um porto de abrigo provisório. O facto de o
regime ditatorial português, apesar das semelhanças, se ter diferenciado em
aspectos essenciais do alemão, a ausência de anti-semitismo na ideologia
salazarista e na sociedade portuguesa, bem como as circunstâncias geográficas
da neutralidade portuguesa no quadro da aliança com a Inglaterra, acabaram por
possibilitar a salvação através de Portugal de perseguidos pelo
nacional-socialismo.
No entanto, da
mesma forma como noutros países aliados ocidentais e neutros, só muito
tardiamente o governo ditatorial português foi sabendo - ou disse que tinha
vindo a saber – da existência do que se viria a denominar Holocausto (ou Shoah).
Propõe-se dar aqui um contributo para esclarecer de que forma o governo
português e a quase inexistente “opinião pública”, moldada por jornais
censurados, se foram apercebendo do Holocausto e de que forma reagiram, ou não,
face às notícias que iam chegando.
O
conhecimento do Holocausto pelas forças aliadas
Os crimes nazis que envolveram um
número avassalador de vítimas dificilmente poderiam ter permanecido secretos,
apesar dos cuidados que os perpetradores do genocídio tiveram em escondê-los.
Alguns historiadores revelaram de que forma chegaram regularmente aos aliados,
em particular à Grã-Bretanha, as notícias sobre os massacres de judeus na
Polónia e na URSS. O governo soviético também terá sabido dos massacres logo
que a Alemanha invadiu o seu território, em Junho de 1941, e, após algumas
semanas, o mesmo terá acontecido às capitais ocidentais. A Londres e Washington
chegaram notícias das suas representações diplomáticas e serviços secretos na
Europa, bem como as veiculadas pelo governo polaco no exílio e pelos dirigentes
judeus na GB e nos EUA.
Há que fazer referência à distinção
levada a cabo pelo Yehuda Bauer entre informação e conhecimento, sendo este
último fundamental para a tomada de uma acção, se é que ela era passível de ser
tomada. «Saber, habitualmente vem através de uma série de fases: primeiro, a
informação tem de ser disseminada; depois, tem de se acreditar nela e ela deve
ser internalizada, ou seja, tem de ser estabelecida alguma ligação entre a nova
realidade e um possível processo de acção»[1].
O certo é que, entre a chegada aos
Aliados ocidentais das primeiras informações sobre os crimes vindas da Polónia
e da Rússia, em 1941, e a publicitação dos mesmos decorreram quase dois anos.
Efectivamente apenas em 17 de Dezembro
de 1942, foi publicamente difundida uma declaração conjunta, assinada pelos governos aliados e pelo Comité
nacional da França Livre, segundo a qual os judeus da Europa estavam a ser
exterminados e avisando que os responsáveis por esses crimes não escapariam ao
castigo.
E a Portugal, quando chegaram
informações sobre o Holocausto?
Foi então que de certeza absoluta o
governo português soube do que se passava, embora já tivesse recebido das suas
várias representações diplomáticas informações sobre o tratamento dos judeus
nos territórios ocupados e satélites. As notícias sobre o Holocausto foram
chegando ao governo de Portugal de forma desfocada, como em todo lado, mas
foram-se tornando, com o tempo, cada vez mais nítidas. Em Novembro de 1941, numa carta sobre a «Ordem Nova» alemã, o
ministro de Portugal em Berlim, Tovar de Lemos, observou que a forma como o
partido e o Estado nacional-socialistas se relacionarem com as Igrejas, bem
como «o procedimento do Governo Alemão para com os judeus» até caía «mal na
opinião pública» de Portugal.
Por outro
lado, através de um relatório da missão de oficiais portugueses do CEM enviados à
Alemanha, de Dezembro de 1941, dava-se conta que «certas práticas seguidas no
interior, pelo partido, sem que lei alguma as permita – perseguição dos judeus
e eliminação de doentes considerados incuráveis» tinham vindo a levantar uma
viva reacção, «em especial por parte dos chefes da igreja católica, com o apoio
do Exército» alemão. O relatório
acrescentava que os judeus na Alemanha e nos países ocupados eram obrigados a
usar «uma grande estrela amarela, na qual se lê a palavra judeu» e, que,
nos países Bálticos, os judeus «não podiam, por exemplo, circular nos
passeios», nem exercer trabalhos «em contacto com o público» (sublinhado
no texto)[2].
