Neste ano, como já aqui lembrei, passam 50 relativamente a 1961, 70, relativamente a 1941 – ano da operação Barbarossa, invasão da URSS pela Wehrmacht alemã -, mas o que me proponho aqui é lembrar o ano de 1931 em Portugal, «o anos de todas as revoltas». Só para situar o contexto, foi o ano anterior àquele em que Salazar chegou à presidência do Conselho de Ministros, de onde só sairia apenas em 1968. Não vou tirar grandes lições desse ano de 1931, vou apenas lembrar alguns dos acontecimentos que então tiveram lugar em Portugal, para mostrar que tudo se poderia ter passado de outra forma daquela que conhecemos. Neste post, vou referir, devido à proximidade cronológica – Fevereiro a Maio – as chamadas «revoltas das Ilhas» e de algumas colónias. Estas não esgotaram, no entanto, as sublevações e manifestações que decorreram nesse ano de 1931, as quais referirei em novos posts.
O que aconteceu neste ano deveu-se a uma combinação de vários factores, entre os quais se contaram a conjuntura nacional de crise, na sequência crash de Nova Iorque 1929, geradora de descontentamento social e político, mesmo se ela teve em Portugal uma amplitude menor que no resto da Europa. A nível internacional, com grande importância, devido à proximidade, ocorreu, em Espanha, a demissão do general Primo de Rivera, desencadeando-se um clima revolucionário de que resultaria na instauração da República no país vizinho, em 14 de Abril de 1931. Todos estes factores se conjugaram para transformar esse ano num período de grande agitação social e política em Portugal, tanto no continente, como nas ilhas atlânticas e em algumas colónias, onde estavam então concentrados muitos deportados da Ditadura Nacional, erguida a partir de 28 de Maio de 1926.
Entre Fevereiro e Maio de 1931, houve sublevações das guarnições militares da Madeira e dos Açores que alastraram à Guiné, onde estavam concentrados muitos deportados. Na Madeira, já grassava desde o início de 1931 o descontentamento provocado pelo desemprego, devido à crise económica e financeira que fizera um rombo nas exportações tradicionais das indústrias de lacticínios e dos bordados, bem como no turismo, originando a falência das principais casas bancárias madeirenses. Por outro lado, um diploma de 26 de Janeiro de 1931, que declarava a importação livre de trigo (decreto da farinha), causara o aumento do preço do pão, provocando os primeiros tumultos e o encerramento do comércio. No dia 6 de Fevereiro, os estivadores da Ilha entraram em greve, despoletando o assalto popular às moagens, na que ficou conhecida como a «revolta da farinha». A ditadura acabou por suspender o decreto, mas enviou para a Madeira o navio de guerra «Vasco da Gama», com as companhias de Caçadores 5 e Metralhadoras 1, para restabelecer a ordem na ilha.
Embora a situação já tivesse ali voltado à normalidade, em 9 de Fevereiro, o facto de o destacamento chefiado pelo «Delegado Especial do Governo» ter reprimido violentamente os revoltosos provocou o descontentamento popular. Aproveitando a saída do «Vasco da Gama» para Lisboa e antecipando-se à deportação prevista de alguns dos mais activos militares revolucionários da Madeira, a revolta eclodiu nessa ilha pelas 7 horas de dia 4 de Abril, sem se confrontar com qualquer resistência, quer do contingente continental, quer de parte da guarnição da ilha, composta pelo regimento de Infantaria 13 e por uma bateria de Artilharia de Costa.
Pelas 10 horas, os tenentes do Comité Revolucionário já tinham ocupado os edifícios públicos e detidos elementos das autoridades da Ilha. Depois, os deportados civis e militares da Madeira integraram uma Junta Revolucionária chefiada pelo antigo ministro republicano Pestana Júnior e pelo general Sousa Dias, que presidiu à Junta Militar, composta ainda pelo coronel Freiria e pelo coronel Mendes dos Reis. Durante os cerca de dois meses que durou a revolta, os sublevados da Madeira esperavam que o governo ditatorial enviasse para a ilha as suas principais unidades militares, desguarnecendo a metrópole, onde, segundo pensavam, deveria eclodir um levantamento de adesão à revolta.
