6.8.11

Da Assistência Social à Emergência Social (À atenção do Senhor Ministro da Segurança Social)



Eduardo Batarda, S/Título, 1971
 Talvez seja interessante, nos tempos actuais, saber alguns dados sobre a história recente portuguesa, no que se relaciona com a assistência e a previdência social nos diversos regimes, até se chegar ao ministério da Segurança Social. Por razões de espaço, fico-me pelos anos 40 do século XX.

-Entre 1916 e 1925, existiu o Ministério do Trabalho e Previdência Social

- Com o Estado Novo corporativo, passou a haver um Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social (1933-1950), depois, Ministério das Corporações e Previdência Social (1950-1973) e, posteriormente, Ministério das Corporações e Segurança Social (1973-1974)

- A Assistência Social era tutelada pelo Ministério do Interior, através do Subsecretariado de estado da Assistência Social (1940-1958) até ser criado o Ministério da Saúde e Assistência (1958-1973), depois transformado em Ministério da Saúde (1973-1974).

O «direito à assistência pública» foi consagrado, em Portugal, na Constituição republicana de 1911, ano em que também foi criado, em 25 de Maio, o Fundo Nacional de Assistência e a Direcção-Geral de Saúde. Dois anos depois, foi promulgada uma lei sobre a responsabilidade patronal pelos acidentes de trabalho e, em 16 de Março de 1916, foi criado o Ministério do Trabalho e Previdência Social. Em 25 de Novembro de 1925, o Ministério do Trabalho foi extinto passando a Direcção-Geral de Assistência, da sua tutela, para a do Ministério do Interior. Por seu lado, os Serviços de Saúde Pública, geridos pela Direcção Geral de Saúde, foram reorganizados ainda nesse ano de 1926, acontecendo o mesmo no ano seguinte a todos os serviços de assistência. A fiscalização de todos os estabelecimentos privados e a intervenção em tudo o que dizia respeito à assistência pública foram atribuídas à Direcção-Geral de Assistência, em 1931, no mesmo ano em que foi regulada a repressão à mendicidade no espaço público, também da competência do ministério do Interior, que tutelava ainda as polícias.

Em Julho de 1932, Duarte Pacheco, que acabara de ser nomeado para a pasta das Obras Públicas e Comunicações (MOPC) no primeiro governo presidido por Salazar, propôs que as verbas do Fundo de Desemprego passassem a ser aplicadas nos programas de obras públicas. Duarte Pacheco criou depois o Comissariado do Desemprego, organismo autónomo no seio do Ministério das Obras Públicas e Comunicações (MOPC), que ficaria assim responsável, até aos anos sessenta, pelo auxílio aos desempregados. O desemprego ficou, assim, até então fora do grupo de riscos que deveriam ser atenuados pela previdência social, e isso contrariamente ao texto do Estatuto de Trabalho Nacional, de 1933). A nova Constituição portuguesa de 1933, que já não incluiu o «direito» à assistência pública, afirmou, porém, que cabia ao Estado «coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais», no sentido de «defender a saúde pública», assegurar a «defesa da família», «proteger a maternidade» e «zelar pela melhoria das condições das classes coais mais desfavorecidas, procurando assegurar-lhes um nível compatível com a dignidade humana».

A discussão aprofundada sobre a assistência pública no Estado Novo iniciou-se, em 1934, no I Congresso da União Nacional, onde ficou claramente definido o papel «supletivo» do Estado relativamente às iniciativas particulares, nomeadamente da Igreja católica. Os dirigentes do Estado Novo e o próprio Salazar atribuíam a miséria em Portugal a dois defeitos principais: à preguiça e à imprevidência. A caridade, a cargo da Igreja e da iniciativa particular poderia atenuar a pobreza, mas não bastava para a eliminar, e quanto à assistência social, se fosse excessiva, acabava por humilhar as pessoas assistidas e por estimular o «parasitismo». Por isso, enquanto não se conseguisse modificar a «mentalidade» portuguesa, o Estado Novo propunha-se reduzir ao mínimo «as necessidades de assistência porque o mais importante era fazer a profilaxia da miséria e da simples necessidade pela previdência e ordenação de trabalhos públicos».

