2.1.12

"Punir a polícia política na transição portuguesa para a democracia"

No passado dia 25 de Novembro, participei, juntamente com António Costa Pinto, Filipa Raimundo e Maria Inácia Rezola, numa conferência, intitulada «Dealing with the Legacy of Authoritarism in Contemporary Democracies: Portugal & Southern Europe in Comparison», realizada no Kings´s College, de Londres, organizada por António Costa Pinto e Luísa Pinto Teixeira. Na ocasião afirmei ser um mito a ideia de que em Portugal os elementos da PIDE/DGS não teriam sido punidos no período pós-25 de Abril. Essa afirmação, bem como a de terem sido alvo de processo judicial em tribunal militar 2755 elementos da PIDE/DGS foram reproduzidas – de forma correcta – por um jornalista presente da Agência Lusa. Para contextualizar essas afirmações, publico aqui a versão portuguesa da minha intervenção, intitulada «Punir a polícia política na transição portuguesa para a democracia».

O golpe militar do MFA de 25 de Abril de 1974 inaugurou uma nova vaga dos processos de democratização da Europa do Sul, dando lugar a uma crise revolucionária de Estado, em que ocorreram, em simultâneo, a democratização e a descolonização. Foi uma transição para a democracia por ruptura, que provocou uma forte mobilização anti-ditatorial, determinante para a imediata dissolução das instituições conotadas com o regime deposto. Na primeira linha desse desmantelamento, esteve, por exigência dos elementos que se tinham oposto à ditadura, o aparelho repressivo - a Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS).
Um diploma do próprio dia 25 de Abril de 1974 determinou a extinção da DGS, embora se dissesse, no seu art.º 2.º, que, «no Ultramar, depois de saneada», seria reorganizada «em Polícia de Informação Militar, nas províncias em que as operações militares o exigirem» (Decreto-lei n.º 171/74). Logo após o golpe militar, em Junho de 1974, já tinham sido detidos em Portugal cerca de mil membros da polícia política, incluindo indivíduos considerados informadores. Em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, isso só viria a acontecer meses depois, em virtude da dinâmica do próprio movimento decorrente do 25 de Abril, que forçou à imediata descolonização. Neste período, assistiu-se também, com a ajuda de oficiais militares, à fuga de diversos inspectores da PIDE/DGS, alguns com responsabilidades em casos de assassinato.
Em final de Junho de 1974, foram criados a Comissão de Liquidação da PIDE/DGS, que deu por concluída a sua missão em Fevereiro de 1976, e o Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa (SCE da PIDE/DGS e LP), com, entre outras, a função de instruir os processos-crime de inculpação dos membros da polícia política. Foi à guarda do SCE da PIDE/DGS e LP, mais conhecido por Comissão de Extinção da PIDE/DGS, inicialmente sob tutela do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e depois da Junta de Salvação Nacional, que ficaram os arquivos da PIDE/DGS.
A primeira Comissão de Extinção da PIDE/DGS, começou por ser da responsabilidade imediata do comandante Conceição Silva, que, em Agosto de 1974, informou estarem detidos 927 elementos da DGS e 44 informadores. Ao fim de 4 meses de trabalho, a secção de investigação da Comissão de Extinção afirmou ter 116 processos judiciais já prontos, relativos a elementos presos, e que 58 membros da ex-polícia política estavam em liberdade condicional.
No período a seguir ao golpe militar de 1974, ocorreram movimentos sociais que se foram progressivamente radicalizando, no que se convencionou chamar pelo Processo Revolucionário em Curso (PREC), no contexto do qual a lei 8/75, de 25 de Julho de 1975, criminalizou os elementos e informadores da DGS, prevendo as penas a que eles estariam sujeitos em julgamento realizado em Tribunal Militar (Lei 13/75, de Novembro): consoante as responsabilidades provadas, seriam condenados a penas que variavam entre os dois a oito anos e os oito a doze anos de prisão. Eram recusadas, tanto a imprescritibilidade do procedimento criminal, como a suspensão das penas, bem como a sua substituição por multa.
