16.1.12

No 50.º aniversário da Revolta de Beja

No passado dia 14 de Janeiro de 2012, realizou-se, com grande afluência, mno Museu da República e Resistência em Lisboa, uma sessão sobre a revolta de Beja, com a tentativa falhada da tomada do Quartel do Regimento de Infantaria 3 de Beja, na noite de 31 de Dezembro de 1961 para 1 de Janeiro de 1962. Na sessão, organizada pelo movimento-associação Não Apaguem a Memória, estiveram presentes a maioria dos participantes sobreviventes dessa acção revolucionária contra a ditadura salazarista, bem como e m alguns casos seus filhos e netos. Como muitas pessoas que não puderam estar presentes, me perguntaram se haveria algum registo da sessão, publico aqui o conteúdo da minha intervenção, cuja coloquialidade mantive.

«Em primeiro lugar, gostaria de manifestar o meu contentamento por poder estar aqui nesta sessão, onde, creio, é principal objectivo retirar do esquecimento um importante acontecimento na luta contra a ditadura. Deve-se dizer que a memória da revolta armada de Beja, na passagem do ano de 1961 para 1962, foi apagada evidentemente, por razões óbvias, pelo próprio regime salazarista, mas também o foi por uma parte da oposição ao regime, que nela não participou. E, no entanto, o punhado de homens e algumas mulheres que generosamente se envolveram no movimento de Beja fê-lo de forma algo nova e diferente do que até aí tinha acontecido, durante o regime ditatorial.
Ao abordar alguns dos episódios de que aconteceu em Beja, procurarei reflectir sobre essa revolta, embora sem deixar de alertar para o facto de que o que sabemos hoje – ou seja, conhecemos a continuação da história, onde ela desembocou -, não era conhecido então pelos protagonistas. Estavam então abertas várias possibilidades e os diversos factores em presença poder-se-iam ter conjugado com consequências diferentes. Antes de formular algumas conclusões, vou de qualquer forma tentar abordar várias questões sugeridas pelos acontecimentos de Beja, colocadas em forma de pergunta:
 - Que programa político seria levado a cabo após o controlo do quartel de Beja?
- Quem foram os participantes civis e militares da acção?
- Como decorreu a revolta propriamente dita?
- De que forma decorreu a presença de Humberto Delgado em Portugal
- Qual foi o papel da PIDE e das forças repressivas
- Como e quando soube o governo do que se passava em Beja
- Que papel teve o PCP?
A ausência de programa
Desde logo, ressalta dos vários relatos sobre a revolta de Beja, a ausência de um programa político para ser cumprido após o sucesso da operação do quartel, além do programa geral do derrube da ditadura. Noutras tentativas de sublevação ou golpe militar contra a Ditadura, com a participação de civis, sempre tinha sido previamente negociado um programa a ser levado a cabo logo que fosse assumido o controlo do alvo inicial, habitualmente um quartel. No caso da tomada do quartel de Beja, não houve a elaboração prévia de qualquer programa, provavelmente para não criar divisões, devido às várias sensibilidades políticas dos participantes.
Por outro lado, lembre-se que no contexto da época, já havia muitas críticas relativamente aos oposicionistas que perdiam tempo em discutir programas, para não passarem ao acto. Muitos dos que aderiram sabiam que por trás da acção revolucionária estava Humberto Delgado, cujo delegado – Manuel Serra - estava mandatado para chefiar uma revolta. Ainda relativamente ao programa político da revolta de Beja, alguns dos participantes terão achado suficiente o já existente Programa para a Democratização da República, apresentado em meados de 1961, que também serviu de base à participação de uma certa oposição.
De qualquer forma, todos os participantes estavam informados dos enormes riscos que corriam e muitos talvez estivessem mesmo convictos de que a operação falharia. Mesmo assim aceitaram participar, provavelmente com o único desejo de revelar que havia pessoas subjectiva e objectivamente preparadas para arriscarem a vida para derrubar o regime e deixarem de praticar uma «oposição sentada», como dizia criticamente Humberto Delgado.
