((Século Ilustrado/ Arquivo Histórico de Portimão)) |
O QUOTIDIANO DE MISÉRIA E PRIVAÇÕES NO EM ANO EM QUE HOUVE SUPERAVIT
O facto de o recente aumento das exportações e a
possibilidade de a balança comercial chegar ao fim do ano com um superavit ter
sido comparado com o saldo comercial positivo de 1943 (o último ano em que isso
aconteceu em Portugal), serve aqui de pretexto, para contextualizar esse
período socialmente, durante a II Guerra Mundial, em que como se sabe Portugal
teve um estatuto de neutralidade. Desde já se diga que não se pretende retirar
quaisquer ilações de causas e/ou consequências – por exemplo, que um aumento
das exportações tenha ou não um efeito sobre a forma como os portugueses
viveriam melhor ou pior -, até porque a História não se repete, devido ao
número infindável de factores conjunturais ou estruturais que a influenciam e
em que o tempo é fundamental. E claramente o Portugal de 1943, durante a II
Guerra Mundial, não é o Portugal 2012. Além do mais, vivia-se então num regime
ditatorial. Há, no entanto, algumas semelhanças, que levaram aliás a que se
fizesse a comparação, entre as quais se conta, além do evidente superavit da balança comercial nos dois
momentos, o facto de, como observou Pedro Lains, esse saldo ser conjuntural. Ora,
parece interessante mostrar como, numa tal situação de aparente prosperidade,
viviam na realidade os portugueses; ou seja, tentar ver, por trás dos números,
que qualidade (e quantidade) de vida tinham, num período em que economia terá
crescido a uma taxa de 2,9% (de 1938 e 1947).
O afluxo de capitais
e de divisas das exportações de volfrâmio e de sardinhas para a Alemanha, e
para a Grã-Bretanha, o incremento dos transportes marítimos e a valorização dos
seus fretes, a venda de serviços a diplomatas, espiões e refugiados, que por
vezes investiram na banca, durante a II Guerra Mundial, reflectir-se-iam nos
saldos comerciais positivos portugueses, de 1941 a 1943 (1941 - 504.850;
1942 – 1.459.751 e 1943 - 693.518 contos). A situação de neutralidade portuguesa, aliás possibilidade pelos
dois campos beligerantes, permitiu a Portugal incrementar as relações
comerciais, quer com a tradicional aliada, Grã-Bretanha, quer com a Alemanha
nacional-socialista que chegou, a partir da operação «Barbarossa» – invasão da
URSS pelas tropas alemãs, em Junho de 1941 -, até ter a primazia nas
exportações portuguesas. Efectivamente Portugal exportava para a Alemanha dois
produtos muito importantes para o esforço de guerra na URSS – conservas de
peixe e sobretudo volfrâmio: em 1942, ano em que esse minério representou 40%
do valor total do comércio de exportação, registou-se mais de 9.000% de aumento
nas vendas desse minério, com um recrudescimento do valor da tonelagem acima de
3.500%.
Mas, nos três anos anteriores, a pujança de
uma minoria de portugueses, que lucraram com os «negócios de guerra», não tocou
a todos. Essa situação levaria mesmo diplomatas britânicos a descrever que
Portugal apresentava o «deprimente espectáculo dum homem com os bolsos cheios e
o estômago vazio». A disparidade social era tão evidente que não escapou também
a alguns refugiados que, fugidos à ocupação nazi, passaram em trânsito pelo
país, a caminho do «Novo Mundo». Eva Lewinski foi uma das intelectuais alemãs
antinazis que, sentiu, ao chegar à capital portuguesa o mesmo alívio da maioria
dos refugiados, sem deixar, no entanto, também de revelar constrangimento face à
miséria vislumbrada, em Alfama. No mesmo mês de 1940, da chegada desta última,
partia de Lisboa, a caminho dos EUA, o escritor alemão Alfred Döblin, que
descreveu o enxame de ardinas, descalços e andrajosos que pululavam pela cidade
(Viagem sem Destino). Salazar, que se
regia pela norma de «o que parece, é», preocupou-se em eliminar das ruas a
aparência da miséria, ora reenviando os pedintes, para o meio rural, ora
internando os «desviantes» na Mitra, ora instituindo múltiplas proibições, de
impossível aplicação, como, por exemplo, andar descalço e mendigar.