O chamado PREC terminou em 25 de Novembro de 1975, com a vitória dos moderados do MFA, tendo dois diplomas - leis 16/75 e 18/75 - alterado algumas características da lei 8/75, abrindo possibilidade à libertação, enquanto aguardavam julgamento, de ex-elementos da polícia política. Em 5 de Dezembro de 1975, a Comissão de Extinção da PIDE/DGS passou a depender do Conselho da Revolução (CR), que nomeou o capitão Sousa e Castro para superintender aqueles serviços, que passaram presididos pelo general Manuel Ribeiro de Faria.
O CR, que tinha competência legislativa sobre a definição dos contornos das leis, até à aprovação da nova Constituição da República, mandou publicar, em 13 de Maio de 1976, o DL 349/76, que criou atenuantes nos crimes dos elementos da ex-PIDE/DGS. Por exemplo, se estes tivessem mais de 70 anos de idade à data do julgamento ou houvessem prestado serviço no Ultramar, colaborando com as Forças Armadas, ou tivessem estado às ordens destas, após 25 de Abril de 1974, designadamente na Polícia de Informação Militar, passariam a ser meramente condenados em suspensão de direitos políticos.
Ao tomar posse do seu cargo, o capitão Sousa e Castro daria conta que havia então 200 processos judiciais já organizados e 260 entregues ao tribunal. Por seu turno, acusado na imprensa de querer pôr uma esponja sobre o passado, ao libertar a maioria dos elementos da PIDE/DGS, o general Ribeiro de Faria informou que tinham sido postos em liberdade provisória, 1.222 elementos dessa polícia, entre os quais se contavam 204 informadores, 6 administrativos, 1 guarda prisional, 1.008 agentes, chefes, directores e 3 ex-ministros. Em liberdade definitiva, estavam 62 elementos (A Luta, 22/6/76)
Em Janeiro de 1977, a imprensa noticiou que, entre sete elementos da PIDE/DGS recém-julgados, nenhum iria ficar preso, pois que seis tinham sido condenados a penas de cadeia já expiadas com a prisão preventiva e um deles apenas havia sido sentenciado a suspensão de direitos políticos. No final desse ano, foi julgado um dos casos mais emblemáticos, relacionados com a polícia política: o caso do escultor comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE, em 1961. O ex-chefe de brigada da PIDE, considerado o autor material do crime, António Domingues, foi condenado a três anos e nove meses prisão, o que significava que, com a prisão preventiva já sofrida, apenas ficaria mais dez meses preso, o que causou forte indignação em parte da opinião pública. Em Maio de 1978, começou, por seu turno, o julgamento dos assassinos do general Humberto Delgado e da Sua secretária, Arajaryr Campos, mortos pela PIDE, em Fevereiro de 1965, que prosseguiria pelo ano de 1980.
Dois anos depois, após uma revisão constitucional, entrou em vigor a Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, que acabou com o CR e colocou transitoriamente o SCE da PIDE/DGS na dependência administrativa da Assembleia da Republica. Esta ficou de decidir do destino dos arquivos dessa polícia política, que viriam a ser transferidos para o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, em 1991, ano da extinção do SCE da PIDE/DGS, passando a ser consultáveis, com algumas restrições, em 1994.
Por seu turno, ao prestar contas, em Agosto de 1982, o SCE da PIDE/DGS declarou que mais de seis mil elementos dessa polícia já estavam com o processo judicial organizado, dos quais tinham sido levados a tribunal 1089, tendo sido mandado arquivar os processos relativos aos restantes 69%. Na maioria dos enviados para tribunal, a sentença não excedeu os seis meses já cumpridos em prisão preventiva e apenas 5,5% foram punidos a mais de dois anos de prisão. Num balanço realizado em Fevereiro de 1986, a Comissão de Extinção da PIDE/DGS e da LP, contabilizou o número total de sentenças atribuídas pelo Tribunal Militar a ex elementos e informadores da PIDE/DGS, até então (dados recolhidos nos arquivos do SCE da PIDE/DGS e da LP).

SentençaNúmero%
Soma2755100
Absolvidos1756
Suspensão de direitos políticos1074
Até 1 mês101437
De 1 a 6 meses84731
De 6 meses a 1 ano1726
De 1 a 2 anos39714
Desde 2 anos432
De notar que, com sentenças de um a dois anos de cadeia, foram condenados 8 elementos do pessoal dirigente, 30 inspectores, subinspectores e chefes de brigada, 315 agentes e motoristas e 44 informadores. Com sentenças de mais de dois anos, foram condenados 1 elemento dirigente, 15 membros do pessoal intermédio, 9 agentes e motoristas, bem como 18 informadores.