Quanto ao plano das operações, que incluía apenas os primeiros passos da tomada do quartel do Regimento de Infantaria 13 de Beja, por um grupo de militares e depois por um grupo de civis, não era todo conhecido pelos principais dirigentes. A parte militar, como se verá, desconhecia o detalhe da parte civil, nomeadamente a prevista chegada de Humberto Delgado, tal como esta desconhecia a parte militar. As operações estavam de qualquer forma enquadradas no «projecto Íkaro», gizado por Humberto Delgado, no contexto do exílio brasileiro, da constituição do DRIL, do assalto ao navio Santa Maria e do desvio de um avião da TAP, comandados por Henrique Galvão. Após o regresso clandestino a Portugal e de proceder aos primeiros difíceis recrutamentos de civis, Manuel Serra pôs em prática, de forma modificada, o plano de Delgado. Houve, em 2 e 8 de Dezembro, duas primeiras idas a Beja, uma de reconhecimento e outra tentativa de tomada do quartel, que abortou por falta de operacionais, que então apenas eram civis
Os participantes
Manuel Serra teve grandes dificuldades em recrutar elementos para a revolta, embora dos que aceitaram participar poucos tivessem desistido à última da hora e não terá sido através deles que a PIDE terá sabido do que se iria passar. Havia falta de tudo: falta organização prévia, ligação a qualquer grupo ou movimento, aparelho logístico, armas e viaturas. Muitos dos que aderiram sabiam que por trás da acção revolucionária estava Humberto Delgado, cujo delegado – Manuel Serra - estava mandatado para chefiar uma revolta.
Para a preparação desta acção, Manuel Serra reuniu com regularidade com um grupo inicial de civis composto por ele, Edmundo Pedro, David Abreu, António Vilar e Artur Vaz, aos quais se juntariam António da Graça Miranda, Mariana Esteves, Gualter Basílio e Germano Pedro. Entre as adesões de civis que o grupo viria a receber, contaram-se as de elementos oposicionistas da Seara Nova e outros que reuniam à volta de Fernando Piteira Santos e de Lígia Monteiro, bem como diversos republicanos. Liberais, católicos progressistas, havendo até sacerdotes e alguns monárquicos.
Manuel Serra recrutou ainda familiares e jovens conterrâneos dos bairros da Liberdade, Campolide e Serafina, na capital, e houve ainda, embora à revelia do PCP, a adesão de alguns comunistas de Almada e do Barreiro. Segundo uma contabilização realizada por um dos participantes directos da revolta, Raul Zagalo, dos 65 julgados e condenados por participação directa na revolta, 42 eram operários, 13 eram comerciantes e pequenos empregados administrativos, 8 eram militares, dos quais 6 oficiais e 2 eram licenciados.
Relativamente à adesão posterior de alguns militares, o caso mais importantes foi o do capitão Varela Gomes, que não aderiu de imediato, mal impressionado com o amadorismo das duas primeiras idas a Beja. Ao saber, através de um encontro com o tenente de Administração Militar, Alexandre Hipólito dos Santos, em serviço no R.I. 3, de Beja, da existência nessa unidade de um núcleo de oficiais anti-fascistas, entre os quais se contavam ele próprio, o tenente Brissos de Carvalho e o comandante da companhia de ordem pública, Francisco Vasconcelos Pestana, ex-colega de curso na Academia Militar do Varela Gomes. Este decidiu então participar no movimento, acedendo a fazê-lo, numa reunião de 15 de Dezembro, e a obter a adesão de militares que secundariam os civis, caso estes avançassem.
As memórias dos militares directamente envolvidos aproximam-se, ao justificar hoje a sua adesão à revolta de 1961, revelam de maneira geral terem aceitado participar no movimento, por estarem convencidos que os civis, sozinhos, falhariam e não quererem ficar com o peso na consciência de um banho de sangue. Por outro lado, segundo o capitão João Varela Gomes, «o desastre militar em Goa, a 19 de Dezembro» acabaria por dar «o argumento que faltava para vencer as hesitações» de outros oficiais, entre os quais se contaram Robin de Andrade, Marcelino Marques e Ribeiro Simões.
Nas suas memórias, Eugénio de Oliveira contaria que, na segunda linha da preparação do golpe, estavam ainda os capitães Chaves Guimarães, Billstein de Menezes, Xavier de Brito e Cruz Quintino, e que haveria «um terceiro círculo de militares que esperavam o ruído do “motor de arranque” para arrastarem ou neutralizarem as unidades onde estavam colocados». De forma directa, participaram no ataque ao quartel de Beja, sob o comando do capitão Varela Gomes, o tenente Jaime Carvalho da Silva e os capitães Pedroso Marques e Eugénio de Oliveira, bem como o capitão Francisco Pestana e tenente Alexandre Hipólito dos Santos, colocados em Beja. Os outros avançariam, após o assalto a este quartel ter sucesso.