Quando os judeus de Paris, encarcerados
no campo de internamento de Drancy, começaram a ser deportados para Leste, na
segunda metade de 1942, o cônsul-geral de Portugal na capital francesa, António
Alves, tentou obter a libertação dos
sefarditas portugueses, promover a sua repatriação e negociar com os alemães no
sentido de «os israelitas portugueses» serem «isentos do porte da estrela». O
argumento do cônsul era que tal medida discriminatória «implicaria fatalmente
uma desigualdade de tratamento a que não estão submetidos os cidadãos
franceses residentes em Portugal, seja qual for o respectivo credo»[3]
O MNE português também recebeu, entre
Setembro de 1941 e final de 1942, diversas notícias sobre as perseguições aos
judeus na Roménia, transmitidas pelo representante diplomático em Bucareste,
Quartim, embora a grande maioria das informações sobre massacres tivessem
chegado da Polónia ocupada. Em 22 Maio de 1942, deu entrada no MNE português um
documento do responsável pelos Negócios Estrangeiros do governo polaco no exílio
em Londres, a denunciar assassinatos em massa, onde eram referidos os campos de
concentração de Oswiecim (Auschwitz), Sachsenhausen/Oranienburg, Mauthausen e
Dachau. De novo, em 18 Junho, a Legação do governo polaco no exílio em Lisboa
fez chegar ao MNE a notícia de que a Alemanha tinha o objectivo de «exterminar
todos os judeus sem se preocupar com o resultado da guerra».
Em Setembro de 1942, a
Reichssicherheitshauptamt (RSHA, organismo central da Segurança do Reich, que
controlava todas as polícias da Alemanha nazi) questionaria o consulado alemão
em Lisboa, acerca da possibilidade de as autoridades portuguesas impedirem a «emigração
a partir de Portugal» dos judeus, «no âmbito da solução final da questão judaica
na Europa». Em resposta, o próprio cônsul alemão em Lisboa, Hollberg, informou
a RSHA de que, actuando «segundo critérios de humanidade», o Estado português
não iria «impedir de forma nenhuma, judeus, de qualquer nacionalidade, de
emigrar para estados além-mar», pelo que era inútil «tentar realizar a
repatriação dos judeus existentes em Portugal através das ligações existentes
entre as polícias» dos dois países[4].
Ainda nesse ano
de 1942, Salazar recebeu um relatório, enviado pela Igreja portuguesa, onde se
denunciava a ocorrência de muitas mortes nos campos nazis, nomeadamente no de
Oswiecim (Auschwitz) na Polónia, embora não se especificasse que se tratava de judeus[5].
Mais importante foi uma carta, recebida por Salazar, dos Serviços de Censura,
sobre uma notícia que o jornal católico A
Voz pretendia publicar no primeiro dia de 1942, onde se dava conta «da
exterminação das crianças» na desventurada Polónia. A Censura considerara
passagens da notícia de tal forma «fantasiosas, ou pelo menos exageradas» que
as havido “cortado”, impedindo a sua publicação[6].
De qualquer
forma, como se viu, o governo português foi informado, através da já referida
declaração conjunta dos Aliados, de 17 de Dezembro de 1942, do «propósito»
alemão de «exterminar o povo judeu da Europa». O representante do governo polaco no exílio, em Lisboa,
continuou a fazer chegar, em Janeiro de 1943 ao MNE português diversos
documentos sobre o extermínio de judeus nos territórios ocupados pelos alemães[7]. No dia 25 desse mês, Edward
Raczynski, em nome do governo polaco, descreveu os «meios empregues pelas
autoridades de ocupação alemãs para a exterminação em massa de Judeus nos
territórios da Polónia». O mesmo documento polaco informava que os alemães
tinham estabelecido na Polónia 24 campos de concentração, entre os quais se
contavam os de Treblinka e Oswiecim (Auscwitz), dando conta das inúmeras mortes
ocorridas neste último.
Mesmo assim, quando a Legação alemã em Lisboa deu conta ao governo português, em 4 de Fevereiro
de 1943, que, por «motivos de
cortesia», este último teria a oportunidade de retirar dos «territórios sob
domínio alemão os judeus de nacionalidade portuguesa», Portugal atrasou o
referido repatriamento. Relativamente aos judeus de ascendência portuguesa, a
residir na França ocupada, após muitas vicissitudes, 137 judeus sefarditas de ascendência portuguesa ali
residentes acabariam por chegar a Portugal, entre Setembro e Novembro de 1943.
A Legação alemã em Lisboa voltou a informar Salazar,
em Dezembro, que, «por motivos de ordem policial», era «necessária a deportação
imediata de todos os judeus na Itália e Grécia», perguntando ao governo
português, se desejava o envio imediato dos mesmos para Portugal[8].