A par destes, circulava pelo centro de Lisboa, uma população de
funcionários públicos e de cerca de quarenta mil empregados que trabalhavam em
minúsculas empresas e casas comerciais. Eram os chamados “remediados”, que
viviam mal numa sociedade onde não havia uma verdadeira classe média, como
referiu então a jornalista francesa Suzanne Chantal, ao admirar-se por não
existirem, em Lisboa, restaurantes médios, entre as inúmeras leitarias,
mercearias ou tabernas e os poucos restaurantes de luxo. Mas a maior parte da população urbana era constituída por uma maioria de trabalhadores
analfabetos e sem formação profissional, com baixíssimos salários e sem
direitos sindicais. Em Lisboa, amontoavam-se em barracas como as do Bairro das
Minhocas, em pátios e mesmo em grutas como as “Furnas de Monsanto”.
Não contando com os desempregados, cada vez mais numerosos no período da
guerra – entre 1943 e 1945, o período de
inactividade por falta de matérias-primas e combustíveis nas indústrias atingiu
6 a 7% - a maioria da população citadina assalariada, mesmo
recorrendo à casa de penhores, ao crédito da mercearia e ao cultivo selvagem em
pequenas hortas clandestinas, não comia o suficiente. Nesse mundo de
subnutrição e miséria, grassavam as doenças entre os adultos, cuja idade média de morte era para os homens entre 36 e 39 anos
e para as mulheres entre 41 e 44 anos. A mortalidade infantil,
terrivelmente alta, sintetizava, como sintoma paradigmático, a situação de miséria
que se vivia em Portugal. Em 1941, mais de 150 bebés portugueses por cada mil
morreram antes de atingir o primeiro ano de idade e a
taxa de mortalidade neonatal era em média de 40 mortes antes do primeiro mês em
cada mil crianças nascidas.
Do racionamento…
A situação de precariedade dos assalariados
portugueses era de tal forma grave que um homem do regime, Ferreira Dias
Júnior, ministro do Comércio e Indústria em 1940, reconheceu, no seu livro Linha de Rumo - Notas da
Economia Portuguesa (1945) que, enquanto operário alemão ganhava o
dobro do que necessitava para ele e a família se alimentarem, o salário médio
do operário português não chegava a satisfazer três quartos das necessidades
alimentares da sua família. Concluiu assim que o equilíbrio orçamental deste
último era feito «à custa de uma alimentação deficiente» e « do trabalho dos
outros membros da família além do chefe». Outro elemento do
regime, o engenheiro Daniel Barbosa, ministro da Economia no pós-guerra, definiria
a «ementa-tipo» de uma família, constituída por um operário, mulher e três
filhos, para viver «fisiologicamente satisfeita». Dessa forma calculou para o
ano de 1943, ser «estritamente» necessário para a dita família «viver com
decência e na maior modéstia», um salário mensal de 1.650$00 (64$30 diários, do
qual 28$09 para despesas de alimentação). De notar que, nesse ano, o salário
médio da maioria dos trabalhadores fabris portugueses era de pouco mais de
15$00 (entre 1941 e 46, a média era 17$00).
Além disso, custo de vida aumentou de forma exponencial. Por exemplo, entre
1943 e 1944, o quilo do arroz e das batatas aumentaram, respectivamente de 3$50
para 4$80 e de 1$20 para 2$40, o peixe, de 10 para 20$00, a manteiga de 4$20
pata 9$20, o açúcar de 3$60 para 4$20 e um par de sapatos de 180$00 para 300$00.
Nesse ano os portuguese tiveram de contar com um agravamento da situação dos
abastecimentos de tal forma sério, que obrigou, a partir desse ano, o governo a
instituir o racionamento de produtos essenciais – ou seja uma «política do
consumo por via da autoridade», como disse então o ministro das Finanças, João
da Costa Leite (Lumbrales). Este último assinalou aliás que o saldo da balança
comercial a que se estava a assistir era conjuntural, realçando a fragilidade
económica do país por trás da aparente prosperidade. O seu provável objectivo,
e temor, era evitar que tal má distribuição da riqueza a dificuldade de
abastecimentos distribuída e a carestia de vida viessem a provocar agitação
social, como de facto aconteceu, apesar da repressão.