Esperavam que o governo enviasse contra a Madeira as suas «tropas fortes» e possibilitava assim uma acção revolucionária vitoriosa no continente, ou que ele mandasse «tropas fracas», susceptíveis de passarem para o lado dos rebeldes. As notícias da revolta da Madeira e da proclamação da República na vizinha Espanha levaram à eclosão de greves em Setúbal e a um movimento agitação social nas em Lisboa e no Porto. No entanto, apesar de ser programada para dia 2 de Maio, que acabaria por ser o dia da rendição dos sublevados da Madeira, não chegou a eclodir a esperada sublevação no continente, em ligação com a Liga de Paris e o grupo dos «Budas», instalado em Madrid.
Ao contrário dos desejos dos sublevados na Madeira, sem descurar a segurança do continente, o governo conseguiu manter a disciplina entre os expedicionários das «tropas mistas» enviadas para aquela ilha, com o apoio material e político da Inglaterra. Em 20 de Abril, o coronel pró-governamental, Fernando Borges, enviou aos revoltosos da Madeira sucessivos ultimatos, exigindo a sua imediata rendição e, nos dias 24 e 25 desse mês, partiram de Lisboa com destino ao Funchal duas expedições militares, juntando-se-lhes uma terceira, embarcada no navio «Niassa», que levava a bordo o ministro da Marinha, Magalhães Correia. Comandadas por este, as tropas governamentais desembarcaram, no dia 27, na Ponta de São Lourenço e, devido à superioridade em meios humanos e materiais, tomaram, em 1 e 2 de Maio, o Machico. No dia 2, a Junta Revolucionária, chefiada pelo general Sousa Dias e pelo coronel Freiria, capitulou. Apesar de colocados sob protecção inglesa no navio «London», estes dois oficiais, bem como 120 revoltosos foram entregues às autoridades portuguesas e deportados para Cabo Verde.
A Junta Revolucionária da Madeira tinha desde o início feito apelo às unidades militares do continente, das colónias e dos Açores para que se juntassem à revolta daquela ilha. No entanto, ao contrário dos revoltosos da Madeira, a sublevação de 200 deportados dos Açores não recebeu apoio popular, nem o da maioria das guarnições militares. Nessas ilhas atlânticas, aderiram à revolta, iniciada em Angra do Heroísmo, a 7 de Abril, cerca de 120 civis e militares deportados, chefiados pelo comandante Maia Rebelo, pelo capitão João Manuel de Carvalho, pelo major Armando Pires Falcão e por Lobo Pimentel, um antigo sidonista. No dia 17 de Abril, revoltara-se entretanto a guarnição da Guiné. Cerca de uma vintena de sargentos formaram uma breve Junta Revolucionária sob o comando do coronel médico Gonçalo Monteiro Filipe, e tomaram o quartel de Bolama, realizando uma expedição ao arquipélago de Cabo Verde. Não conseguiram porém qualquer adesão à revolta, e, ao serem informados da derrota dos sublevados da Madeira, acabaram por se render sem condições ao delegado enviado pela Ditadura, no dia 6 Maio. Já depois de derrotada a revolta das Ilhas e da Guiné, o comandante da Polícia de S. Tomé, capitão Silvério do Amaral Lebre, com alguns oficiais e sargentos, bem como alguns nativos, roceiros, funcionários públicos e empregados de comércio revoltaram-se contra o governador, na madrugada de 12 de Maio. Sem relação com os acontecimentos nas ilhas atlânticas, esta revolta partiu de funcionários administrativos, aos quais se juntaram outros europeus, motivados por diversos interesses e sobretudo por dificuldades económicas.