Observe-se que, até então, todas as tentativas de revolta militar contra o governo fracassadas haviam caído nesse círculo vicioso que consistia em lançar uma operação isolada, esperando que mais unidades militares se revoltassem e a essa aderissem, com a participação directa ou indirecta de civis. Antes de 1961/62, a última a eclodir e a falhar tinha sido a revolta da Mealhada/Abrilada, em dois momentos em 1946 e 1947, e depois, houve ainda, sem chegar a sair, já com a participação e civis, a revolta da Sé, em 1959.
O ataque ao quartel de Beja
Quanto à revolta de Beja propriamente dita, veja-se o que na realidade aconteceu, sem falar nos atrasos, nos desencontros entre militares e civis e no desencontro de Humberto Delgado, presente em Beja, na própria noite de 31 de Dezembro. Apenas quando já passava da 1 hora da madrugada de dia 1, e se preparava para fazer abortar a operação, Varela Gomes avistaria finalmente os diversos carros dos participantes civis, tomando, segundo o próprio capitão, «a decisão – histórica», de «tornar irreversível a Revolta de Beja». O certo é que, às duas horas do primeiro dia de 1962, chegaram à porta de armas do quartel duas viaturas, com os seis oficiais envolvidos na revolta. O oficial de dia do quartel, alferes Arantes de Oliveira, franqueou-lhes a porta, apurando os militares envolvidos que se encontrava no quartel o segundo comandante, Major Calapez, membro da LP e adepto do regime.
Até então tudo tinha corrido bem para os sublevados, que se prepararam para ocupar a central telefónica e de rádio, tomar a casa da guarda, desarmar as sentinelas e prender o major Calapez. Foi então que tudo começou a correr mal. Com a missão de prender o major Calapez, Varela Gomes, com os tenentes Jaime Carvalho da Silva e Alexandre Hipólito dos Santos dirigiram-se, cerca das 2 h e 20 m, aos aposentos daquele. Este entreabriu a porta e disparou à queima-roupa, atingindo com dois tiros Varela Gomes. Carvalho da Silva foi socorrer Varela Gomes e entregou-o aos cuidados de Alexandre Hipólito dos Santos e Pedroso Marques, que levaram o capitão ao hospital de Beja.
Foi então que se desmoronou todo o plano militar, que, além do mais, era ignorado pela componente civil, nomeadamente pelo seu dirigente, Manuel Serra. Segundo escreveu José Hipólito dos Santos, que vai editar em breve um livro sobre o tema, por «ironia do destino (e fruto dos sucessivos desencontros), no momento em que os revolucionários “perderam” o seu dirigente militar, o capitão Varela Gomes», o próprio general Humberto Delgado estava em Beja. E «nova ironia do destino: o General procurava sinais de revolta, no momento em que Manuel Serra entrava no quartel e tudo se tornava ainda possível». Ou seja, a situação poderia ainda ter então sofrido alterações.
Dado que a porta de armas não tinha sido franqueada aos civis, Manuel Serra ordenou, pelas 2 horas e 40 m, a uma quinzena de sublevados que saltassem o muro.
- Estes conseguiram ocupar a casa da guarda, desarmando os soldados e distribuindo armas pelos assaltantes e foram depois à procura de Calapez, sem, porém, nunca o conseguirem neutralizar, pelo que este continuou a provocar vítimas, matando David Abreu e ferindo Raul Zagalo Gomes Coelho, bem como António Vilar, que acabaria por falecer no hospital.
A morte de Jaime Filipe da Fonseca e a presença de Delgado em Portugal
Do lado do governo, morreu ainda no ataque o tenente-coronel Jaime Filipe da Fonseca, subsecretário de Estado do Exército, que tinha recentemente substituído nesse cargo Francisco da Costa Gomes, na sequência da «Abrilada». Relativamente à morte do seu sucessor, Costa Gomes diria que se teria devido a um erro do próprio que, ao «deslocar-se a Beja para comandar a defesa do quartel, foi à paisana», e acabou por ser «baleado, com toda a probabilidade, por um agente» da GNR, que não o reconheceu».