Se a situação era assim na cidade, no mundo rural
português, as camadas semiproletárias podiam contar pelos 216$00 mensais,
excedendo a alimentação 80% dos gastos do conjunto das camadas mais pobres
através (Inquérito à Habitação Rural, 1944). No inquérito sobre as
regiões do Minho e Douro, onde o rendimento médio anual dos rurais era de
2.341$94, o valor do património doméstico não ultrapassava os 400$00, incluindo
móveis (171$00), roupa (180$00) e louça (15$00). No sul, um estudo (Habitação
rural de Amareleja, 1941), indicava que a maioria dos jornaleiros, sem
trabalho certo, gastava 70% dos salários de todos os membros da família com a
alimentação, consumindo mesmo assim apenas 36% das gorduras indispensáveis.
…à agitação social
O Estado Novo, que apregoava os benefícios morais da
«modéstia» e «humildade» e propagandeava as virtudes do corporativismo, pouco
fazia para atenuar a degradação dos salários e os excessos do patronato, após
ter eliminado o sindicalismo livre e proibido as greves, em 1933 e 1934. A
previdência social corporativa, lançada em 1935, só abrangia uma minoria de
funcionários públicos e de filiados nos Sindicatos Nacionais. Num país em que
cada casal tinha em média quatro filhos e a ideologia do regime propagandeava
as «famílias numerosas», o abono de família apenas foi instituído em 1942, mas
só era concedidos aos trabalhadores urbanos, e «com família legitimamente
constituída». Apenas em 1944, quando a degradação da situação económica se
tornou mais evidente, o Estado Novo elaborou o «Estatuto da Assistência
Social». No entanto, a assistência pública, definida como um instrumento
«moralizador», sem favorecer a «preguiça» ou a «pedinchice», era considerada
complementar à assistência particular e caridade individual.
A escassez
de bens essenciais, o açambarcamento, a subida dos preços e a inflação, bem
como o desemprego em indústrias com falta de matéria-prima e o congelamento dos
salários contribuíram, a partir de 1941, para a
eclosão de um amplo movimento de agitação social nas zonas industriais
de Lisboa e na margem sul do Tejo. Pelas ruas de Alcântara, bem como em
Xabregas e no Beato, a GNR a cavalo carregou sobre os manifestantes, em 1942. A
repressão não conseguiu porém evitar que as paralisações laborais e as revoltas
se espalhassem, no ano seguinte, aos rurais de Vila Franca de Xira, às fábricas
de cortiça de Almada e à CUF, no Barreiro. Além da ocupação pela GNR, bem como
pela PSP e PVDE, de ambas as margens do Tejo, o governo respondeu com o fecho
das tabernas, para impedir ajuntamentos e procedeu à substituição dos grevistas
por elementos da Legião Portuguesa, sujeitando os trabalhadores ao foro militar
e a despedimentos.
Em Agosto
de 1943, mais de 2.000 operários do calçado de S. João da Madeira entraram em
greve, participando em manifestações de rua, violentamente reprimidas pela GNR.
As filas para as senhas de racionamento passaram a ser palco de focos de
socialização e de insatisfação social, à beira de se transmutar em revolta
política. Depois, o movimento laboral entraria em refluxo, mas, em Maio de
1944, o agravamento da escassez de géneros, o racionamento do pão e o
congelamento dos salários rurais levaram a que o descontentamento rebentasse de
novo nas fábricas a norte de Lisboa e nos campos do centro e sul de Portugal. Nesse
ano, os próprios serviços secretos norte-americanos - Office of Strategic
Service (OSS) - informaram Washington de que, em Portugal, o movimento de
revolta popular estava a assumir um carácter subversivo, não porque os
operários fossem verdadeiramente comunistas, mas porque a propaganda do PCP
tocava «nas raízes da sua miséria».
Em
18 de Maio de 1945, terminada a guerra, Salazar esclareceu, num discurso, que,
se era «indiscutível ter o totalitarismo morrido por efeito da vitória, a
democracia, tanto na sua definição doutrinária como nas suas modalidades de
aplicação, continua[va] sujeita a discussões. E bem». O certo é que posteriormente
o ditador continuou a manter a «autoridade necessária e a liberdade possível»,
como ele próprio disse em 1946, conseguindo, através da censura e da repressão
política, evitar que o Estado Novo fosse incluído no campo dos nazi-fascistas,
a cuja derrota sobreviveu.
Bibliografia: História
de Portugal, dir, por J. Mattoso, vol. VII, da autoria de Fernando Rosas
(1994).