A obra de Musil, «O Homem sem Qualidades», que li há muito, começa, se a memória não me trai, com uma imagem de zoom cinematográfico que parte dos céus para afunilar o espectro de visualização sucessivamente, até chegar à rua, à casa e à personagem. No meu processo de zoom, parto da crise global que se vive actualmente num mundo à beira do abismo, para chegar à actual destruição da Europa - confesso que a U.E. é a minha utopia pessoal -, por várias razões, uma das quais se prende por estar a ser minada pela Direita neo-liberal, cuja política de austeridade não tem saída, na minha opinião. No entanto, e chegando à minha “rua”, nessa Europa neo-liberal de Direita, sem se afastar dela, Portugal está a viver um “fenómeno” específico, que advém da nossa história recente.
Eu penso que estamos a ser governados por jovens de Direita, cuja mobilidade ascensional social, como a da generalidade dos portugueses, foi possibilitada (e bem) pela democratização social, política e económica proporcionada pelo Estado social dos últimos 36 anos. Esta mobilidade ascensional social pode ser encarada como um bem que deve ser retribuído por aqueles que dele já beneficiaram, ao ser mantido, aprofundado, alargado a mais pessoas e deixado em herança aos que vêm depois de nós. Esta atitude implica a manutenção do Estado social, com o alargamento e aperfeiçoamento da Escola pública e a viabilização do Serviço Nacional de Saúde, para só falar nestes dois factores. Mas esta mobilidade ascensional pode ser encarada de outra forma: ou seja, como algo que já tendo chegado a alguns, fique por esses mesmos, pois consideram que «quem tem unhas toca viola» e que eles próprios se incluem nesse grupo. Com desprezo, acham que outros não tocam viola por não terem unhas, por culpa própria, mas como são muito «decentes» não os querem ver na rua, pelo que lhes reservam a assistência social caritativa, à qual são o nome de «emergência social».
O que se está a passar em Portugal há um mês, e rapidamente – não compartilho a ideia que nada está a ser feito, antes pelo contrário –, é, para mim, de bradar aos céus. Para só falar de duas “reformas” já concretizadas ou iniciadas, lembro-me das nomeações na caixa Geral de Depósitos – a preparar aliás o caminho para a transformação da mesma - e a compra do BPN pelo BIC. A propósito deste assunto, quem anda a explicar, na imprensa e TV, que a «verdade é que, com este acordo de compra do BPN, se encerra o mau negócio do passado» é… o Eng.º Mira Amaral, precisamente o advogado em causa própria, dirigente do BIC, que comprou o BPN. Até agora, também houve um aumento exponencial do preço dos transportes e um imposto de Dezembro – escondido e negado na campanha eleitoral -, reveladores de uma falta de sensibilidade social.
Mas o governo prometeu que vinha aí um vasto programa de assistência, perdão, «emergência social», cuja primeira medida acaba de ser apresentada. Decalcada num programa recentemente ensaiado em 42 (42!) apartamentos, em Vila Nova de Gaia, e trazido ao governo por um senhor com um nome da antiga Roma imperial (não, não é Júlio César), este programa consiste em o Estado distribuir casas, que uns compraram a crédito, sem agora as poder pagar e por isso entregues à Banca, por outros, a preços de saldo. Ou seja, os neo-liberais portugueses que tanto clamam contra o Estado põe este mesmo Estado a resolver questões de mercado e tira aos novos pobre, ou quase pobres que não tiveram «unhas para tocar viola», para entregar a outros pobres, «em emergência social», com certeza para ver se estes sabem ou não «tocar violas». Só tenho duas perguntas a fazer: esta medida não fere o princípio de igualdade constitucional? Quem, no Estado, vai escolher quem merece a casa que o outro deixou de merecer?