Na procura de razões para o fracasso do movimento de Beja, muitos dos participantes consideram que um dos factores consistiu na ignorância relativamente à presença em Portugal de Humberto Delgado. A entrada do general só deveria ter lugar quando o sucesso da fase inicial estivesse assegurado, ficando nesse momento Germano Pedro de o informar. Por volta do Natal, este telefonou ao general, que, em Marrocos, tinha jurado estar em Portugal até ao fim do ano, a avisá-lo de que o movimento estava prestes a eclodir, mas que deveria receber um segundo aviso para entrar no País. Delgado decidiu, no entanto, avançar de imediato, acabando por ir para Espanha e tomar uma «camioneta de carreira» entre Sevilha e Lisboa, passando a fronteira com o seu passaporte falso, no posto da PIDE de Vila Verde de Ficalho.
Arajaryr Campos, secretária e companheira de Delgado, viria mais tarde a fazer um relato escrito dessa «Viagem Secreta a Portugal», dando conta que, ao chegarem a Beja, já noite alta, rondaram durante uns 40 minutos, mas, para sua admiração, viram que estava tudo na mais perfeita calma, quando, repentinamente a polícia os mandou parar. O motorista que os levava num Jaguar acelerou a fundo e conseguiram fugir. Escondidos, chegariam ao Porto, no dia 3 de Janeiro, antes de Arajaryr se separar de Delgado, que, no dia 10, o saiu por Barca d’Alva, sendo assim a PIDE duas «vezes ludibriada!!!!».
O papel das forças repressivas e da PIDE
Ao relatar também a chegada a Beja, Delgado disse ter então ficado com a impressão nítida «que a revolta pelo menos já era do conhecimento de forças que não haviam sido neutralizadas». No entanto, não deixou de concluir o seu relato, com um balanço optimista da sua viagem a Portugal, nomeadamente por ter demonstrado que a PIDE era um “tigre de papel”, que poderia ser vencido. José Hipólito dos Santos afirma não ter encontrado indicações de que a polícia política estivesse à espera dos acontecimentos e se encontrasse na noite desse fim de ano em estado de alerta. Da minha investigação, a não ser que se venha a encontrar nova documentação, também não recolho indicações neste sentido
No entanto, a PIDE, as outras polícias e a instituição militar estavam à espera de algo, nesse ano movimento de 1961, até porque tinha indicações de que o DRIL se reparava para operar em Portugal e em Espanha. As próprias autoridades espanholas avisaram da movimentação de oposicionistas exilados. Lembre-se também que, na noite de 31 de Dezembro, os quartéis estavam de prevenção, embora pouco rigorosa como comprova o facto de, no quartel de Beja, apenas estar o segundo comandante – o primeiro comandante estava em Lisboa. Este facto inica também que, se esperava algo, o governo não sabia onde iria eclodir. Recorde-.se ainda que o chefe de brigada da PIDE, José Gonçalves, seguiu o carro em de Manuel Serra se dirigia a Beja, mas a viatura da polícia teve um furo, que o fez perder o rasto de Serra.
É um facto que, virada para a repressão ao PCP, a PIDE não estava habituada a lidar com um movimento revolucionário armado, que juntava civis e militares, de várias opções político e ideológicas. Também a noção da omnipotência, omnisciência e eficácia da PIDE me parece ser um facto mais ligado à propaganda que a própria polícia apregoava – embora também fosse apregoada por uma parte da oposição – para instilar o medo e a passividade, do que que uma realidade. É verdade que a PIDE estrava particularmente atenta nesse ano de 1961, mas que, entre informação e conhecimento, há uma distância, e que a polícia podia ter algumas informações, mas não tinha o conhecimento que lhe permitisse desencadear uma acção específica. E esse desconhecimento advinha de os participantes na operação de Beja não serem os suspeitos do costume, nem a acção ser do teor a que ela estava habituada.
De qualquer forma, tenho algumas dúvidas se a operação do Quartel de Beja constituiu inteira surpresa para as autoridades. As duas primeiras idas a Beja, em início de Dezembro, dificilmente terão passado despercebidas, muitos dos participantes, incluindo Serra estavam sob vigilância. Por outro lado, é preciso esquecer que um dos modos de actuação da PIDE era não prender de imediato, para poder vigiar os “suspeitos”, que os levariam a outros.
Como e quanto soube o governo do que se passava em Beja?