A Previdência Social, cuja lei de 1935 – não deve ser confundida com a lei da Assistência Social – não abrangia o meio rural e incluía apenas, entre os riscos que prevenia, a velhice, a doença, a invalidez, a morte e os encargos familiares nos sectores da indústria, comércio e serviços. Deixava assim a descoberto o desemprego – a cargo do Fundo do Desemprego do MOPC –, os acidentes de trabalho, as doenças profissionais, a tuberculose e a maternidade. A mendicidade continuou a ser um crime gerido por isso pelo ministério do Interior, que tanto tutelava as polícias como a assistência social. Em 1935, ano da criação da Lei da Previdência Social corporativa e do Instituto de Serviço Social em Lisboa, a Mitra foi colocada sob a dependência da PSP.

Para responder a reclamações da “opinião pública”, foi constituído, em 1937, no âmbito da Direcção Geral de Assistência, uma comissão de estudo para a reforma dos serviços de assistência segundo os novos conceitos introduzidos pela organização económica e social do Estado Novo corporativo, o qual deveria ter um papel orientador e coordenador relativamente a uma assistência que se desejava maioritariamente privada. Foi preciso esperar, no entanto, mais três anos para que fosse criado, em 1940, o Subsecretariado de Estado da Assistência Social, tutelado pelo ministério do Interior tinha, cujas atribuições relacionadas com a «gestão» da pobreza incluíam, desde a assistência aos que esmolavam «por virtude do reconhecido estado de necessidade», à repressão dos pedintes «por vício», que eram encerrados nos albergues de mendicidade, na dependência da Polícia de Segurança Pública.

Em 1944, numa conjuntura de crise, miséria e de desemprego da II Guerra Mundial, foi promulgado o Estatuto da Assistência Social, segundo o qual a assistência deveria ser prestada em coordenação com a previdência e com os organismos corporativos, não favorecer a «preguiça» ou a «pedinchice» e ter em vista «o aperfeiçoamento da pessoa e da família». Num folheto de propaganda sobre a assistência social em Portugal, editado pelo Secretariado de Propaganda Nacional após o final da II Guerra Mundial, considerava-se que os portugueses tinham uma «tendência natural à piedade, religiosidade e espírito de sacrifício» e que, por isso, lhes repugnava a «monstruosa teoria de Nietzsche de horror à piedade, de desprezo pelos fracos», baseada na ideia da «selecção natural». A assistência caberia, assim, em primeiro lugar, ao espírito caridoso dos portugueses e à iniciativa particular, e só depois ao Estado. Reconhecia-se o pioneirismo de Beveridge ao proclamar, na Grã-Bretanha, em 1942, «o escândalo da miséria» e ao rever as políticas utopistas da filantropia do século XIX, mas lembrava-se que a indispensável assistência pública não podia «suprir a assistência particular» nem impossibilitar a beneficência individual.

O mais sensato, num país onde, segundo o folheto, a miséria não tinha atingido «o grau verificado em outros países» e onde o povo se contentava com pouco, apesar do baixo nível de vida, seria «procurar modificar a mentalidade tradicional» e tornar a assistência «mais assente no dever de todos» do que «no direito dos pobres». As principais causas de miséria eram atribuídas, ainda nessa brochura, a «taras psíquicas», provocadas pela «degenerescência hereditária», pela sífilis e pelo alcoolismo, a situações sociais, entre as quais pontificava a falta de amparo às famílias numerosas, e, finalmente, a defeitos individuais, provenientes da industrialização e causadoras de relações degradadas entre patrões e assalariados. Ao definir os que deveriam beneficiar da assistência pública, o Estado Novo estabeleceu uma autêntica tabela classificativa de «maus» – ou «parasitas sociais» – e de «bons» pobres, a única categoria passível de ser apoiada.