Face à demora da resposta portuguesa, em 5
de Maio de 1944, o ministério dos Estrangeiros alemão enviou à Legação portuguesa em Berlim, uma lista com os nomes de 19 judeus portugueses encarcerados
em Atenas, que haviam sido transferidos, com 155 judeus espanhóis e dezenas de
outros de diferentes países europeus, para o campo de concentração de
Bergen-Belsen[9].
Os 19 judeus chegariam a Portugal, em Julho de 1944[10], mas,
a 28 desse mês, a Legação de Portugal em Berlim enviou a Salazar mais uma lista
de 13 judeus, oriundos da Grécia (nascidos em Salónica e Kavalla), cujo destino
se desconhece.
Diferente foi a sorte dos judeus portugueses na
Holanda. Para escaparem aos nazis, cerca de
4.300 judeus sefarditas portugueses, aí residentes, tentaram negar a sua
pertença ao povo judeu, pedindo a isenção da aplicação das leis anti-semitas
alemãs[11].
Em Agosto de 1942, o comissário do Reich para os
territórios Holandeses Ocupados informou «que os “marranos” devem ser vistos
como judeus». O caso dos judeus holandeses que se diziam de ascendência portuguesa,
que solicitavam a repatriação para Portugal terminaria da pior maneira, dado
QUE, dos 4.000 membros da comunidade israelita portuguesa, só se salvariam
500[12].
O caso da
Hungria foi também diferente dos anteriores. A Legação portuguesa em Baudapeste,
a cargo do ministro Sampaio Garrido e depois do encarregado de Negócios
Teixeira Branquinho, concedeu, tais como as outras representações diplomáticas
de países neutrais e do Vaticano, «passaportes provisórios» portugueses aos
judeus húngaros, «que iniludivelmente provassem ter tido nos últimos anos
quaisquer espécie de relações morais, intelectuais ou comerciais com Portugal
ou com o Brasil»[13]. Todos os
«suplicantes» tiveram de assinar um documento, «comprometendo-se a nunca
invocar o passaporte» para solicitar a nacionalidade portuguesa[14].
Seja como for, aponta-se para 1.000 o número de pessoas protegidas na Hungria,
pelos diplomatas portugueses, das quais 700 ou 800 receberam passaportes provisórios[15].
[1] Yehuda Bauer, Repenser
l´Holocauste, postface de Annette Wieviorka, Paris, Éds.
Autrement/Frontières, 2002, pp. 219-221
[2] AHD-MNE, GSG 6, pasta 3, 6/12/1941. Relatório da missão de oficiais do CEM à Alemanha
[3]
Manuela Franco, «Os Judeus em Portugal»,
Dicionário de História de Portugal, dir.
António Barreto e Maria Filomena Mónica, Porto, Ed. Figueirinhas, volume 8,
2002, pp. 314-324
[5]
AOS/CO/NE 2 pasta 46 «Situação religiosa na Alemanha (1942)»
[6]
AOS/CO/NE 2 pasta 48. «Notícia sobre a exterminação de crianças judaicas
(1942)»
[8] AHD-MNE. Legação da Alemanha em Lisboa-Aide mémoire,
Dezembro de 1943
[9] Judeus em Portugal. O Testemunho de
50 Homens e Mulheres, dir. José Freire Antunes, Versailles, Edeline, 2002, pp.107-111
[10] Nair Alexandra, «Judeus ibéricos no Levante: Salónica», Estrelas da Memória, dir. editorial e
coordenação de Esther Mucznik, autores Jean Pierre Guéno e Jérôme Penard,
Paris, Les Arènes, 2002 e Lisboa, Global Notícias Publicações, 2005, pp.
218-227.
[11] António Louçã, Conspiradores e Traficantes. Portugal no Tráfico de armas e Divisas nos
Anos do Nazismo. 1933, 1945, Lisboa, Oficina do Livro, 2005, pp. 206-207.
[12]
Haim Avni, p. 212, cit. por António Louçã, Conspiradores
e Traficantes…, pp. 199, 203-206
[13] Doc. 15 – Informação/Resumo de Teixeira Branquinho, de 20
de Abril 1945, Vidas Poupadas. A acção de
três diplomatas portugueses na II Guerra Mundial, dir. Manuela Franco,
coord. Manuela Franco e Isabel Fevereiro, catálogo da Exposição Documental,
Ministério dos Negócios, Setembro 2000, pp.76-78.
[14]
Manuela Franco, «Os Judeus em Portugal»,
Dicionário de História de Portugal, vol. 8, pp. 314-324; Doc. 15,
Informação resumo de Teixeira Branquinho,
de Abril de 1945, Vidas Poupadas…,
pp. 124-125
[15] João Mendes e Clara Viana, Público, Revista 27/3/1994, cit. em Judeus em Portugal, p. 465.
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