Como já se viu ao contrário do que esperavam os sublevados, a revolta das ilhas não teve eco na metrópole, apesar de se ter então feito sentir grande agitação social, devido à crise económica e financeira europeia, que levou à quebra das exportações coloniais, ao aumento do desemprego, bem como à interrupção da emigração e das transferências de divisas do Brasil. Numa situação social quase explosiva, as organizações anarco-sindicalistas e comunistas convocaram, para 29 de Fevereiro de 1931, uma «jornada internacional contra o desemprego» e a fome, em Lisboa, apelando ainda a uma «greve geral» contra o «imposto dos 2 %» para o Fundo de Desemprego, que não foi levada adiante. No meio académico de Lisboa e Porto, onde também continuava a reinar a insatisfação, voltou a ter lugar, em Abril e Maio 1931, um movimento grevista, iniciado na capital, que se espalhou ao Porto e Coimbra.
Para o 1.º de Maio de 1931, foram convocadas pelo PCP manifestações, com a participação dos jovens da FJCP, em Lisboa, Braga, Viana do Castelo, Cartaxo, Óbidos, Almada, Tortosendo e Faro. Recorde-se que, entre Setembro de 1930 e início de 1933, embora na ausência de Bento Gonçalves, que esteve então deportado para Cabo Verde, o PCP conheceu um momento de expansão, graças ao processo de reorganização iniciado por aquele dirigente e José de Sousa, entre outros, em 1929. Com apenas 130 elementos, no final de 1930, esse partido já contava com cerca de 700 filiados, em 1931, ano em que o PCP lançou a Comissão Inter-Sindical (CIS) e a Organização Revolucionária do Exército (ORE), além de começar a publicar o Avante! e O Jovem, órgãos respectivamente do Partido e da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP). Embora influenciando alguns jovens operários e estudantes, em particular das escolas profissionais, o PCP era então minoritário em termos de militantes, comparativamente aos jovens republicanos, e sobretudo aos libertários e anarco-sindicalistas, da Confederação Geral do Trabalho (CGT)
Entretanto, devido às crises sucessivas às quais o governo até ali apenas tinha reagido com o silêncio, Salazar resolvera emitir, no dia 6 de Maio de 1931, uma nota oficiosa, a chamar a atenção para os danos causados à economia nacional pelas «alterações da ordem pública nos Açores e na Madeira», bem como pelas «agitações subversivas no Continente nos últimos dias». Utilizando depois a comparação, Salazar disse que as despesas provocadas por esses distúrbios eram da ordem de grandeza dos «juros de toda a dívida flutuante, constituída em bilhetes do Tesouro, durante um ano». Salazar fustigou os “desordeiros”, instando-os a desistissem de fomentar a desordem e avisando-os de que o governo os tornaria «impotentes para a acção revolucionária».
Onze dias depois, o chefe do governo Domingos de Oliveira e Salazar, com o apoio da recém-criada UN, promoveram uma manifestação de massas de auto-apoio. As ruas de Lisboa seriam depois palco de confrontos entre os jovens apoiantes da ditadura, transportados à capital, em comboios especiais, e jovens republicanos, da FJCP e da CGT. No seio do governo, havia entretanto chegado a hora de fazer o balanço da situação. Política e militarmente vitoriosa das revoltas das ilhas e de algumas colónias, a Ditadura Nacional voltou a endurecer os seus meios repressivos, além de demitir a maioria dos implicados presos, deportou-os sem qualquer julgamento, para novas colónias penais entretanto criadas, nomeadamente em Ataúro e Oecussi, em Timor, bem como na ilha de S. Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde.
(continua)
Para ler mais
-A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, volume III, , Lisboa, Palas Editora, 1986
- Cristina Faria, «A contestação à ditadura militar», História, ano xx, nova série, n.º 4/5, Julho/Agosto 1998, pp. 38-49
- Filomena Bandeira, «A Oposição externa à ditadura: A Revolta de Fevereiro de 1927 em Lisboa», in O Estado Novo. Das Origens ao Fim da Autarcia 1926-1959. Lisboa, Editorial Fragmentos, 1987, volume II, p. 29
- Luís Farinha, O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940, Lisboa, Editorial Estampa, 1998
- Memórias do Coronel Manuel António Ribeiro, no prelo (a sair em 2011, no Círculo de Leitores)