Pós 25 de Abril de 1974
Ministério dos Assuntos Sociais e Ministério do Trabalho (1974- 1983)
Ministério do Trabalho e da Segurança Social (1983- 1987)
Ministério do Emprego e da Segurança Social (1987- 1995)
Ministério para a Qualificação e Emprego e Ministério da Solidariedade e da Segurança Social (1995- 1999)
Ministério do Trabalho e da Solidariedade (1999- 2002)
Ministério da Segurança Social e do Trabalho (2002- 2004)
Ministério da Segurança Social, da Família e da Criança e Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho (2004 - 2005)
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (2005-2011???

Quem tem unhas toca viola?



A obra de Musil, «O Homem sem Qualidades», que li há muito, começa, se a memória não me trai, com uma imagem de zoom cinematográfico que parte dos céus para afunilar o espectro de visualização sucessivamente, até chegar à rua, à casa e à personagem. No meu processo de zoom, parto da crise global que se vive actualmente num mundo à beira do abismo, para chegar à actual destruição da Europa - confesso que a U.E. é a minha utopia pessoal -, por várias razões, uma das quais se prende por estar a ser minada pela Direita neo-liberal, cuja política de austeridade não tem saída, na minha opinião. No entanto, e chegando à minha “rua”, nessa Europa neo-liberal de Direita, sem se afastar dela, Portugal está a viver um “fenómeno” específico, que advém da nossa história recente.

Eu penso que estamos a ser governados por jovens de Direita, cuja mobilidade ascensional social, como a da generalidade dos portugueses, foi possibilitada (e bem) pela democratização social, política e económica proporcionada pelo Estado social dos últimos 36 anos. Esta mobilidade ascensional social pode ser encarada como um bem que deve ser retribuído por aqueles que dele já beneficiaram, ao ser mantido, aprofundado, alargado a mais pessoas e deixado em herança aos que vêm depois de nós. Esta atitude implica a manutenção do Estado social, com o alargamento e aperfeiçoamento da Escola pública e a viabilização do Serviço Nacional de Saúde, para só falar nestes dois factores. Mas esta mobilidade ascensional pode ser encarada de outra forma: ou seja, como algo que já tendo chegado a alguns, fique por esses mesmos, pois consideram que «quem tem unhas toca viola» e que eles próprios se incluem nesse grupo. Com desprezo, acham que outros não tocam viola por não terem unhas, por culpa própria, mas como são muito «decentes» não os querem ver na rua, pelo que lhes reservam a assistência social caritativa, à qual são o nome de «emergência social».

O que se está a passar em Portugal há um mês, e rapidamente – não compartilho a ideia que nada está a ser feito, antes pelo contrário –, é, para mim, de bradar aos céus. Para só falar de duas “reformas” já concretizadas ou iniciadas, lembro-me das nomeações na caixa Geral de Depósitos – a preparar aliás o caminho para a transformação da mesma - e a compra do BPN pelo BIC. A propósito deste assunto, quem anda a explicar, na imprensa e TV, que a «verdade é que, com este acordo de compra do BPN, se encerra o mau negócio do passado» é… o Eng.º Mira Amaral, precisamente o advogado em causa própria, dirigente do BIC, que comprou o BPN. Até agora, também houve um aumento exponencial do preço dos transportes e um imposto de Dezembro – escondido e negado na campanha eleitoral -, reveladores de uma falta de sensibilidade social.

Mas o governo prometeu que vinha aí um vasto programa de assistência, perdão, «emergência social», cuja primeira medida acaba de ser apresentada. Decalcada num programa recentemente ensaiado em 42 (42!) apartamentos, em Vila Nova de Gaia, e trazido ao governo por um senhor com um nome da antiga Roma imperial (não, não é Júlio César), este programa consiste em o Estado distribuir casas, que uns compraram a crédito, sem agora as poder pagar e por isso entregues à Banca, por outros, a preços de saldo. Ou seja, os neo-liberais portugueses que tanto clamam contra o Estado põe este mesmo Estado a resolver questões de mercado e tira aos novos pobre, ou quase pobres que não tiveram «unhas para tocar viola», para entregar a outros pobres, «em emergência social», com certeza para ver se estes sabem ou não «tocar violas». Só tenho duas perguntas a fazer: esta medida não fere o princípio de igualdade constitucional? Quem, no Estado, vai escolher quem merece a casa que o outro deixou de merecer?