Após alvejar Varela Gomes, o segundo comandante do RI3, major Calapez, teve a liberdade de movimento e antes de escapar aos tiros dos civis revolucionários, entretanto entrados no quartel, e de alvejar três deles, Calapez teve ainda tempo para conseguir que o telefonista conseguisse voltar a controlar a central telefónica, abandonada pelos dois oficiais sublevados, após Varela Gomes ser alvejado. Alguns oficiais do quartel que estavam na messe foram assim alertados e, pelas 3 horas da madrugada, informaram a PSP do que se passava no quartel, dando esta polícia, que não interveio directamente entrando no quartel, conta do sucedido ao ministério.
Ao relatar a sequência dos acontecimentos, Maria Eugénia Varela Gomes confirma que o governo havia sido avisado imediatamente do que se estava a passar no quartel de Beja, através de um telefonema de quatro oficiais da unidade de Beja. Contou ainda que confirmaria depois essa versão, ao saber que o telefonema, recebido por Irene Aleixo em sua casa, na noite de 31 de Dezembro, tivera como interlocutor o ministro da Saúde, Martins de Carvalho. Este teria dito à dona da casa, onde Eugénia Varela Gomes e outros envolvidos na revolta de Beja aguardavam o desenrolar dos acontecimentos no quartel, que iria indagar o que se passava.
Voltando depois a ligar, este transmitiria a Irene Aleixo que estava «tudo resolvido», dizendo-lhe para avisar Maria Eugénia que o seu marido estava gravemente ferido e internado no hospital. José Hipólito dos Santos diz que estes telefonemas teriam sido escutado pela PIDE, mas que o «burocrata de serviço» que ouviu o telefonema só fez feito o relatório por escrito dias depois, o que não significa que a direcção dessa polícia não tivesse sido avisada oralmente. Registe-se ainda o facto de ter sido o ministro da Saúde, sabendo de que haveria feridos graves, a ordenar o envio de uma equipa médica para Beja e seria esta a operar de urgência o capitão Varela Gomes.
O papel do PCP
A acção revolucionária de Beja teve alguma semelhança com o chamado «golpe da Sé», de 1959, desde logo, devido à participação destacada nas duas operações de Manuel Serra e de alguns dos seus amigos, de alguns católicos, e até sacerdotes, bem como alguns militares. Também não houve, em 1959, a participação do PCP, tal como esta não existiu em Beja, por razões explicáveis, pois não era um tipo de acção que se enquadrasse na estratégia de levantamento nacional. No entanto, em 1961, alguns elementos comunistas tiveram em Beja um papel inicial, mas a nível individual.
Segundo o relatório do processo-crime da PIDE, pertenciam ao PCP o empregado fabril Francisco Lobo e o ferroviário Germano Madeira, que se haviam prontificado a colaborar no golpe, embora provavelmente à revelia do seu partido. Segundo o testemunho de alguém próximo do PCP, Manuel Serra teria conseguido a adesão afectiva de comunistas da margem do Sul do Tejo, para o seu «plano de sublevação militar». O respectivo controleiro do PCP ficara de saber a opinião sobre essa participação da parte do CC, cuja resposta taxativa foi a de que este partido não participava «em aventuras, mas a título individual cada qual decide». Depois, ao ser finalmente decidida a data para a eclosão do movimento, «muitos aderentes da primeira tentativa já não alinharam», o que não impediria a repressão da PIDE de se abater sobre cerca de vinte pessoas na Baixa da Banheira, no Barreiro e Alhos Vedros.
A repressão
Ao todo foram detidas centenas de pessoas, tivessem ou não participado directa ou indirectamente na revolta de Beja e, no final de Junho de 1962, estavam presas perto de uma centena de pessoas, havendo outras que se refugiaram em embaixadas latino-americanas Várias pessoas colaboraram na fuga de outros elementos da «intentona de Beja». Ao contrário do que se passou com outras tentativas de golpe integradas por militares, a PIDE conseguiu que os sublevados de Beja lhes fossem entregues. Para isso, foram expulsos do Exército, por simples decisão administrativa, e como já não eram militares, ficaram “legalmente” debaixo da alçada da PIDE.
No julgamento no Tribunal Plenário, que decorreu entre 28 de Janeiro e 29 de Julho de 1964, onde, pela primeira vez foram julgados tanto os civis como os militares, num total de 82 arguidos, 49 foram condenados a pena maior, 16 a prisão correccional e 17 foram absolvidos.Entre as penas mais altas, contaram-se as atribuídas a Manuel Serra, João Varela Gomes, Edmundo Pedro e Eugénio de Oliveira, respectivamente condenado a dez, seis, três anos e oito meses (acrescido de um ano mais) e três anos (aumentados para quatro e meio).
O regime português ter-se-á assustado muito com o «golpe de Beja», mas o susto também se espalhou ao governo espanhol, que, seis horas após a operação, ordenou o avanço de tanques espanhóis de Mérida para Badajoz. Por seu lado, a CIA «confirmou que o generalíssimo Francisco Franco planeava invadir Lisboa, Porto e Coimbra, usando a 11ª Divisão do Exército, caso Salazar fosse derrubado pela esquerda».
Observações finais
 Para já tem de se falar do acaso e dos múltiplos factores imponderáveis, que surgem sempre e que podiam ter ocorrido de outra forma: se não tivesse havido desencontros iniciais, se não tivesse havido o desencontro com Humberto Delgado, se o segundo comandante não tivesse estado no quartel, se ele não tivesse disparado e ferido gravemente o capitão Varela Gomes… cá estão muitos «se», que se juntam a muitos outros.
De novo, quero lembrar que a posteriori, com todo o conhecimento de todo os dados e sabendo para onde caiu a situação, é fácil enumerar os vários factores que contribuíram para o fracasso da revolta de Beja, desde o facto de a operação ter contado com um diminuto número dos participantes, escassamente preparados e armados, movidos apenas por uma generosidade voluntariosa e desejosa de contribuir para o derrube do regime, Negativa, parece ter sido também a falta de sincronia e de entre civis e militares.
Há, no entanto, um factor que hoje me parece relevante: o de que, além das condições objectivas, as chamadas condições subjectivas de uma insurreição popular, em que se verificariam a adesão de outras unidades militares e sobretudo das populações – o que acontece na realidade, em 25 de Abril de 1974, depois de uma vastíssima operação apenas militar – não existiam. O ano de 1961 era de contexto bastante desfavorável para uma revolta de militares, talvez a mais desfavorável desde que Salazar tinha “saneado” e domesticado a instituição militar, em 1937. Lembre-se, por outro lado, que no ano de 1958, das eleições de Delgado, Salazar tinha contado com os tanques militares que saíram à rua para preservar o regime. Mas 1961 – annus horribilis par ao regime – foi de qualquer forma um ano dramático para a oposição ao regime. Lembre-se que, nesse ano de início da guerra em Angola e da perda do Estado da Índia, mesmo os militares descontentes no seio do regime foram derrotados na sequência do golpe palaciano do ministro da Defesa, Júlio Botelho Moniz, em Abril de 1961 e que, devido a essa situação, e à decisão tomada da «ida em força para Angola», Salazar assumiu então essa pasta crucial.
Por outro lado, o começo da guerra colonial deu a oportunidade a Salazar de colocar os militares perante a falta de alternativas -servir ou trair a Pátria -, tornando difícil o sucesso de qualquer tentativa revolucionária militar e obrigando a que se esperasse mais 12 anos pela libertação. Além disso, a propaganda do regime – expressa nas manifestações contra o que se tinha passado em Março em Angola, à chegada do navio Santa Maria a Lisboa e a perda do chamado Estado da Índia – estava ao rubro e não deixava de ter alguma eficácia no seio de uma população passiva e amedrontada.
Mas, já que falamos em factores subjectivos, quero destacar dois muito importantes, para cujo reforço a revolta de Beja contribuiu a curto, médio e longo prazo.
1) - Por um lado, dado que, a par da passividade instilada, o medo espalhado pelo aparelho repressivo salazarista foi muito importante para sua manutenção, um grupo de revolucionários que tudo arriscava para tentar derrubar esse regime, tornava-se uma lição viva de resistência e uma poderosa pedra na engrenagem da Ditadura.
2 - Ainda entre os factores subjectivos, deve-se lembrar a importância da revolta de Beja no seio da oposição ao regime ditatorial, mesmo se ela foi à época criticada por grande parte dos outros oposicionistas: contribuiu seguramente para revelar que a PIDE não sabia nem dominava tudo e, mais importante, demonstrou que haveria outras formas e estratégias de actuação para derrubar o regime, que poderiam aliás competir positivamente com as formas tradicionais. Deu assim expressão à vontade que muitos – especialmente mais jovens – tinham de actuar de forma mais radical contra um regime que, como se viu, não terminaria pacificamente.